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Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    Mohammad Mustafa: a tarefa impossível do novo primeiro-ministro palestiniano

    O líder palestiniano Mahmud Abbas encarregou um economista e antigo quadro do Banco Mundial da formação de um novo governo palestiniano. Mahmud Abbas procura, assim, corresponder à pressão internacional para que injete sangue novo na Autoridade Palestiniana

    Aos 88 anos, Mahmud Abbas, que sucedeu ao histórico Yasser Arafat, é o presidente da Autoridade Nacional Palestiniana (AP) há 19. Desde as eleições de 9 de janeiro de 2005 — em que foi desafiado pelo independente Mustafa Barghouti —, não mais o povo palestiniano teve uma palavra a dizer em relação à sua liderança política.

    Abbas é criticado por se agarrar ao poder, rejeitando indefinidamente a realização de eleições, por ser cúmplice da ocupação israelita, ao participar em ações de coordenação com Israel, e por não revelar efetiva liderança, desde logo no contexto atual em que não é tido nem achado nas negociações internacionais em curso relativas à guerra em Gaza.

    Pelo contrário, desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, Abbas tem pautado a sua reação grandemente pelo silêncio.

    Economista respeitado

    Esta quinta-feira, o Presidente Mahmud Abbas esboçou um movimento no sentido de corresponder aos apelos internacionais — e, concretamente, à pressão dos Estados Unidos — para que injete sangue novo na AP. Mahmud Abbas nomeou um novo primeiro-ministro da AP.

    Mohammad Mustafa, o escolhido, é um conselheiro económico presidencial de longa data, com currículo e experiência reconhecidos nos corredores da alta finança mundial.

    Nascido a 26 de agosto de 1954, na cidade de Tulkarem (Cisjordânia), Mohammad Mustafa formou-se em Engenharia Elétrica na Universidade de Bagdade (Iraque) e fez um doutoramento em Economia e Administração de Empresas na Universidade George Washington (Washington D.C., EUA).

    Sem filiação partidária, já foi vice-primeiro-ministro em vários governos palestinianos e também ministro da Economia entre 2013 e 2015, quando ficou encarregue de tratar da reconstrução de Gaza após a guerra de 2014, que durou sete semanas e provocou mais de 2100 mortos entre os palestinianos.

    “Infelizmente, vamos ter de voltar a fazê-lo, espero que com melhores resultados desta vez”, afirmou a 17 de janeiro passado, durante uma intervenção no Fórum Económico Mundial de Davos. “A catástrofe e o impacto humanitário desta guerra é muito maior do que em 2014. Não podemos evitar sentirmo-nos muito mal pelas famílias e pelo povo da Palestina pelas repetidas guerras contra eles. Espero que desta vez seja a última.”

    Mustafa foi a Davos na qualidade de presidente do Fundo de Investimento da Palestina (FIP), que tem cerca de 1000 milhões de dólares (mais de 915 milhões de euros) em ativos e financia projetos em todo o território ocupado.

    Goza de prestígio nessa qualidade, mas sobretudo em virtude de uma carreira de mais de 15 anos ao serviço do Banco Mundial.

    No decreto presidencial em que encarregou Mohammad Mustafa de formar governo, divulgado pela agência noticiosa palestiniana Wafa, na quinta-feira, Mahmud Abbas atribuiu-lhe três frentes prioritárias:

    1. “Liderar, maximizar e coordenar os esforços de ajuda na Faixa de Gaza, e fazer a transição rápida e eficaz da ajuda humanitária necessária para a recuperação económica, e depois organizar a reconstrução do que foi destruído pela máquina de guerra e pela agressão nas províncias do sul e do norte. Estes esforços devem fazer parte de uma visão clara que estabeleça as bases de um Estado da Palestina institucionalmente independente, com infraestruturas e serviços.”
    2. “Desenvolver planos e mecanismos de aplicação para a reunificação das instituições nas regiões do país como uma única unidade geográfica, política, nacional e institucional.”
    3. “Continuar o processo de reforma em todos os domínios institucionais, de segurança, económicos, administrativos e ao nível das finanças públicas, visando um sistema de governação robusto e transparente, sujeito à responsabilização, o combate à corrupção e no garante de uma boa governação.”

    Mustafa tem em mãos a formação de um governo tecnocrata na Cisjordânia ocupada que, potencialmente, possa administrar a Faixa de Gaza quando a guerra chegar ao fim. Este é o plano de Mahmud Abbas, que não contempla os obstáculos do lado de Israel, designadamente, a curto prazo, a opção Benjamin Netanyahu pela continuação da guerra e, a longo prazo, a rejeição de um Estado palestiniano.

    Afirmou o primeiro-ministro de Israel em janeiro passado: “Não irei comprometer o controlo total da segurança israelita sobre todo o território a oeste da Jordânia”, ou seja, Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. “E isto é contrário a um Estado palestiniano.”

    A guerra na Faixa de Gaza e a ocupação israelita da Cisjordânia relegaram a AP para a condição de líder do povo palestiniano mas apenas no papel. Em Gaza, até ao início da guerra, quem controlava o território era o Hamas. E na Cisjordânia, apenas cerca de 40% do território é, em teoria, governado total ou parcialmente pela AP.

    Instituída pelos Acordos de Oslo de 1993 — os últimos tratados de paz celebrados entre israelitas e palestinianos —, a AP nasceu com a missão de funcionar como um governo provisório até à proclamação de um Estado palestiniano, a que se seguiria a eleição de órgãos políticos definitivos.

    A ocupação da Palestina, a luta fratricida entre várias fações políticas — que acabaram com o islamita Hamas a governar um território e a secular Fatah (maioritária da AP) a controlar o outro —, bem como a própria liderança da AP (envelhecida, corrupta e desacreditada) minaram esse objetivo.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

    Há quase dez anos, a Suécia reconhecia o Estado da Palestina: ainda reconhece e que ganharam os palestinianos com isso?

    Na União Europeia, há nove países que reconhecem o Estado da Palestina. Entre eles, apenas a Suécia deu esse passo quando já era membro da comunidade europeia, em 2014. A decisão não originou o esperado efeito de contágio na Europa e, nos últimos anos, Estocolmo tem-se reaproximado de Israel. No atual Governo, há quem defenda a reversão dessa política que, para já, não está a ser considerada. Para os palestinianos, o reconhecimento do seu Estado é, acima de tudo, um apoio moral, em especial em contexto de guerra

    A questão da Palestina não passa totalmente ao lado da campanha para as legislativas em Portugal. Nos programas eleitorais, há três partidos que inscreveram o tema nas suas prioridades de política externa.

    A Coligação Democrática Unitária (CDU) diz que, “por uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo”, solidariza-se “com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos”, nomeadamente com vista “ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina”.

    Na mesma linha, o programa do Livre consagra o direito à autodeterminação do povo palestiniano e propõe “reconhecer a Palestina como Estado independente e com as fronteiras de 1967 definidas pelas Nações Unidas”. O Bloco de Esquerda defende o “reconhecimento imediato do Estado da Palestina por parte de Portugal”.

    A concretizar-se o reconhecimento bilateral do Estado palestiniano, Portugal tornar-se-ia o segundo país da União Europeia (UE) a fazê-lo enquanto membro da comunidade.

    A Suécia foi pioneira ao reconhecer a Palestina em 2014. À época, outros oito membros da UE já o tinham feito, mas nos anos 1980 quando ainda não tinham aderido ao bloco comunitário: seis eram do leste europeu, então sob a esfera de influência da União Soviética, e os outros dois ilhas do Mediterrâneo.

    “A minha impressão é que [o reconhecimento da Suécia] foi importante para os palestinianos, mas principalmente foi simbólico”, diz ao Expresso o sueco Jacob Eriksson, professor no Departamento de Política da Universidade de York, no Reino Unido. “Foi uma afirmação importante do direito palestiniano à autodeterminação, mas não gerou o impulso no sentido de um reconhecimento mais generalizado entre os Estados-membros da UE que tanto o Governo sueco como o palestiniano esperavam.”

    Não só a iniciativa da Suécia não teve o efeito de contágio que se anteciparia — hoje, dos 27, continuam a ser os mesmos nove a tratar a Palestina com igual estatuto político — como, no atual contexto de guerra e de um quotidiano de morte, fome e destruição na Faixa de Gaza, o reino escandinavo não disfarçou uma recente mudança de posição de maior proximidade a Israel.

    Suspensão da ajuda à Palestina

    Após o ataque de 7 de outubro do Hamas a Israel, a Suécia demorou apenas quatro dias para suspender a ajuda à Palestina, isentando dessa decisão a assistência humanitária. Um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 11 de outubro revelava um apoio inequívoco a Israel. “O Governo condena sem reservas os ataques a Israel realizados pela organização terrorista Hamas”, lia-se.

    “Em resposta aos ataques, o Governo instruirá a Sida [Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional] a realizar uma revisão da ajuda à Palestina para garantir que nenhum dinheiro sueco vá para atores que não condenem incondicionalmente o Hamas, que pratiquem violência, ameacem ou encorajem a violência contra o Estado de Israel, ou a sua população, ou prossigam uma agenda antissemita, nem para pessoas associadas a tais atores.”

    O atual Executivo sueco é liderado por Ulf Kristersson, do partido Moderados (centro-direita), que governa apoiado numa coligação que inclui também Democratas-Cristãos, Liberais e é apoiada pelos Democratas Suecos (extrema-direita), que formalmente não fazem parte do Governo, mas conseguiram impor a sua política de imigração.

    “Os Democratas Suecos e o Partido Liberal — dois partidos tradicionalmente fortemente pró-Israel — continuam a apelar ao Governo para revogar o reconhecimento [da Palestina], mas isso tem sido rejeitado pelo Executivo”, diz Jacob Eriksson. “O atual ministro dos Negócios Estrangeiros, Tobias Billström, foi ele próprio contra o reconhecimento da Palestina, descrevendo-o como prematuro e infeliz, mas mesmo assim comprometeu-se a defender essa política.” O governante defendeu que esse passo “beneficiaria o Hamas”.

    A 22 de novembro, uma gaffe do primeiro-ministro Ulf Kristersson, num evento público em Gotemburgo, expôs de forma embaraçosa a defesa acérrima de Israel. “A Suécia e a União Europeia estão unidas no sentido de que Israel tem o direito a [praticar] genocí… tem o direito à legítima defesa”, corrigiu, não evitando reações da audiência. “Israel tem o direito de cometer genocídio?” “Nós ouvimos!” “Isso não é legítima defesa.”

    Na sua última posição relativamente à guerra, a 22 de fevereiro, e já após muito sangue derramado no território palestiniano, o Governo sueco equilibrou argumentos. Defendeu que “Israel tem claramente o direito de se defender contra o terrorismo e o lançamento indiscriminado de foguetes”, mas acrescenta que “o direito à defesa de Israel não é absoluto” e que “deve ser exercido em conformidade com o direito internacional, incluindo o direito humanitário internacional”.

    A Suécia reconheceu a Palestina a 30 de outubro de 2014, na sequência da subida ao poder de um Governo liderado pelo Partido Social-Democrata (esquerda). No seu primeiro discurso no Parlamento, a 3 de outubro, o primeiro-ministro Stefan Lofven afirmou:

    “O conflito entre Israel e a Palestina só pode ser resolvido através de uma solução de dois Estados, negociada de acordo com o direito internacional. (…) Uma solução de dois Estados requer reconhecimento mútuo e vontade de coexistência pacífica. A Suécia reconhecerá, portanto, o Estado da Palestina.”

    O reconhecimento sueco assemelhou-se a um sismo político que ameaçava provocar réplicas por toda a Europa. Isso aconteceu não ao nível de governos, mas apenas de parlamentos. No espaço de dois meses, ao estilo de um efeito dominó, a Palestina foi reconhecida (de forma não vinculativa) pela Câmara dos Comuns do Reino Unido, pelo Senado da República da Irlanda, pelo Congresso dos Deputados de Espanha, pela Assembleia Nacional francesa e pelo Parlamento Europeu. Outras assembleias juntar-se-iam à lista.

    A 12 de dezembro de 2014, também a Assembleia da República portuguesa aprovou uma resolução que “insta o Governo a reconhecer, em coordenação com a União Europeia, o Estado da Palestina como um Estado independente e soberano, de acordo com os princípios estabelecidos pelo Direito Internacional”.

    A falta de adesão de outros países europeus ao exemplo da Suécia levou o reino nórdico, com o passar do tempo, a equilibrar a sua posição e, ainda na época da governação social-democrata, a reaproximar-se de Israel. A 18 de outubro de 2021, a ministra dos Negócios Estrangeiros Ann Linde deslocou-se a Jerusalém, naquela que foi a primeira visita a Israel de um chefe da diplomacia sueca em dez anos.

    Mais recentemente, a 28 de agosto passado, uma delegação de deputados suecos democratas-cristãos foi recebida, em Israel, pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que, como escreveu na rede social X, expressou “apreço pela mudança de posição da Suécia em relação a Israel”.

    Outro país que redefiniu a sua posição foi a República Checa. Esta nação do leste europeu reconheceu o Estado da Palestina em 1988, porém, nos últimos anos, tem-se revelado um fiel aliado de Israel.

    A 29 de novembro de 2012, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas votou favoravelmente a atribuição do estatuto de “Estado observador” à Palestina, os checos pronunciaram-se contra, juntamente com apenas mais oito países de um total de 188 que participaram na votação. Ao lado da República Checa, para além de Israel, votaram Estados Unidos, Canadá, Panamá, Micronésia, Palau, Nauru e Ilhas Marshall.

    Jacob Eriksson diz que, na Suécia, o assunto Palestina mobiliza, mas não ao nível, por exemplo, da guerra na Ucrânia que precipitou a adesão do país à NATO, viabilizada, na semana passada, pela ratificação no Parlamento da Hungria, o último dos 30 membros da Aliança Atlântica a fazê-lo.

    A 15 de novembro, em entrevista ao jornal sueco “Dagens Nyheter”, a embaixadora palestiniana em Estocolmo, Rula Almhaissen, disse sentir-se triste: a Suécia “não é mais o país que conheci”.

    Jacob Eriksson considera a política sueca “importante no atual contexto da guerra, pois afirma a visão política a que a grande maioria da comunidade internacional, incluindo o mundo árabe, apela no sentido da garantia de uma paz duradoura”, diz.

    “Qualquer progresso relativamente à abertura de relações entre Israel e outros países árabes, como a Arábia Saudita, e à reconstrução de Gaza depende de passos concretos na direção de uma solução sustentável de dois Estados. Se outros Estados-membros da UE decidirem reconhecer o Estado palestiniano à luz da guerra em curso, como há rumores que o sugerem, e houver progressos no sentido de uma solução de dois Estados, então o Governo social-democrata sueco de 2014, que reconheceu a Palestina, sentir-se-á justificado.”

    Para os palestinianos, como Abdul Rahman Haj Ibrahim, professor na Universidade de Birzeit, de Ramallah (Cisjordânia ocupada), “qualquer reconhecimento da entidade palestiniana por parte de qualquer Estado dá um apoio moral à [nossa] causa”, diz ao Expresso.

    “E é por isso que é muito importante para nós sermos reconhecidos pela Suécia ou qualquer outro Estado, especialmente agora em que vivemos um genocídio em Gaza e uma limpeza étnica na Cisjordânia. Esperamos que a nossa causa prevaleça e que vejamos um Estado da Palestina livre e soberano.”

    (IMAGEM PALESTINIAN RETURN CENTRE)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

    Nas prisões de Israel há milhares de palestinianos à espera de serem usados como moeda de troca

    O ataque do Hamas a Israel fez aumentar o número de detenções de palestinianos. Nas prisões israelitas, há atualmente cerca de 9000 pessoas oriundas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, umas condenadas a prisão perpétua, outras em vias de julgamento, muitas sem qualquer acusação. O prisioneiro mais famoso é Marwan Barghouti, a quem chamam “o Mandela palestiniano” e que o Hamas quer ver sair em liberdade. Quem também passou pelas prisões israelitas foi Yahya Sinwar, o líder do Hamas que hoje é o homem mais procurado por Israel

    Paris, Cairo, Doha… Nas últimas semanas, estas capitais têm acolhido conversações com vista a uma pausa nos combates entre Israel e o Hamas. A confirmar-se, será a segunda em quase cinco meses. Em novembro, uma trégua de sete dias possibilitou a libertação de 105 reféns (81 dos quais israelitas), levados para dentro da Faixa de Gaza a 7 de outubro, durante o ataque do Hamas — restam ainda 134 no território palestiniano. Por seu lado, Israel abriu as portas das suas prisões a 240 palestinianos, 107 dos quais menores.

    “A questão palestiniana sempre girou em torno das negociações para a libertação de prisioneiros detidos em prisões israelitas, e muito frequentemente em regime de detenção administrativa, o que significa ficarem detidos por tempo ilimitado sem acusação nem julgamento”, explica ao Expresso Giulia Daniele, professora no Instituto Universitário de Lisboa, do ISCTE. “Esta margem de negociação aumentou ainda mais desde 2006, após a vitória do Hamas nas eleições legislativas palestinianas.”

    A 25 de junho de 2006, exatamente cinco meses após o escrutínio palestiniano, o rapto de um soldado israelita, no complexo posto fronteiriço de Kerem Shalom — entre Israel, o Egito e a Faixa de Gaza — daria origem à troca de prisioneiros mais desproporcional de sempre envolvendo Israel e, do outro lado, o Hamas ou o Hezbollah libanês.

    A 11 de outubro de 2011, para receber de volta o soldado Gilad Shalit, Israel aceitou libertar 1027 prisioneiros palestinianos. Do grupo fazia parte Yahya Sinwar, o líder do Hamas que Israel pensa ter sido o ‘cérebro’ do ataque de 7 de outubro e que procura a todo o custo. Recentemente, as Forças de Defesa de Israel divulgaram um vídeo, referente aos primeiros dias da guerra, onde Yahya Sinwar é identificado no interior de um túnel.

    “Benjamin Netanyahu pagou caro a libertação de Gilad Shalit ao ter de libertar mais de 1000 presos palestinianos”, comenta a investigadora, “mas ganhou em termos de consenso nacional. De seguida, tomou a decisão de assassinar Ahmed al-Ja’bari, o comandante operacional das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam”, que raramente aparecia em público e socorria-se de estafetas para comunicar com outros dirigentes do Hamas.

    O homem foi morto a 14 de novembro de 2012, numa rua da cidade de Gaza, atingido por um drone israelita. Esta execução “aumentou ainda mais o consenso em torno de Netanyahu que estava a perder o apoio do seu eleitorado por questões de política interna”. No mês anterior, o Parlamento de Israel votara a sua dissolução após falhar a aprovação do orçamento para o ano seguinte.

    Pintura de glorificação à fuga de seis palestinianos da prisão israelita de Gilboa, a 6 de setembro de 2021, através de um túnel escavado com uma colher MAJDI FATHI / NURPHOTO / GETTY IMAGES

    Quando foi libertado, Yahya Sinwar cumpria quatro penas de prisão perpétua. Israel cedeu em nome de um interesse maior. É o que pode acontecer com milhares de palestinianos que, de forma recorrente, são presos, mantidos nas prisões de Israel — alguns sem condenação ou até acusação — e pontualmente usados como moeda de troca.

    Quer a organização palestiniana Addameer, quer a organização de defesa dos direitos humanos israelita HaMoked contabilizam atualmente cerca de 9000 prisioneiros palestinianos nas cadeias israelitas. Quase 3500 não estão acusados de qualquer crime.

    O número total aumentou significativamente desde 7 de outubro, na sequência da detenção de palestinianos de Gaza envolvidos no ataque e, sobretudo, de habitantes da Cisjordânia ocupada, onde Israel aplica a lei militar à população palestiniana e o direito civil aos seus colonos.

    Desde 7 de outubro, organizações de direitos humanos têm também dado conta do agravamento das condições de detenção dos palestinianos, que passa por “rusgas violentas, transferências retaliatórias entre prisões e isolamento de prisioneiros, menos acesso a água corrente e pão e menos visitas de familiares”, enumerou a organização internacional Human Rights Watch, em finais de novembro.

    No sábado, a agência palestiniana Wafa noticiou a morte de um palestiniano, na prisão israelita de Ramla. Izz al-Din Ziyad el-Banna, de 40 anos, vivia em Gaza, onde foi detido pelas forças israelitas há dois meses. Sofria de hemiplegia e, segundo a Wafa, “foi submetido a tortura após a sua detenção, o que provocou uma grave deterioração do seu estado de saúde”.

    Israel rebate as acusações de maus tratos e de condições desumanas reservadas aos prisioneiros palestinianos dando como exemplo a experiência do próprio Yahya Sinwar. Quando esteve preso, o líder do Hamas foi submetido a uma cirurgia, realizada por médicos israelitas, para remoção de um tumor no cérebro.

    O destino dos prisioneiros palestinianos está omnipresente no quotidiano de quem vive na Cisjordânia e na Faixa de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

    Dos atuais 9000 prisioneiros palestinianos, o maior grupo — quase 3500 — está em regime de detenção administrativa. Isso significa que não só nunca foram julgados como não estão acusados de qualquer crime. Os períodos de detenção vão sendo renovados indefinidamente, com base em informação secreta que não chega ao conhecimento do detido.

    Os prisioneiros podem ficar nesta situação durante meses ou anos. Para Israel, a detenção administrativa é uma arma que enche as prisões de palestinianos que, mais cedo ou mais tarde, podem ser usados no combate político.

    Em junho de 2021, três organizações palestinianas — o Clube dos Prisioneiros da Sociedade Palestiniana, a Comissão para os Assuntos dos Detidos e Ex-Detidos e o Conselho Superior dos Prisioneiros — anunciaram terem documentados mais de um milhão de palestinianos detidos por Israel desde 1967, quando começou a ocupação da Palestina. Para a ONU, o número é credível.

    A arma da greve de fome

    As práticas de detenção abusivas têm suscitado reações por parte dos próprios prisioneiros. “Um instrumento muito importante e representativo utilizado pelos presos é a greve de fome, individual ou coletiva, que já envolveu dezenas de representantes de partidos políticos palestinianos, nas últimas décadas”, recorda a investigadora.

    A última ação coletiva começou a 18 de agosto passado. Mais de 1000 presos deixaram de comer em protesto contra rusgas contínuas aos seus quartos, em várias prisões, com uso excessivo de força. Havia também queixas relativas às visitas de familiares e aos períodos na solitária.

    Hisham Abu Hawash foi protagonista numa das ações da ‘batalha dos estômagos vazios’, como são genericamente conhecidas as campanhas de greve de fome dos palestinianos. Este membro da Jihad Islâmica Palestiniana, natural da aldeia de Dura, perto de Hebron (Cisjordânia), foi libertado a 4 de janeiro de 2022, após 141 dias sem comer, o que o definhou até aos 38 kg. Hawash tinha 40 anos e estava em regime de detenção administrativa havia 15 meses. Oito meses após ser libertado, voltou a ser preso.

    O caso de Hisham Abu Hawash foi imortalizado num mural na cidade de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

    Giulia Daniele realça o compromisso político dos presos que se manifesta mesmo atrás das grades. “Até agora, o diálogo entre Hamas e Fatah foi possível quase exclusivamente graças aos presos políticos.”

    Em 2006, após a vitória do Hamas — numas eleições em que alguns deputados eleitos estavam na cadeia —, “os presos políticos foram capazes de pôr de lado as rivalidades entre fações, em particular entre o Hamas [islamita] e a Fatah [secular]”, diz.

    “O debate — que continua, ainda hoje, nas prisões israelitas entre presos palestinianos — demonstra que todos os partidos se envolveram numa reflexão alargada que contemplou as divisões entre eles, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de encontrar uma unidade nacional como base da resistência contra o ocupante israelita.”

    Essa discussão tornou possível, no primeiro semestre de 2006, a formação de dois governos palestinianos integrados por Hamas e Fatah, o segundo dos quais de “unidade nacional”.

    “Depois de um período de fortes tensões e conflitos intrapalestinianos, começou-se a falar da possibilidade de união graças aos presos políticos e aos documentos de reconciliação nacional assinados por líderes dos diferentes partidos. Em várias ocasiões, esses documentos tiveram como primeira assinatura a de Marwan Barghouti.”

    O Mandela palestiniano

    Chamado de “Mandela palestiniano”, Marwan Barghouti — nascido em 1962, na aldeia de Kobar (arredores de Ramallah, na Cisjordânia) — foi preso e condenado por um tribunal militar israelita a cinco penas de prisão perpétuas, em 2002, estavam as ruas palestinianas tomadas pela Intifada Al-Aqsa, a segunda revolta palestiniana. Barghouti foi condenado por orquestrar ataques contra israelitas.

    A partir da prisão, contribuiu para a redação do Documento de Conciliação Nacional dos Prisioneiros, de 2006, assinando-o em representação da Fatah. Mais recentemente, em abril de 2017, Barghouti liderou uma greve de fome em grande escala contra “o sistema ilegal de prisões arbitrárias em massa e maus-tratos de prisioneiros palestinianos em Israel”, explicou num artigo de opinião publicado no jornal norte-americano “The New York Times”.

    “Liberdade para Barghouti”, pede-se neste mural em Ramallah, onde Marwan surge ao lado de Yasser Arafat, o líder histórico dos palestinianos AHMAD GHARABLI / AFP / GETTY IMAGES

    “Marwan Barghouti é chamado também de ‘o preso excelente’ porque continua a ser, desde a morte de Yasser Arafat [o líder histórico dos palestinianos], em 2004, um dos líderes mais populares, apesar de ter sido condenado a cinco penas de prisão perpétua. É considerado por muitos palestinianos o único capaz de restabelecer a legitimidade da Autoridade Nacional Palestiniana e de assumir as principais prioridades do povo palestiniano num futuro governo nacional”, diz a professora do Instituto Universitário de Lisboa. “Outro ponto a seu favor é a capacidade de realização de uma possível unidade do movimento nacional palestiniano, fragmentado durante muito tempo.”

    Barghouti é imensamente popular na Cisjordânia, já não tanto na Faixa de Gaza. Mas o Hamas, que controla Gaza, sempre declarou que a sua libertação é uma prioridade, no âmbito de um acordo de troca de prisioneiros com Israel. Nas atuais negociações com vista a um cessar-fogo, Marwan Barghouti, da rival Fatah, é um dos prisioneiros palestinianos que o Hamas quer ver sair em liberdade.

    Giulia Daniele tem dúvidas que isso vá acontecer. “Ele é um dos principais inimigos de Israel, que o considera uma figura de destaque do terrorismo palestiniano”, conclui. “Parece-me muito improvável, senão impossível, que o nome dele possa aparecer numa futura lista de troca de presos palestinianos por reféns israelitas. Isso significaria criar a base para uma unidade nacional palestiniana e, dessa forma, fragilizar um dos principais objetivos da estratégia israelita — dividir a sociedade e a representação política palestiniana (Fatah e Hamas) entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.”

    (FOTO PRINCIPAL Nos territórios palestinianos, há murais de homenagem aos palestinianos detidos em prisões de Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

    Morte, fome e destruição: Gaza é uma tragédia a céu aberto

    Responsáveis de organizações humanitárias internacionais com equipas na Faixa de Gaza relatam um horror sem fim naquele território palestiniano. E acusam Israel de obstrução deliberada dos esforços de assistência à população. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras

    “Moramos numa tenda de 15 metros quadrados. Obtemos água todos os dias, vamos encher garrafões a 500 metros de distância. Fazemos pão, porque nas padarias não há. Há carne, outros tipos de alimentos e enlatados que vêm da ajuda internacional”, conta o palestiniano Ahmed numa mensagem enviada ao Expresso. “Os legumes são escassos e ridiculamente caros. Cozinhamos no fogo por falta de gás. A eletricidade está cortada, claro. Há grande aglomeração de pessoas na cidade, muito lixo acumulado. Toda a gente está desempregada.”

    Antes da guerra, Ahmed vivia num apartamento na cidade de Gaza. Os bombardeamentos israelitas deixaram-no ao deus-dará, com a mulher e duas crianças. Agora vive num acampamento em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, onde estão refugiadas 1,5 milhões de pessoas.

    Rafah está em contagem decrescente para o início de uma grande ofensiva terrestre com que Israel espera deitar mão a Yahya Sinwar, o líder do Hamas. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Uma das nossas médicas em Rafah disse que está a escrever os nomes dos filhos nos braços e pernas deles, para serem identificados se forem mortos.”

    Benoit, que participou numa conferência de imprensa virtual com representantes de organizações humanitárias presentes em Gaza, a que o Expresso assistiu, denuncia “os ataques repetidos e persistentes contra unidades de saúde” e descreve um filme de terror: profissionais de saúde mortos em bombardeamentos, pacientes que se recusam a sair dos hospitais com medo de serem mortos por snipers, outros em suporte vital que morrem devido a cortes na eletricidade, bancos de sangue vazios, cirurgias sem anestesia, reutilização de compressas, feridos com infeções graves. “Colegas em Gaza disseram que viram bebés cujas pernas tiveram de ser amputadas antes de aprenderem a andar.”

    As regras da guerra

    Jeremy Konyndyk, presidente da Refugees International, culpa Israel pela “ausência de qualquer processo humanitário de deconfliction”, prática normalizada, mas inexistente nesta guerra. “Muitas vezes, estabelece-se um canal de comunicação, facilitado pela ONU, entre os operadores humanitários e os militares que conduzem hostilidades em determinada área, para que as partes se vejam e os militares saibam onde estão as instalações humanitárias, quais são os movimentos das equipas, e evitem atingi-los.” Israel respeitou esta prática em 2006, na guerra com o Hezbollah.“Toda a negação de acesso à ajuda humanitária é um caminho muito rápido para a fome”, diz Konyndyk. “Se não houver uma operação humanitária significativa e autorizada a operar sem restrições em todo o território, a fome ocorrerá não devido a fenómenos naturais, mas pela forma como esta guerra está a ser conduzida e pelas recusas persistentes e intencionais do Governo israelita de dar acesso à assistência.”

    Sally Abi Khalil, da Oxfam, cita relatos de pessoas que se viram forçadas a comer ração para animais, e de mulheres que não conseguem produzir leite materno. “O uso que Israel faz da fome como arma de guerra tem sido incrivelmente eficaz. Os palestinianos estão à beira da fome.”

    Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial suspendeu a distribuição de ajuda no norte da Faixa, depois de os seus camiões terem sido pilhados por gente desesperada.

    A contas com a justiça

    A 26 de janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou a Israel que tome “medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária” a quem está urgentemente necessitado”. Dia 26, Israel será chamado a reportar de que forma tem correspondido.

    Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo (MdM), defende que não só o Governo de Israel não parou com os bombardeamentos indiscriminados como a ajuda humanitária não aumentou. “A nossa capacidade de atuação em Gaza enquanto organização médica humanitária é muito baixa.”

    Um obstáculo é a dificuldade em fazer entrar ajuda no território, apesar de dezenas de camiões com comida, água e medicamentos estarem parados na fronteira com o Egito. Outro é a impossibilidade de fazer circular a ajuda dentro da Faixa de Gaza. “Bombardeamentos e atiradores furtivos põem todas as atividades em risco”, diz. Há duas semanas, a sede dos MdM foi destruída.

    (FOTO Destruição na área de El-Remal, na Faixa de Gaza, A 9 de outubro de 2023, após bombardeamentos de Israel WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 23 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui