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“Se o mercado de fertilizantes não for estabilizado, o problema pode ser o abastecimento de alimentos.” Crises mundiais em debate na ONU

A Rússia faz parte da solução para que se inverta o agravamento da crise alimentar à escala global. O secretário-geral da ONU considerou “essencial continuar a eliminar todos os obstáculos remanescentes à exportação de fertilizantes russos”. Guterres falava no primeiro de seis dias de debate, a marcar o início na 77ª Assembleia-Geral da organização, onde o Brasil é, há décadas, o primeiro a discursar. Depois do aproveitamento político que fez da sua deslocação a Londres, Jair Bolsonaro foi a Nova Iorque exaltar as conquistas do seu Governo e explicar porque deve ser reeleito

O ritual cumpre-se ininterruptamente desde 1949. Na agenda da Assembleia-Geral das Nações Unidas, há uma semana do ano dedicada a ouvir os chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros — que preocupações os atormentam e que apelos têm a fazer à comunidade internacional.

Com uma guerra em curso na Europa, uma crise económica global agravada por uma pressão inflacionista — desencadeada pela subida dos preços da energia, dos alimentos e das matérias-primas —, e ainda as alterações climáticas a não darem tréguas, “o nosso mundo está em apuros”, alertou, esta terça-feira, o secretário-geral da organização.

António Guterres, que foi o primeiro a fazer-se ouvir na sessão de abertura da 77ª Assembleia -Geral, identificou a disrupção na cadeia de abastecimento de alimentos como uma das principais emergências do momento.

“Para aliviar a crise alimentar global, devemos abordar urgentemente a crise do mercado global de fertilizantes. Este ano o mundo tem comida suficiente; o problema é a distribuição. Mas se o mercado de fertilizantes não for estabilizado, o problema, no próximo ano, pode ser o próprio abastecimento de alimentos”, avisou o português.

Fertilizantes russos não estão sujeitos a sanções

Para inverter a tragédia que se adivinha, o líder das Nações Unidas considera “essencial continuar a eliminar todos os obstáculos remanescentes à exportação de fertilizantes russos e dos seus ingredientes, incluindo amónio”. Guterres lembra que “esses produtos não estão sujeitos a sanções”.

O desbloqueamento dos fertilizantes russos foi um dos pontos da recente Convenção de Istambul — popularizada como Acordo dos Cereais —, assinada a 22 de julho, após mediação do secretário-geral da ONU e do Presidente da Turquia. Esta terça-feira, Recep Tayyip Erdogan considerou esse pacto “uma das grandes conquistas das Nações Unidas nos últimos anos”.

No uso da palavra, Jair Bolsonaro demonstrou de que forma o país a que preside pode ajudar a combater o problema alimentar. “Este ano, o Brasil já começou a colheita da maior safra de cereais da nossa história. Estimam-se, pelo menos, 270 milhões de toneladas. Em poucos anos, o Brasil passará de importador a exportador de trigo”, disse o chefe de Estado brasileiro.

Na linha do que defendeu Guterres, Bolsonaro transmitiu a ideia de que combater a crise global passa muito por aliviar a pressão económica à Rússia, decorrente da invasão da Ucrânia.

“Somos contra o isolamento diplomático e económico”, disse. “As consequências do conflito já são sentidas nos preços mundiais de alimentos, combustível e outras matérias-primas. Essa situação afasta-nos dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Países que se apresentavam como líderes da economia de baixo carbono passaram a usar fontes sujas de energia. Este é um revés grave para o meio ambiente.”

Brasil é sempre o primeiro a discursar

Correspondendo a uma tradição iniciada em 1947, o Brasil é sempre o primeiro dos membros da ONU — atualmente 193 — a intervir no debate geral, que este ano decorre se vai prolongar até à próxima segunda-feira. Nesse ano, foi o ministro dos Negócios Estrangeiros brasileiro, Osvaldo Aranha, que presidiu à primeira sessão especial da Assembleia-Geral e à segunda sessão ordinária.

Após uma polémica deslocação a Londres, para assistir ao funeral da rainha Isabel II, onde Bolsonaro — em campanha para as presidenciais de 2 de outubro — foi acusado de aproveitamento político, o brasileiro foi a Nova Iorque aproveitar os holofotes das Nações Unidas para exaltar como o país que lidera está no bom caminho.

Afirmou que, durante a pandemia, o seu Governo “não poupou esforços para salvar vidas e preservar empregos”, tem realizado “reformas para atrair investimentos “, “dissipou a corrupção sistémica que existia no país” e tornou o Brasil o sétimo país mais digitalizado do mundo.

“A economia voltou a crescer. A pobreza aumentou em todo o mundo devido ao impacto da pandemia. No Brasil, ela já começou a cair de forma acentuada”
Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

Ultrapassando largamente os 15 minutos atribuídos a cada orador, Bolsonaro não poupou nas palavras e ainda elogiou o trabalho da sua equipa na preservação do ecossistema da Amazónia.

“Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, exatamente como quando o Brasil foi descoberto, em 1500. Na Amazónia brasileira — uma área equivalente à Europa Ocidental —, mais de 80% da floresta permanece intocada, ao contrário do que é noticiado pelos grandes órgãos de informação nacional e internacional.”

“Guerra suicida contra a natureza”

Guterres não deixou escapar o momento para, pela enésima vez, abordar o tema que tem sido uma das suas prioridades, desde o primeiro dia em funções, em Nova Iorque: as alterações climáticas.

“Há outra batalha que devemos terminar”, alertou. “A nossa guerra suicida contra a natureza. A crise climática é a questão definidora do nosso tempo. Deve ser a primeira prioridade de todos os governos e organizações multilaterais. E, no entanto, a ação climática está a ser colocada em segundo plano – apesar do apoio público esmagador em todo o mundo.”

O antigo primeiro-ministro português recordou que os países estão comprometidos a reduzir em 45% as emissões globais de gases com efeito estufa até 2030, mas que essas emissões estão a aumentar a níveis recorde, a caminho dos 14%, esta década. “Temos encontro marcado com o desastre climático”, disse Guterres. “Recentemente, vi-o com os meus próprios olhos no Paquistão.”

Este país do sueste asiático é um contribuinte residual para o aquecimento global, mas desde junho está sob fortes inundações sem precedentes, que já submergiram um terço do seu território. “Enquanto isso, a indústria de combustíveis fósseis está a banquetear-se com centenas de milhões de dólares em subsídios e lucros inesperados, ao passo que os orçamentos das famílias encolhem e o nosso planeta queima”, criticou Guterres. “O nosso mundo é viciado em combustíveis fósseis. É hora de uma intervenção.”

“Os poluidores devem pagar. Hoje, peço a todas as economias desenvolvidas que tributem os lucros inesperados das empresas de combustíveis fósseis.”
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas

Para esta terça-feira, estão previstos 34 intervenções na Assembleia-Geral. O período da manhã terminou com palavras de grande preocupação, pela boca do Presidente francês. “Hoje temos de fazer uma escolha simples, no fundo. A guerra ou a paz”, disse Emmanuel Macron.

À mesma hora, era esperada uma intervenção de Vladimir Putin, em Moscovo, sobre a realização de referendos nas zonas controladas pela Rússia na Ucrânia. Já em Nova Iorque, Macron, que desde a invasão russa tem sido dos dirigentes mundiais que mais têm procurado empreender um diálogo com Moscovo, considerou essas consultas “uma paródia”. E concluiu: “A soberania da Ucrânia é crucial”.

(FOTO António Guterres intervém no debate inaugural da 77ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque FLICKR UNITED NATIONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

ONU estabelece relações formais com o Governo talibã do Afeganistão

Uma resolução aprovada no Conselho de Segurança das Nações Unidas garante a continuidade da missão de assistência da ONU em território afegão. Não se cumpriram os receios de que a Rússia pudesse usar o direito de veto, em retaliação pelas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, esta quinta-feira, por larga maioria, uma resolução que formaliza a futura relação entre a organização e as autoridades talibãs do Afeganistão.

O documento, proposto pela Noruega, “redesenha as relações do organismo global com Cabul para corresponder à tomada do poder pelos talibãs, no ano pasado”, escreve a emissora Al-Jazeera, do Catar.

A Resolução 2626 garante também a continuidade das Nações Unidas em território afegão, ao prorrogar por um ano o mandato da Missão de Assistência das Nações Unidas ao Afeganistão (UNAMA), até 17 de março de 2023.

“Esta resolução envia uma mensagem clara de que o Conselho de Segurança está firmemente por trás do apoio contínuo da ONU ao povo afegão, que enfrenta desafios e incertezas sem precedentes”, regozijou-se a missão da Noruega na ONU, num post publicado no Twitter.

Os receios de que a Rússia poderia usar o seu poder de veto — por ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança —, em retaliação pelas pesadas sanções que enfrenta devido à invasão da Ucrânia, não se confirmaram. Dos 15 votos, 14 foram favoráveis à resoluão e só um país, precisamente a Rússia, se absteve.

Esta posição da ONU constitui o primeiro reconhecimento diplomático internacional do Governo talibã. Apesar de delegações do grupo extremista religioso já terem sido recebidas em vários países, até ao momento nenhum país estabeleceu relações diplomáticas, a nível bilateral, com o novo Governo de Cabul.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

COP26, nono dia. Obama fez ‘mea culpa’, um ministro discursou de calções e uma ONG apurou que a maior delegação é a dos lobistas dos fósseis

A quatro dias do fim da COP26, o ex-Presidente norte-americano Barack Obama monopolizou as atenções, com uma intervenção centrada nos dramas que enfrentam os pequenos Estados insulares, vulneráveis à subida dos oceanos. Um deles, o Tuvalu, recorreu à criatividade para mostrar que está em vias… de desaparecer

Simon Kofe, ministro dos Negócios Estrangeiros do Tuvalu, gravou a sua mensagem para a COP26 com os pés dentro da água do Oceano Pacífico REUTERS

A situação tem a sua graça, ao ponto de o próprio protagonista rasgar o sorriso, como está patente na foto que ilustra este texto. Mas o problema é realmente grave e só essa circunstância levou Simon Kofe, ministro dos Negócios Estrangeiros do Tuvalu, a substituir as calças do seu fato formal por uns calções para gravar um discurso com as águas do oceano Pacífico pelos joelhos.

A pose e o cenário criaram ambiente para a transmissão de uma mensagem que acontecerá esta terça-feira na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), em Glasgow: o Tuvalu está na linha da frente dos países mais expostos às alterações climáticas e a sua sobrevivência está ameaçada pela subida dos mares.

“A declaração sobrepõe o cenário da COP26 com situações da vida real que enfrentamos no Tuvalu devido aos impactos das mudanças climáticas e à subida do nível do mar”, disse o ministro, num comentário ao vídeo. “E destaca a ação ousada do Tuvalu para resolver questões muito prementes relativas à mobilidade humana em contexto de alterações climáticas.”

‘Uma montanha’ de cinco metros

A iniciativa do governante do Tuvalu não foi tão extrema quanto um histórico conselho de ministros do Governo das Maldivas que se realizou debaixo de água. Mas o drama do Tuvalu — um Estado insular na região da Polinésia, onde o ponto mais alto não chega aos cinco metros — está à vista de todos.

O país foi, aliás, um dos arquipélagos visitados pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, em junho de 2019, num périplo que levou o português à capa da revista “Time”, com uma expressão grave e preocupada junto ao título “O nosso planeta está a afundar-se”.

Em Glasgow, esta segunda-feira — dia dedicado ao tema “Adaptação, perdas e danos” —, coube a Barack Obama sair em defesa dos pequenos Estados insulares. O ex-Presidente dos Estados Unidos recordou as suas origens havaianas e fez um mea culpa em nome do mundo desenvolvido: “Como era verdade há cinco anos, não fizemos o suficiente e as nossas ilhas estão mais ameaçadas do que nunca”, disse.

“Todos nós temos uma parte a desempenhar, todos temos trabalho a fazer, todos nós temos sacrifícios a fazer. Aqueles de nós que vivem em grandes nações ricas têm um fardo adicional a fazer, trabalhando, ajudando e auxiliando aqueles que são menos responsáveis ​​e menos capazes mas mais vulneráveis ​​a esta crise que se aproxima.”

Era Obama quem estava na Casa Branca quando foi assinado o Acordo de Paris (2015), que comprometeu 196 Estados e a União Europeia a manterem o aquecimento global abaixo dos 2°C – e se possível abaixo dos 1,5°C.

Na sequência do Acordo, os países desenvolvidos foram instados a aumentar o seu envolvimento no combate climático, nomeadamente ajudando a mobilizar 100 mil milhões de dólares por ano (86 mil milhões de euros) para serem gastos nos países em desenvolvimento em ações conducentes à redução de emissões de gases com efeito de estufa e em projetos de adaptação às mudanças climáticas.

Esse objetivo continua por cumprir, ouviu-se em Glasgow. “Entre outros, os EUA estão lamentavelmente longe de pagar a sua parte justa do financiamento climático”, acusou o primeiro-ministro das Ilhas Fiji, Frank Bainimarama, que discursou a seguir a Obama. “Agora nós, os mais vulneráveis, somos instruídos a engolir e esperar.”

O governante recordou que, desde o Acordo de Paris, as Fiji já foram atingidas por 13 ciclones e acrescentou: “As nações desenvolvidas estão a falhar-nos”.

“É como se eu atirasse lixo para o seu quintal e dissesse para você pagar para limpá-lo, mesmo que isso signifique que você não pode pagar a hipoteca, nem comprar comida. Você não pode fazer nada porque tem de gastar todo o seu dinheiro com o lixo que eu atirei para o seu quintal”

Mia Mottley
 primeira-ministra de Barbados, país afetado pelas alterações climáticas, discursando na COP26

Segundo o diário britânico “The Guardian”, as nações africanas estão particularmente impacientes e pressionam no sentido de, ainda esta semana, se iniciarem as discussões relativas a um megapacote anual de 700 mil milhões de dólares (605 mil milhões de euros) a partir de 2025 para ajudar as nações em desenvolvimento a adaptarem-se à crise climática, designadamente na ajuda à necessária rápida descarbonização para manter o aquecimento global em 1,5°C.

“Este trabalho precisa de começar agora”, apelou Tanguy Gahouma-Bekale, o presidente do Grupo Africano de Negociadores sobre Mudanças Climáticas. “As conversações sobre finanças demoram tempo, por isso precisamos de ter um roteiro agora com etapas claras sobre como atingir as metas após 2025 que garanta o fluxo de dinheiro todos os anos.”

Lixo na rua. Um mau prenúncio?

Com a cidade escocesa tomada pela cimeira, um assunto em particular parece ter transbordado as mesas dos debates e contaminou as ruas de Glasgow — o problema do lixo. Aproveitando a importância da cimeira e todo o mediatismo que gerou, os trabalhadores da limpeza da autarquia de Glasgow iniciaram uma greve por melhores condições.

Esta segunda-feira, contabilizando já oito dias de luta, os grevistas receberam a visita, e a solidariedade, do antigo líder do Partido Trabalhista do Reino Unido Jeremy Corbyn.

Segundo a publicação “The Glasgow Times”, os trabalhadores estão a analisar uma nova proposta do município, na sequência de “conversações construtivas” no final da semana passada, que poderá levar ao fim do protesto já esta terça-feira.

A confirmar-se, será a garantia de ruas mais verdes e asseadas na reta final da COP26, que termina na sexta-feira. Já dos corredores da cimeira não há garantias de que saiam compromissos fortes e consensuais a quase 200 países que refreiem a degradação do planeta e mantenham viva a meta máxima de 1,5ºC para o aquecimento da Terra.

Uma análise da Global Witness, tornada pública esta segunda-feira, escancarou as portas de um resultado desapontante. “Se o lóbi dos combustíveis fósseis fosse uma delegação de um país na COP, seria a maior com 503 delegados”, apurou a organização internacional que se dedica a estabelecer vínculos entre a exploração de recursos naturais e conflitos, pobreza, corrupção e abusos de direitos humanos.

“O lóbi dos combustíveis fósseis na COP é maior do que o total combinado das oito delegações dos países mais afetados pelas alterações climáticas nas últimas duas décadas: Porto Rico, Myanmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh e Paquistão”, detalha a Global Witness. E “27 delegações oficiais de países registaram lobistas de combustíveis fósseis, incluindo Canadá, Rússia e Brasil”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

“Nós, humanos, somos a causa. Mas estamos a recusar tornarmo-nos a solução.” A palavra aos países na linha da frente da crise ambiental

Os mesmos países que estão reunidos na 26.ª Cimeira do Clima (COP26), em Glasgow, discursaram há cerca de um mês na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Então, chefes de Estado e membros de Governo de 191 países membros — só faltaram Afeganistão e Myanmar —, União Europeia, Palestina e Santa Sé enumeraram o que mais os preocupa no mundo. À cabeça, a falta de vacinas para acabar com a pandemia de covid-19 e as alterações climáticas. O Expresso releu as intervenções e identificou o que vai mal no combate às alterações climáticas

“Chego a esta Assembleia diretamente da ilha [de La Palma, na Canárias], impressionado pela forma como a natureza nos recorda, uma vez mais, a dimensão da nossa fragilidade. Mas também da nossa força. Graças à ciência, pudemos antecipar a resposta.” Na tribuna da Assembleia-Geral das Nações Unidas, a 22 de setembro, Pedro Sánchez, primeiro-ministro de ESPANHA, somava-se ao rol de governantes que, um pouco por todo o mundo, têm sido desafiados pela fúria da natureza.

Nas Canárias, a contínua erupção do Cumbre Vieja, que começou a 19 de setembro, tornou a ilha refém do vulcão e condenou os cerca de 85 mil habitantes a um futuro incerto. “Sem dúvida, a emergência climática é a grande crise da nossa era”, acrescentou o governante espanhol. “Já não há espaço para o negacionismo.

Nos últimos doze meses, fenómenos climáticos extremos ocorreram em latitudes tão distantes quanto Alemanha e Sudão do Sul (inundados após chuvas torrenciais), Austrália e Grécia (devastadas por grandes incêndios), Itália e Islândia (surpreendidas por explosões vulcânicas), Honduras e Japão (varridos por tufões destruidores), Haiti e Paquistão (sacudidos por sismos mortíferos).

Nenhum país ou região do mundo está a salvo neste “novo normal”, nem pode argumentar que não sabe que o problema existe. “A nossa tarefa comum é salvar o nosso planeta”, recordou a Presidente da ESLOVÁQUIA, Zuzana Čaputová. “Anteriormente, a Terra sussurrava, mas agora grita que não pode mais aguentar connosco, que a Humanidade é um fardo muito pesado para carregar.”

Já não há água nesta antiga marina perto de Syracuse, no estado norte-americano do Utah JUSTIN SULLIVAN / GETTY IMAGES

Há décadas que a comunidade científica alerta para a contínua degradação do planeta. Em agosto, o relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) fez um aviso inequívoco: o tempo está a esgotar-se e a manter-se a intensidade de exploração dos ecossistemas, a temperatura do planeta poderá aumentar 4,4ºC até ao fim do século.

“Trata-se de um alerta vermelho para a Humanidade”

António Guterres, secretário-geral da ONU, sobre o relatório do IPCC

“Nenhuma pessoa séria que examine objetivamente os dados científicos pode deixar de concluir que as alterações climáticas são uma ameaça existencial para a Humanidade, e sobretudo para os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS) e para países, como na África Ocidental e na região do Sahel, que estão a ser empurrados para desastres naturais aparentemente intermináveis, como consequência da desertificação e da degradação extrema da terra”, resumiu Ralph Gonsalves, primeiro-ministro do arquipélago de SÃO VICENTE E GRANADINAS, um país nas Caraíbas.

“A ciência, o mundo real e o Acordo de Paris apontaram caminhos alternativos para a Humanidade, mas a vontade política e os recursos necessários dos principais emissores para enfrentar o grave desafio das mudanças climáticas não foram muito além de palavras piedosas e remendos marginais.”

A região da Ásia Central é talvez das que melhor confirmam o alerta do IPCC. “Como resultado das alterações climáticas e do aquecimento sem precedentes, mais de 1000 dos 13 mil glaciares das montanhas do TAJIQUISTÃO já derreteram por completo”, testemunhou o Presidente Emomali Rahmon. Nas calotas tajiques têm origem mais de 60% dos recursos hídricos que abastecem a Ásia Central.

Há 25 anos, o gelo cobria este lago, perto de Olden, na Noruega. Desde então, o glaciar Briksdal derreteu de forma acelerada SEAN GALLUP / GETTY IMAGES

Desde o passado domingo e até 12 de novembro, está reunida pela 26.ª vez a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (adotada na Cimeira da Terra de 1992). A COP26 é considerada a última esperança na obtenção de um compromisso sério que limite o aquecimento global e reverta danos infligidos ao planeta — que já põem em risco a sobrevivência de alguns países.

“As mudanças climáticas não estão de quarentena”, alertou o Presidente do CHILE, Sebastian Piñera. “O seu avanço continua implacável, mais rápido e com efeitos mais graves do que o esperado. E, o mais sério, algumas das suas consequências já são irreversíveis.”

Na primeira linha da crise climática, estão os pequenos Estados insulares. Longe de serem dos maiores contribuintes para a degradação do planeta, são dos que mais sofrem. Em junho de 2019, António Guterres deu visibilidade a este drama com uma visita que chegou à capa da revista “Time”.

“Para uma pequena ilha e um Estado costeiro de baixa altitude como o BELIZE, o mundo hoje é hostil e precário”, confessou John Briceño, primeiro-ministro deste pequeno país da América Central, virado para o mar das Caraíbas. No mesmo (frágil) barco, segue o Tuvalu, na Oceania, onde o ponto mais alto não chega aos cinco metros.

Sentença de morte para as Maldivas

No coração do Oceano Índico, o arquipélago das MALDIVAS é dos países mais ameaçados pela subida do nível do mar. “‘Ameaça existencial’, ‘deixar de existir’, ‘vulnerável ao clima’, ‘risco de desaparecimento’, ‘perda de identidade’, ‘refugiados ecológicos’ são expressões vulgarmente usadas para descrever as dificuldades que os maldivianos e outros Estados insulares enfrentarão se as tendências atuais continuarem inabaláveis. A diferença entre 1,5 graus e 2 graus é uma sentença de morte para as Maldivas”, afirmou o seu Presidente, Ibrahim Mohamed Solih.

AQUECIMENTO

1,5ºC

Segundo artigo 2 do Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas (2015), os Estados devem “fazer esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais”

O drama das Maldivas é partilhado por muitos outros Estados insulares, como as ILHAS MARSHALL, um arquipélago do Oceano Pacífico. “Os direitos humanos aplicam-se no oceano — sem exceção — tanto quanto se aplicam em terra”, defendeu o Presidente David Kabua.

“Saudamos o recente progresso no sentido da realização da Cimeira dos Oceanos da ONU, planeada para o próximo ano e coorganizada pelo Quénia e por Portugal.” O encontro está agendado para Lisboa.

As dramáticas consequências de chuvas torrenciais que fizeram inundar o lago Poyang, na cidade chinesa de Shangrao AFP / GETTY IMAGES

O compromisso assumido no Acordo de Paris — assinado por 196 Estados e a União Europeia — lançou os países numa corrida pela redução das emissões de dióxido de carbono até à desejada meta da neutralidade carbónica.

“Está estabelecido que a atividade humana é a principal causa das mudanças climáticas. Durante um ano, consumimos mais do que aquilo que a natureza nos pode oferecer, em função dos nossos interesses cada vez mais divergentes”, alertou Faustin Archange Touadera, o Presidente da REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA. “Temos a responsabilidade histórica de proteger as gerações futuras mudando de comportamentos.”

Ponto de não-retorno

Os registos revelam que a temperatura média do planeta tem aumentado ao longo de décadas, numa perigosa aproximação ao ponto de não-retorno, atingido o qual a Terra aquecerá para além do limite crítico. A mensagem parece estar interiorizada, mas a comunidade internacional tarda em passar à ação.

“As alterações climáticas não são mais uma questão de alertas por parte da comunidade científica. É uma situação de crise que já nos atinge. Encontrar respostas para as mudanças climáticas é um processo caro. E custará ainda mais se não levarmos a sério a necessidade de acelerar as atividades de mitigação das alterações climáticas”, alertou o Presidente da BÓSNIA-HERZEGOVINA, Željko Komšić.

RESILIÊNCIA

100.000.000.000

Na sequência do Acordo de Paris, os países desenvolvidos foram instados a aumentar o seu envolvimento no combate climático ajudando a mobilizar 100 mil milhões de dólares por ano (86 mil milhões de euros), até 2020, para gastar em ações climáticas nos países em desenvolvimento e tornar essas economias mais resilientes às mudanças climáticas

“Relativamente à crise climática, o ponto de partida são três palavras: Cumpram a vossa promessa”, desafiou o Presidente do MALAWI, Lazarus McCarthy Chakwera. “Já se passaram mais de dez anos desde que as nações desenvolvidas que mais poluíram o nosso planeta prometeram 100 mil milhões de dólares para [ações de] mitigação e adaptação ao clima. Estas são nações que nos dizem para seguirmos o seu exemplo, nações que nos dizem para considerá-las amigas, nações que nos chamam corruptos e indignos de confiança quando dizemos uma coisa e fazemos outra, nações que nos dizem que são os líderes nesta aldeia global.”

As críticas do Malawi fazem eco na América Latina. “É francamente penoso que em 10 anos não se tenha podido concretizar o compromisso de proporcionar 100 mil milhões de dólares aos países em desenvolvimento para implantar ações contra as alterações climáticas”, lamentou o Presidente da ARGENTINA, Alberto Fernández. “A justiça climática será uma quimera sem justiça financeira e tributária global que contribuam para a justiça social real.

A aflição de uma residente da ilha grega de Evia, devastada por grandes incêndios, em agosto passado KONSTANTINOS TSAKALIDIS / GETTY IMAGES

Para quem todos os tostões contam, ter de desembolsar milhões para fazer frente às adversidades provocadas pelas alterações climáticas, num contexto de pandemia, é um desafio impossível de suportar. “Contrair dívidas para pagar a recuperação dos efeitos das mudanças climáticas e construir resiliência não é a resposta para os problemas dos pequenos Estados que já estão sobrecarregados com dívida e que são os mais afetados”, recordou Gaston A. Browne, primeiro-ministro da ANTÍGUA E BARBUDA.

“Os pacotes de financiamento para os pequenos Estados insulares em desenvolvimento devem incluir uma quantia significativa de ajuda oficial ao desenvolvimento — noutras palavras, doações e não empréstimos.”

No uso da palavra, Ivan Duque, Presidente da COLÔMBIA, contribuiu com uma solução dentro do sistema: “Proponho à comunidade mundial que, durante um período de tempo e com o apoio do Fundo Monetário Internacional, se estabeleça uma regra a partir da qual todos os gastos e investimentos em ação climática estrutural fiquem de fora da linha tradicional que mede o défice fiscal.”

Já Luis Alberto Arce Catacora, Presidente da BOLÍVIA, propôs um regresso a práticas tradicionais. “Desde a cosmovisão dos povos indígenas que existe uma interdependência entre os seres humanos e a natureza”, recordou. “É fundamental recuperar os conhecimentos, práticas e experiências das nações e povos indígenas na construção de sociedades e ecossistemas resilientes às mudanças climáticas.”

Parece o cenário de um atentado, mas é na realidade a destruição provocada pela passagem de um furacão, no estado norte-americano da Louisiana JOE RAEDLE / GETTY IMAGES

O desejado financiamento visa apoiar a transição energética em países como o CAZAQUISTÃO, por exemplo, onde a produção de eletricidade depende em 70% do carvão. “O acesso a financiamento verde e a tecnologias verdes será crucial para esta transição”, defendeu o Presidente Kassym-Jomart Tokayev. “Esperamos um compromisso claro relativamente a essas questões na COP26, em Glasgow.”

Outro país a braços com uma revolução energética é a ESLOVÁQUIA. “Em termos per capita, a Eslováquia é o maior produtor de automóveis do mundo. Mobilidade limpa, baterias mais ecológicas desenvolvidas e produzidas localmente irão descarbonizar o transporte na Eslováquia e noutros lugares. Estamos prontos para partilhar as nossas soluções — e aprender com os melhores”, defendeu a Presidente Zuzana Čaputová. “Temos que desvincular o crescimento económico da degradação que temos causado ao planeta.

“Temos as ferramentas para uma revolução industrial verde, mas o tempo é desesperadamente curto”, garantiu o primeiro-ministro do REINO UNIDO, Boris Johnson, um dos anfitriões da COP26. “Não estamos a falar em deter o aumento das temperaturas — infelizmente, é tarde de mais para isso —, mas em conter esse crescimento nos 1,5 graus.”

Erupção do vulcão Etna, em fevereiro passado, na ilha italiana da Sicília FABRIZIO VILLA / GETTY IMAGES

Em todo o mundo, há apenas três países com carbono negativo, isto é, que absorvem mais gases com efeito estufa do que os que emitem. São eles o Suriname, o Panamá e o Butão. Ironicamente, são também dos que pagam a fatura mais cara das alterações climáticas.

A maior injustiça é que aqueles que mais sofrem são os menos responsáveis por esta crise existencial”, afirmou o Presidente das FILIPINAS, Rodrigo Duterte. “Emiti uma moratória sobre a construção de novas centrais a carvão e uma diretiva para explorar a opção de energia nuclear. Mas este contributo será inútil se os maiores poluidores — do passado e do presente — decidirem fazer business as usual. Apelamos a uma ação climática urgente, especialmente por parte daqueles que podem realmente fazer pender a balança.”

Responsabilidades comuns, mas diferenciadas

As razões de queixa em relação à falta de compromisso por parte do mundo desenvolvido são transversais a vários continentes. “Ironicamente, são os países que menos carbono geram, como os Estados insulares ou a minha própria região, a América Central, que se veem mais afetados pela emergência climática”, denunciou Carlos Alvarado Quesada, o Presidente da COSTA RICA, país a quem se atribui mais de 5% de toda a biodiversidade mundial.

Não muito longe, as HONDURAS orgulham-se de ser “uma das nações que mais contribuem para a conservação do ambiente”, com 50% do território coberto por floresta e 30% com o estatuto de reserva natural protegida. Na ONU, o Presidente Juan Orlando Hernández afirmou que o país é dos “mais afetados em todo o mundo por secas e chuvas destrutivas”.

Para a vizinha NICARÁGUA, situada na rota de tufões cada vez mais potentes e destruidores, impõe-se que da COP26 saiam resultados concretos baseados no princípio “Responsabilidades comuns mas diferenciadas”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Denis Moncada Colindres. “Se deixamos passar o tempo sem que os países desenvolvidos cumpram os seus compromissos, o dano à madre Terra provocado pelo aquecimento global será irreversível, sendo eles os responsáveis históricos da dita catástrofe.”

Poluição junto à costa de Ortakoy, na cidade turca de Istambul. Segundo a ONU, se os níveis de poluição marítima se mantiverem, em 2050 haverá mais plástico do que peixe nos oceanos SEBNEM COSKUN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

Líder de um país pressionado pelo acolhimento de milhões de refugiados oriundos de vários conflitos do Médio Oriente, o Presidente da TURQUIA alertou para “novas e massivas vagas de migrantes” em fuga, por exemplo, à subida da água do mar ou ao avanço da desertificação sobre comunidades agrícolas e pastoris, com consequências devastadoras ao nível da segurança alimentar e da conflitualidade em torno da disputa pelos recursos.

“Pode ser possível prevenir a pandemia de coronavírus com as vacinas que desenvolvemos. No entanto, está fora de questão encontrar uma solução laboratorial dessas para as mudanças climáticas”, lamentou Recep Tayyip Erdoğan. “Por isso, também para as alterações climáticas, repetimos o nosso apelo de que ‘o Mundo é Maior do que Cinco’”, referindo-se aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido), que têm direito de veto.

“Quem quer que tenha causado mais danos à natureza, à nossa atmosfera, à nossa água, ao nosso solo e à terra, e quem tenha explorado os recursos naturais de forma selvagem, deve também dar o maior contributo para a luta contra as alterações climáticas.”

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Terá lugar, em Lisboa, a II Conferência dos Oceanos, coorganizada por Portugal e pelo Quénia, entre 27 de junho e 1 de julho

Na SOMÁLIA, por exemplo, um país fustigado por um conflito secessionista e permeável às atividades de grupos terroristas como a Al-Qaeda e o Al-Shabaab, há também um êxodo forçado de populações castigadas por períodos alternados de seca e inundações.

“Há um provérbio somali que diz: ‘A cidade vive das provisões do campo’. Mas, infelizmente hoje, parece que o campo foi deslocado para as grandes cidades. Isto não é sustentável”, alertou o Presidente Mohamed Abdullahi Mohamed Farmajo.

Famílias em fuga às chamas, durante os grandes incêndios que devastaram o estado da Vitória, na Austrália JUSTIN MCMANUS / GETTY IMAGES

Não muito distante da Somália, um grande país insular está em vias de se tornar o primeiro a passar por uma situação de fome provocada pelas alterações climáticas, avisou as Nações Unidas em agosto. “As vagas de seca no sul são recorrentes, as fontes de água estão a secar e todas as atividades de subsistência tornaram-se quase impossíveis”, testemunhou o Presidente de MADAGÁSCAR, Sem Andry Rajoelina. “Os meus compatriotas do Sul estão a arcar com o pesado fardo da crise climática para o qual não participam.”

À partida para Glasgow, foram muitos os apelos para que os países não poupem na ambição. Mas há também quem não tenha ilusões, em virtude das falsas promessas do passado. Como sintetizou Mohamed Irfaan Ali, Presidente da GUIANA: “Os maiores poluentes simplesmente não mantiveram a sua palavra e a desconfiança agora paira no ar.

Resumiu Josaia Voreqe Bainimarama, primeiro-ministro das ILHAS FIJI: “Nós, humanos, somos a causa. Mas estamos a recusar tornarmo-nos a solução.

(FOTO PRINCIPAL Os veículos de duas e quatro rodas foram substituídos por embarcações, nas ruas da cidade chinesa de Xinxiang, completamente alagada AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

ONU assinala Dia Mundial da Sanita, um “luxo” inacessível a 4200 milhões de pessoas

As sanitas salvam vidas e previnem a proliferação de doenças mortais, mas mais de metade da população mundial não tem uma em casa. A diretora da delegação da Fundação Aga Khan na Índia explica ao Expresso as implicações sociais da falta de lavabos seguros, em especial para as mulheres

Em qualquer casa portuguesa damos naturalmente por adquirido a existência de, pelo menos, uma sanita para uso de quem ali vive. Tal não é, porém, a realidade para mais de metade da população mundial, que (sobre)vive sem acesso às mínimas condições de higiene e saneamento.

A pensar nestes muitos milhões para quem uma sanita é um bem de luxo, e sobretudo no impacto desta situação ao nível da saúde e da segurança globais, a Organização das Nações Unidas instituiu o Dia Mundial da Sanita, que se assinala esta quinta-feira.

“Este é um dia dedicado a enfrentar o desafio global do saneamento. Celebra-se para dar ênfase à enorme crise sanitária que o mundo está ainda a combater: 4200 milhões de pessoas vivem ainda sem saneamento — o que corresponde a mais de metade da população global — e 673 milhões ainda praticam a defecação a céu aberto”, explica ao Expresso Tinni Sawhney, diretora-executiva da Fundação Aga Khan (Índia).

Fatima Ibrahim, de 10 anos, dirige-se para as casas de banho instaladas na sua escola, no campo de refugiados Tabareybarey, no Níger UNICEF / PHELPS

Com mais de 1300 milhões de habitantes — e a caminho de ultrapassar a China como país mais populoso à face da Terra —, a Índia é dos países onde o impacto decorrente de condições sanitárias de cientes é maior.

Essa vulnerabilidade reflete-se desde logo ao nível da segurança individual nomeadamente das mulheres. Muitos crimes sexuais, nomeadamente violações, acontecem no momento em que as indianas saem de casa para fazerem as necessidades em locais afastados, seja à beira da estrada ou junto a linhas de comboio, seja atrás de arbustos ou montes de lixo.

Risco psicológico e sexual

O problema está à vista de todos e tem sido amplamente analisado. “Vários estudos indicam que a falta de saneamento aumenta as vulnerabilidades de mulheres e meninas de várias formas. Para além da humilhação de terem de se aliviar ao ar livre, há também o medo de serem assediadas e violentadas, e sofrem de stresse psicossocial decorrente de tudo isto”, diz a dirigente do ramo indiano da Fundação Aga Khan.

Eriam Sheikh, de 7 anos, regressa de uma ida à casa de banho, montada sobre estacas, na cidade indiana de Bombaim UNICEF / MANPREET ROMANA

“A situação tem sido particularmente grave em comunidades informais urbanas, onde compartilhar os lavabos públicos com os homens coloca as mulheres em grande risco de sofrerem atos de violência e agressão sexual”, continua Tinni Sawhney.

A falta de casas de banho nas escolas, por exemplo, torna-se fator de absentismo, com consequências nefastas para o percurso educativo das raparigas. Mesmo nos casos em que existe algum tipo de instalação sanitária, muitas alunas são levadas a faltar às aulas durante o período menstrual.

“É inegável que melhorar o saneamento tornaria as vidas de mulheres e meninas mais seguras e saudáveis. Elas são afetadas de forma desproporcional pela falta de acesso a água potável, saneamento e higiene”, a rma Tinni Sawhney. Providenciar estas condições básicas “pode significar que todas as meninas possam continuar na escola quando atingirem a puberdade e que todas as mulheres que acedam a lavabos seguros e protegidos quem libertas do medo de serem agredidas e de perderem a dignidade.”

Uma jovem regressa de uma casa de banho improvisada no mato, na Guiné-Bissau UNICEF / GIACOMO PIROZZI

Trabalho de mais de um século

A presença da Fundação Aga Khan na Índia remonta ao início do século XX quando, em 1905, em Mundra (estado de Gujarate), foi fundada a primeira escola da organização. Nas últimas décadas, a Fundação — que tem delegações em 30 países, entre os quais Portugal — tem desenvolvido trabalho especializado nas áreas do acesso à água potável, saneamento e promoção de hábitos higiénicos.

“Nos últimos cinco anos, a Fundação Aga Khan (Índia) tem apoiado o maior programa de saneamento do mundo — a Missão Índia Limpa — convergindo com os esforços do Governo indiano para eliminar a defecação a céu aberto em todo o país”, diz Tinni Sawhney.

“A Fundação juntamente com as suas agências Programa Aga Khan de Apoio Rural e Agência Aga Khan para o Habitat têm sido fundamentais para facilitar o acesso ao saneamento a mais de 150 mil famílias em cinco estados da Índia. Isto foi possível através de uma combinação de abordagens, como a mudança de comportamentos, a melhoria da capacidade de funcionários do governo e o fortalecimento de instituições comunitárias que foram incentivadas a assumir a responsabilidade pelo processo de mudança.”

Wiseman e Job limpam uma casa de banho comunitária, em Mukuru kwa Ruben, arredores de Nairobi (Quénia)UNICEF / MODOLA

Apesar da pandemia de covid-19, que afeta a Índia em força — é atualmente o segundo país com mais casos (atrás dos EUA) e o terceiro em número de mortos (a seguir a EUA e Brasil) —, a Fundação Aga Khan (Índia) não deixou de assinalar o Dia da Sanita deste ano com um programa de eventos.

“As atividades incluem a colocação de postos de lavagem das mãos e a distribuição de sabonetes em centros de primeira infância, escolas e entre as comunidades, não só para prevenir a propagação de covid-19 e outras doenças infecciosas [como a cólera e a febre tifoide], mas também para garantir a e ciente utilização de água.”

Com este programa, a Fundação Aga Khan espera envolver mais de 50 mil pessoas de comunidades vulneráveis, dos estados de Bihar, Gujarat, Madhya Pradesh, Maharashtra, Telangana e Uttar Pradesh. A longo prazo, está a contribuir para que se cumpra o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 6 — de um conjunto de 17 metas globais, estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015 — que promete saneamento para todos até 2030.

(Nas Ilhas Fiji, este menino está sentado sobre uma sanita abandonada UNICEF / SOKHIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui