Hassan Nasrallah acusou Israel, esta sexta-feira, de matar civis “de forma deliberada” no sul do Líbano. Num discurso de homenagem a três figuras do Hezbollah “martirizadas” por agentes “sionistas”, o chefe do grupo xiita libanês defendeu que a posição dos Estados Unidos relativamente à guerra na Faixa de Gaza é “a maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha”
O Hezbollah assinalou, esta sexta-feira, o aniversário do “martírio” de três altos responsáveis, todos assassinados por Israel. A ocasião foi aproveitada pelo líder do grupo radical islâmico, Hassan Nasrallah, para recordar que o “inimigo sionista” continua a ser um alvo.
“O nosso objetivo é impor ao inimigo as maiores perdas materiais e humanas possíveis, obrigando-o a admitir a derrota e a retirar-se”, disse o secretário-geral da organização xiita libanesa, num discurso transmitido pela televisão do grupo, Al-Manar. A sua intervenção coincidiu com uma escalada na fronteira entre Israel e o Líbano, que viveu o seu dia mais sangrento na quarta-feira, com onze civis mortos, incluindo cinco crianças, provocados por bombardeamentos israelitas.
Mortes civis são “linha vermelha”
Nasrallah defendeu que Telavive poderia ter evitado matar civis, qualificou o massacre como ato “deliberado” e fez um aviso: “Não toleramos absolutamente nenhum dano aos civis e é imperativo que o inimigo perceba que ultrapassou a linha vermelha a este respeito”, disse. “Quando se trata de vítimas civis, esta questão é particularmente sensível e está presente desde o início da resistência.”
“O inimigo pagará com sangue” por cada mulher e criança morta nas hostilidades ao longo da fronteira, promete Nasrallah.“A resistência libanesa possui mísseis poderosos e precisos que permitem um alcance desde Kiryat Shmona [no norte de Israel] até Eilat”, na costa israelita do Mar Vermelho, no sul.
Desde o início da guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, que dura há mais de quatro meses, a fronteira israelo-libanea tem sido uma frente paralela, com vítimas ocasionais dos dois lados. No dia seguinte à chacina, o Hezbollah disparou dezenas de foguetes contra Kiryat Shmona, no que considerou ser “uma resposta preliminar”.
Hipocrisia americana
O secretário-geral do Hezbollah não isentou de responsabilidades os Estados Unidos, o grande aliado de Israel, no banho de sangue que se vive em Gaza. “A Administração americana é responsável por cada gota de sangue derramada na região”, disse. “Os fundos, armas, mísseis e projéteis de artilharia israelitas vêm atualmente de Washington. Se os Estados Unidos interromperem a ponte aérea para Israel, a agressão contra Gaza cessará.”
“A maior hipocrisia que o mundo hoje testemunha é a posição da Administração americana sobre os acontecimentos em Gaza.”
Nasrallah defendeu que perante os “esquemas americanos e sionistas” na região, só restam duas opções: “a resistência ou a rendição”. E fez a sua escolha: “Em memória dos nossos líderes martirizados, reafirmamos a eficácia da resistência popular como uma opção viável.”
Quem são os três mártires?
Os “mártires” homenageados por Nasrallah, nesta intervenção, foram todos mortos por Israel, na mesma semana, em anos diferentes. O clérigo xiita Ragheb Harb, um dos fundadores do Hezbollah, foi assassinado por libaneses colaboradores de Israel, a 16 de fevereiro de 1984.
O antigo secretário-geral do Hezbollah Abbas al-Mousawi foi morto, com a mulher e um filho, num ataque aéreo israelita contra a escolta em que seguia, a caminho de uma cerimónia de aniversário da morte de Ragheb Harb, a 16 de fevereiro de 1992. E o comandante militar Imad Moghniyeh foi abatido a 12 de fevereiro de 2008, após um ataque com um carro armadilhado atribuído aos serviços secretos israelitas (Mossad).
Todas estas mortes justificam o propósito maior de Nasrallah no combate a que se propõe. “Hoje, em Gaza, na Cisjordânia, no sul do Líbano, no Iémen, na Síria, no Irão e em toda a região, nunca devemos perder de vista a verdade sobre os custos da resistência e os custos da rendição”, concluiu. “O custo da rendição é elevado, perigoso, excessivamente alto e extremamente importante. A rendição no Líbano implicaria o domínio político e económico israelita sobre a nossa nação.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui
Este fim de semana, algures na Europa, os chefes dos serviços secretos dos Estados Unidos, de Israel e do Egito irão reunir-se com o ministro dos Negócios Estrangeiros do Catar para tentar desbloquear uma pausa nos combates na Faixa de Gaza que permita uma troca de prisioneiros. Quase quatro meses após o início da guerra, ainda há 136 israelitas nas mãos do Hamas. A ofensiva de Israel já provocou mais de 26 mil mortos no território palestiniano
É esse, pelo menos, o objetivo de conversações que estão previstas, este fim de semana, algures “na Europa”, noticiou o jornal digital “The Times of Israel”.
Por determinação do Presidente Joe Biden, o enviado dos Estados Unidos será o diretor da CIA, William J. Burns, com a missão expressa de “ajudar a mediar um acordo ambicioso entre o Hamas e Israel”, escreve “The Washington Post”.
Do lado israelita, irá igualmente o chefe dos serviços secretos, David Barnea, que lidera a Mossad.
Quem são os mediadores?
Há dois países empenhados na aproximação entre Israel e o Hamas. Um deles é o Egito, que foi o primeiro país árabe a celebrar um tratado de paz com Israel, em 1979, e que será representado por Abbas Kamel, chefe dos serviços de informação do país.
O outro é o Catar, um dos financiadores do Hamas, e que desde o início da guerra tem assumido o papel principal nos esforços de mediação. Nestas conversações, o pequeno reino do Golfo será representado pelo primeiro-ministro e simultaneamente ministro dos Negócios Estrangeiros Sheikh Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani.
Al Thani deverá seguir depois para os Estados Unidos já que, na segunda-feira, tem prevista a participação num evento organizado pelo think tank Atlantic Council, em Washington D.C., onde, entre outros tópicos, vai falar sobre como inverter a escalada do conflito no Médio Oriente.
As partes aceitam os mediadores?
Nos últimos dias, a relação entre Israel e o Catar sofreu um abalo, após terem sido divulgadas palavras do primeiro-ministro de Israel, proferidas num encontro com familiares de reféns. “Vocês não me ouvem agradecer ao Catar. Essencialmente, o Catar não é diferente da ONU ou da Cruz Vermelha e, em certo sentido, é ainda mais problemático. Não tenho ilusões sobre eles”, afirmou Benjamin Netanyahu.
A divulgação da gravação destas declarações junto dos órgãos de informação israelitas foi autorizada pelo gabinete do próprio Netanyahu, o que revela uma intenção de que fossem tornadas públicas.
Em reação, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Catar considerou as palavras de Netanyahu “irresponsáveis” e “destrutivas”. Na rede social X, Majed Al Ansari escreveu que Netanyahu está “a obstruir e a minar o processo de mediação, por razões que parecem servir a sua carreira política, em vez de dar prioridade ao salvamento de vidas inocentes, incluindo reféns israelitas”.
O que poderá ganhar Israel com um acordo?
A principal reivindicação do Governo de Telavive é a libertação da totalidade dos 132 reféns levados pelo Hamas no dia do ataque e que Israel estima que estejam ainda em cativeiro.
Segundo a agência Reuters, em cima da mesa estará a possibilidade de todos serem libertados, por fases e por categorias — começando pelos civis e concluindo com os militares —, ao longo de uma pausa de um mês nos combates.
Para Israel, uma trégua significa também uma pausa naquela que já é a guerra mais duradoura em quase 76 anos de história do país.
E o Hamas, o que tem a ganhar?
O grupo islamita, que controla a Faixa de Gaza, garantiria, para além da trégua, a libertação de milhares de palestinianos detidos nas prisões israelitas.
Para a população de Gaza, uma pausa na guerra seria também sinónimo de um grande alívio, com a entrada no território de ajuda humanitária. Esta sexta-feira, as Nações Unidas alertaram para a explosão de casos de hepatite A nos acampamentos de deslocados.
Há alguém contrário a um acordo?
Desde logo, o primeiro-ministro de Israel que, não só se tem mostrado defensor da guerra em Gaza como opositor a um Estado palestiniano.
No domingo, na sequência de uma conversa telefónica com Joe Biden, Benjamin Netanyahu declarou ter dito ao Presidente norte-americano que rejeitava as exigências do Hamas considerando que um acordo significaria que outro ataque do género do de 7 de outubro “seria apenas uma questão de tempo”.
Por seu lado, o Hamas tem reiterado a rejeição a qualquer acordo que não conduza ao fim da guerra.
Esta trégua pode prenunciar um cessar-fogo definitivo?
Longe disso. Netanyahu não está sozinho na oposição ao fim da guerra. De forma consistente, governantes israelitas têm-se mostrado contrários a um cessar-fogo permanente sem que a capacidade militar do Hamas seja totalmente destruída.
Esta sexta-feira, o assunto foi objeto de comentário por parte de um antigo secretário-geral da NATO, em termos muito negativos e comprometedores para com o primeiro-ministro de Israel. Em entrevista ao diário espanhol “El País”. Javier Solana considerou que o fim da guerra é improvável “com este Netanyahu”.
“Quando [Josep] Borrell [o chefe da diplomacia da União Europeia] diz que o Hamas foi financiado por Israel, não está a mentir. Disse-o de uma forma muito crua. É verdade que tudo o que Netanyahu podia fazer para dividir os palestinianos, fê-lo.”
Uma trégua seria inédita nesta guerra?
Não. Em novembro, as partes respeitaram uma pausa nos combates que durou sete dias, que permitiu a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e a concretização de uma troca de prisioneiros: o Hamas libertou 105 reféns israelitas e Israel abriu as portas das suas cadeias a 240 mulheres e menores palestinianos.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui
Num território destruído e massacrado, como é hoje a Faixa de Gaza, o combate ao medo e ao trauma, sobretudo junto das crianças, passa muito pela tontice dos palhaços. Em entrevista ao Expresso, o galego Iván Prado, referência mundial do circo solidário, fala da intervenção da sua associação, Palhaços em Rebeldia, nos territórios palestinianos. Recorda um episódio antigo em Gaza que lhe despertou a consciência de que o palhaço é um interlocutor da parte da humanidade “que não se deixa vencer pelas bombas”
Na Faixa de Gaza, o sorriso é uma arma, ainda que ali não haja atualmente motivos para sorrir. No sul daquele território palestiniano, consumido por uma guerra sem trégua vai para quatro meses, uma brigada de “capacetes azuis do riso” desloca-se entre escolas e acampamentos de tendas, onde vivem amontoadas milhares de pessoas que ficaram sem teto.
Estes saltimbancos são habitantes de Gaza, com formação na área das artes circenses. Eles próprios foram afetados e deslocados pelo conflito. “Desde a primeira semana de guerra, temos trabalhado com as crianças, para aliviar o seu sofrimento. Temos esse dever humanitário e profissional para com elas”, diz ao Expresso Majid Elmosalami, coordenador das atividades. “Temos feito muitas atuações em escolas-abrigo e em tendas para refugiados. As pessoas acreditam que são sítios seguros, mas a verdade é que não são.”
Os animadores são alunos e formadores da Gaza Stars Circus School, uma escola de circo estabelecida em 2014, em Beit Lahia, no norte do território. Esta região foi o alvo prioritário dos bombardeamentos e da posterior ofensiva terrestre das forças israelitas. “Não sabemos se a nossa sede foi atingida, mas temos a certeza de que perdemos tudo nesta guerra”, continua o responsável.
Junto dos deslocados, os artistas começam por realizar atividades descontraídas, jogos de grupo e pinturas faciais para criar um clima de diversão. Depois assumem o protagonismo e fazem alguns números de circo, da forma mais criativa possível, tendo em conta o escasso material que têm ao dispor.
A arrecadação onde guardavam os acessórios para as atuações ficava numa escola que foi bombardeada. Com tudo reduzido a cinza, estes voluntários socorrem-se da criatividade. Procuraram materiais intactos e ferramentas caseiras nas ruas e entre escombros e construíram massas, bolas e arcos com as próprias mãos. O vídeo abaixo mostra como.
FALTA VÍDEO
A técnica do improviso não é nova para estes artistas. Por causa do bloqueio à Faixa de Gaza, imposto por Israel e pelo Egito desde 2007, estão impedidos de receber determinado tipo de materiais.
“Não há ninguém nem nenhum sector que não tenha sido afetado por esta guerra. Aconteceu também na área do entretenimento. Perdemos todo o equipamento de circo que recolhemos junto dos nossos amigos estrangeiros durante os últimos dez anos”, diz Majid Elmosalami.
A escola ficou também sem o circo móvel, destruído num bombardeamento. Este miniautocarro, destinado a levar animação — e, com isso, apoio psicológico e psicossocial — às zonas mais devastadas de Gaza, tinha sido adquirido há pouco mais de dois anos na sequência de uma campanha de crowdfunding promovida por um dos principais parceiros: o coletivo espanhol Palhaços em Rebeldia.
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
Esta associação cultural com sede em Pontevedra, na Galiza, que encara a figura do palhaço e as artes circenses no geral como antídotos para as desigualdades, as injustiças, a dor e o sofrimento, tem um compromisso especial com a Palestina. “Temos uma relação de vários anos com a Gaza Stars Circus School” diz Iván Prado, o palhaço que fundou e dirige a organização, em entrevista ao Expresso.
“Visitámo-los, fazemos atuações conjuntas e damos-lhes formação. Mas fundamentalmente damos-lhes apoio económico para que possam andar pelas escolas das Nações Unidas. Neste momento, estão a trabalhar sobretudo em Khan Yunis e Rafah [no sul da Faixa de Gaza]. Também querem dar apoio humanitário — roupa, comida, medicamentos —, por isso estamos a fazer uma campanha para angariar mais dinheiro.”
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
Nascido em Lugo, em 1974, Iván Prado é uma referência mundial do circo solidário. Esse percurso internacional levou um forte impulso precisamente na Palestina, em 2002, estava Gaza ainda sob ocupação israelita e, também na Cisjordânia, as ruas estavam tomadas pela segunda Intifada (revolta palestiniana). “Descobrimos a importância da alegria e do mundo dos palhaços — a palhaçaria — para as populações que sofriam, após bombardeamentos constantes. Éramos três palhaços e fizemos 28 espetáculos em 22 dias, por toda a Cisjordânia e em Gaza.”
Nessa primeira imersão palestiniana, constataram a esperança que o simples abraço de um palhaço pode provocar. Em Gaza, na zona de Erez, quando estavam prestes a iniciar um espetáculo, no pátio de uma escola, começou um bombardeamento israelita não muito longe dali. “As crianças puseram-se de pé a cantar e a bater palmas para tentar abafar o som das bombas e incentivar os palhaços a atuarem. Preferiam ficar a assistir ao espetáculo, em vez de fugirem e esconderem-se das bombas”, recorda.
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
Este episódio marcou Iván até hoje. “Levou-me a tomar consciência de que o palhaço é um interlocutor dessa parte da humanidade que crê na esperança e no ser humano e que não se deixa vencer pelo medo, pelo terror ou, neste caso, pelas bombas.”
Se, em contexto bélico, o palhaço pode ser uma “arma de diversão maciça”, como defende a Palhaços em Rebeldia, pode também tornar-se um alvo. Foi o que aconteceu com o galego, em 2010, noutra viagem aos territórios palestinianos: foi detido pelas autoridades de Israel e interrogado durante mais de cinco horas.
“Disseram de tudo, que eu tinha o número de um terrorista no meu telefone, que me recusei a colaborar com eles, na realidade queriam que abrisse o meu correio eletrónico num computador do Shin Bet [serviço de segurança interna de Israel], o que é ilegal”, conta. “Mas acima de tudo não queriam que fizéssemos um festival de palhaços, porque para eles a esperança e a alegria é algo que questiona o seu modelo de opressão.”
Passou uma noite numa prisão em Telavive e foi deportado “por razões de segurança”. O ‘caso do palhaço preso’ teve ampla difusão mediática. Apesar de expulso, o espanhol conseguiu voltar à Palestina no ano seguinte para lançar a semente de um projeto improvável, que vingou: o Festiclown Palestina.
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
A primeira edição deste festival internacional de palhaços, em 2011, contou com a participação de 40 artistas — incluindo os Irmãos Esferovite, uma banda de palhaços de Vila do Conde —, que realizaram mais de 100 atuações por toda a Palestina.
De Pontevedra para o mundo
As deslocações dos ‘narizes vermelhos’ vão sendo possíveis graças ao financiamento da casa-mãe — o Festiclown —, um festival do riso nascido em 1999, no município de Pontevedra, dirigido por Iván Prado. No seu sítio na Internet, o evento apresenta-se como “artefacto de alegria rebelde, que usa o riso como alavanca para mover o mundo”.
Além da Gaza Stars Circus School, a Palhaços em Rebeldia tem uma escola de circo no Lajee Center, no campo de refugiados de Aida, em Belém (na Cisjordânia ocupada) e apoia, no mesmo território, a Escola de Circo Palestiniana (Birzeit), outra em Silwan (Jerusalém Oriental) e a organização Human Supporters (Nablus).
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
“Conseguimos enviar-lhes um mínimo de apoio económico para que façam o que sabem, que é animar, levar alegria, tentar aplicar as artes mágicas e esperançosas do circo. No fundo, o nosso universo é aquele lugar onde as coisas impossíveis se tornam possíveis e as coisas possíveis se tornam belas. É a nossa função e é por isso que o fazemos, viajando até lugares, como a Palestina, que leva 75 anos de limpeza étnica e apartheid”, acrescenta Prado.
“Na Palhaços em Rebeldia, colocamos a nossa arte ao serviço da humanidade. O que me faria muito feliz seria que futuros palhaços e palhaças entendessem que a nossa arte é uma ferramenta para construir os sonhos e as utopias da humanidade e que sempre estará ao serviço dos que mais sofrem”, prossegue.
CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL
A vocação internacional desta associação galega já a fez galgar muitas fronteiras e tornou Iván num nómada, com deslocações frequentes a lugares do mundo onde as pessoas que ali vivem não sabem se estarão vivas no dia seguinte. Para lá dos territórios palestinianos, já esteve nos acampamentos sarauís no deserto da Argélia, nos campos de refugiados em Idomeni (Grécia) e nas favelas do Rio de Janeiro. Quando conversou com o Expresso, tinha acabado de chegar de terras indígenas de Chiapas (México).
Nessas regiões esquecidas, apesar das dificuldades e do sofrimento, é fácil provocar o riso, garante. “A ferramenta usada pelo palhaço é a estupidez humana, a partir do próprio ridículo de cada um de nós. Essa é uma linguagem internacional e universal. Quando alguém se põe ao ridículo, faz de tonto e trabalha a partir da lógica da estupidez, consegue estabelecer uma relação em qualquer idioma, cultura e circunstância. Há potencial de comunicação de sobra.”
Quando a guerra terminar, associações como a Palhaços em Rebeldia terão um papel importante num território com muitas crianças órfãs e um grande trauma para debelar. “Seremos imprescindíveis. Nós já estamos a tentar viajar agora para a Palestina. Estamos a ver como e por onde.”
(FOTO PRINCIPAL CORTESIA GAZA STARS CIRCUS SCHOOL)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui
Hassan Nasrallah fez o seu segundo discurso em três dias. O líder do Hezbollah prometeu vingar a morte do alto responsável do Hamas, ocorrida em território libanês, e dirigiu-se às populações do norte de Israel, aconselhando-as a pressionar o Governo de Israel para “acabar com a agressão em Gaza”
Hassan Nasrallah discursou, esta sexta-feira, pela segunda vez em três dias. O secretário-geral do Hezbollah, a organização armada xiita implantada no sul do Líbano, defendeu que o grupo ficaria exposto se não reagisse ao assassínio de Saleh al-Arouri, o número dois do Hamas, em Beirute, num ataque com drone atribuído a Israel, na terça-feira à noite.
Nasrallah referiu-se a Al-Arouri como “um amigo próximo” com quem estava coordenado a vários níveis. “Digo-vos com certeza que isto não ficará sem uma resposta ou punição”, disse Nasrallah, explicando que serão as forças no terreno a decidir a natureza da resposta “no momento e no local apropriados”.
“Não podemos permanecer calados sobre uma violação desta gravidade porque isso significa que todo o Líbano, as cidades e os números ficarão expostos”, continuou Nasrallah.
Israel não assumiu a responsabilidade do ataque que vitimou Al-Arouri, mas, nas redes sociais, responsáveis políticos, como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, saudaram a morte do responsável do Hamas.
Na rede social X, Danny Danon, deputado e antigo embaixador de Israel nas Nações Unidas, felicitou “as Forças de Defesa de Israel, o Shin Bet, a Mossad e as forças de segurança pelo assassinato de Saleh al-Arouri”, em Beirute.
“Oportunidade histórica” para reaver território
No seu discurso, gravado previamente e transmitido esta sexta-feira na televisão, Nasrallah disse que, desde 8 de outubro, o Hezbollah já realizou 670 ações militares ao longo da fronteira com Israel, com as quais destruiu um “grande número de veículos e tanques israelitas”.
Nasrallah acrescentou que essas manobras abriram uma “oportunidade histórica” para o Líbano libertar a sua terra ocupada por Israel, aludindo, entre outras contendas territoriais fronteiriças, às Quintas de Shebaa, disputadas pelas duas partes.
“Enfrentamos uma oportunidade real para libertar cada centímetro das nossas terras libanesas e evitar que o inimigo viole as nossas fronteiras e espaço aéreo”, disse.
Objetivo: aliviar a pressão em Gaza
Nasrallah dirigiu-se também às populações que vivem no norte de Israel e que, em virtude da troca de fogo diária entre Israel e o Hezbollah, tiveram de ser transferidas para locais mais seguros.
“Os libaneses historicamente fugiram de Israel, e hoje quem foge são os israelitas”, disse o líder do Hezbollah. “Israel já estabeleceu uma zona de segurança no sul do Líbano – hoje, a zona de segurança está no norte de Israel. Os habitantes do norte de Israel estão errados ao exigir uma guerra contra o Hezbollah, não os ajudará. Pelo contrário, o que os ajudará a regressar a suas casas é pressionarem o governo para acabar com a agressão em Gaza.”
Nasrallah admitiu que o Hezbollah começou a atacar o norte de Israel para dividir as atenções das Forças de Defesa de Israel e aliviar a pressão sobre a Faixa de Gaza. “A batalha que está a ocorrer no sul do Líbano estabilizou o equilíbrio da dissuasão”, disse.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui
As festividades foram canceladas na cidade onde Jesus nasceu. “Não podemos celebrar quando o nosso povo está a ser morto”
O presépio da Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém lembra as crianças mortas em Gaza MAJA HITI / GETTY IMAGES
O little town of Bethlehem How still we see thee lie Above thy deep and dreamless sleep The silent stars go by
Ó pequena cidade de Belém Tão quieta te encontramos Sobre o teu sono profundo e sem sonho Passam as estrelas silenciosas
Este clássico das canções de Natal, que anima a época há mais de 100 anos, descreve uma localidade idílica que em tudo contrasta com a realidade presente da cidade onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo nasceu. Belém fica no território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel há mais de 50 anos. Devido à guerra na Faixa de Gaza, as festividades foram canceladas. “Não foi difícil tomarmos a decisão”, diz ao Expresso o presidente da Câmara de Belém, Hanna Hanania. “Não podemos celebrar o Natal enquanto o nosso povo está a ser morto. E também a Cisjordânia está sob bloqueio militar.”
Não é a primeira vez que a conflitualidade afeta as celebrações natalícias em Belém, “mas não desta maneira”, diz o autarca. “Esta é a situação mais difícil por que o povo palestiniano já passou. Durante a pandemia, ainda tivemos algumas festividades virtuais e acendemos a árvore de Natal [na Praça da Manjedoura, contígua à Igreja da Natividade], numa cerimónia para um número limitado de pessoas. Desta vez, cancelámos tudo. Nunca enfrentámos uma guerra destas, testemunhamos crimes de guerra todos os dias, a maioria dos mortos são crianças. Como podemos festejar?”
Em Belém, apenas se mantêm as cerimónias religiosas dos vários ritos cristãos — a 25 de dezembro (para os católicos), 7 de janeiro (ortodoxos) e 19 do mesmo mês (arménios). Na Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, o presépio é um amontoado de pedras sobre o qual está deitado um menino Jesus envolto num keffiyeh, o tradicional lenço palestiniano. A instalação recorda as crianças de Gaza que ficaram sem teto ou pereceram sob escombros.
“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, muito ligada ao que se passa hoje em Gaza”, diz ao Expresso o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb, a partir de Belém. “Essa história fala da sagrada família, que tem de deixar Nazaré, no norte da Palestina, por decreto imperial, para ir para Belém, no sul — como aconteceu com o nosso povo em Gaza. Fala de Herodes, um ocupante sanguinário que tentou matar todas as crianças de Belém — em Gaza já foram mortas mais de 8000 crianças. Jesus nasce numa manjedoura porque não tem outro lugar — é o que está a acontecer a 50 mil mulheres grávidas em Gaza, que têm os seus filhos em tendas. E fala sobre o anjo que canta ‘glória a Deus nas alturas’, que significa glória ao Todo-Poderoso — e não aos poderosos. Hoje, Jesus é, na verdade, uma das pessoas em Gaza. Se alguém quiser vê-lo, é lá que ele está.”
Belém é visita indispensável para qualquer cristão que rume à Terra Santa no encalço dos passos de Jesus. É ali que se localiza a Igreja da Natividade, construída no século IV sobre a gruta onde os cristãos acreditam que José e Maria descansaram e Jesus nasceu. Outros destinos obrigatórios são Nazaré (no norte de Israel) e Jerusalém, que palestinianos e israelitas querem para capital dos seus Estados.
Ao longo do ano, Belém recebe entre milhão e meio e dois milhões de visitantes. “No Natal, o turismo internacional cai, porque as pessoas celebram com as suas famílias. Já o turismo local aumenta”, explica o autarca. “Na Páscoa, a maioria dos turistas é do mundo árabe, desde logo do Egito”, onde há dez milhões de cristãos (coptas).
“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, ligada ao que se passa em Gaza”, diz o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb
Por estes dias, “não há um turista na cidade, estamos encerrados”, diz ao Expresso Joey Canavati, diretor do Alexander Hotel, a 800 metros da Igreja da Natividade. “Não podemos reabrir enquanto durar a guerra. As fronteiras e os checkpoints estão encerrados. Todos os 78 hotéis da cidade estão de portas fechadas.”
Um dos mais famosos é o provocador Walled Off Hotel, do misterioso artista britânico Banksy, com vistas sobre o muro de betão que separa Israel da Cisjordânia. “Devido aos grandes desenvolvimentos na região, optámos, com pesar, por encerrar o hotel, por enquanto”, lê-se num aviso publicado no seu site, a 12 de outubro, cinco dias após o ataque do Hamas a Israel, que espoletou bombardeamentos e uma invasão terrestre a Gaza.
Cristãos já não são a maioria
“A economia de Belém depende do sector do turismo”, diz o autarca. “Mal começou a agressão israelita, o motor económico parou.” Hanania estima que a população da cidade ronde as 33 mil pessoas. Apesar da centralidade de Belém no cristianismo, os cristãos não vão além de 20 a 25% da população. “O número de cristãos está a diminuir”, diz Mitri Raheb. “A cada dois, três anos, há uma guerra. As pessoas querem ter vida decente e em liberdade. Muitas emigram.”
Por decreto do líder histórico dos palestinianos, Yasser Arafat — a que o atual Presidente, Mahmud Abbas, deu continuidade —, o autarca de Belém é sempre cristão. No cargo desde abril de 2022, Hanania, cristão ortodoxo grego de 44 anos, explica o processo. Eleito por voto popular, “o Conselho Municipal tem 15 membros, que incluem presidente e vice-presidente. Oito devem ser cristãos e sete muçulmanos, e deve haver três mulheres. Se o presidente é ortodoxo grego, o vice é católico, e vice-versa. Este decreto surgiu para preservar o caráter da cidade. Além de Belém, isto acontece em mais nove cidades da Cisjordânia.” Uma delas é Ramallah, o centro administrativo.
Jerusalém à distância
Como qualquer outro palestiniano da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, o presidente da Câmara de Belém precisa de autorização das autoridades israelitas para ir a Jerusalém, por exemplo. Essa burocracia vale também para o reverendo Raheb, destacado teólogo de 61 anos, fundador e presidente da Universidade Dar al-Kalima (Belém) e vencedor do Prémio Olof Palme em 2015. “Desde 2000, não estou autorizado a ir a Jerusalém no meu carro, só posso ir de transportes públicos.” Todas as autorizações estão agora canceladas.
Quer o autarca quer o pastor testemunham uma boa relação, em Belém, entre a minoria cristã e a maioria muçulmana. “Somos o mesmo povo. Estamos unidos e lutamos contra a ocupação israelita”, diz Hanania. “Na nossa universidade, três quartos dos estudantes são muçulmanos”, destaca Raheb. Já a relação com os judeus é inexistente. “Temos o muro e não podemos entrar em Israel sem autorização”, continua o reverendo. E “há 22 colonatos judeus em redor de Belém que ocupam 86% das nossas terras”. No de Gilo vivem 40 mil pessoas.
Os entraves à circulação e a expansão dos colonatos inviabilizam, cada vez mais, a contiguidade entre Belém e Jerusalém, que distam menos de 10 quilómetros. A dificuldade de acederem à cidade onde fica o Santo Sepulcro priva os cristãos de viverem na plenitude os principais pilares da sua fé: o nascimento e a ressurreição de Cristo.
Nascido em Belém, de onde só saiu para estudar na Alemanha, o pastor Raheb qualifica assim a tragédia de Gaza: “é o pior momento da nossa história e da minha vida. Vivemos um genocídio, a comunidade internacional apoia e muitas igrejas estão em silêncio”. “Alguns cristãos sionistas apoiam Israel porque querem ver chegar o fim dos tempos. Acham que antes de Jesus voltar, haverá uma grande guerra e querem apressar essa segunda vinda. As igrejas alemãs ficam caladas devido ao Holocausto.”
Informação deste texto foi incluída no artigo “De Gaza à Ucrânia, passando por Itália: presépios de todo o mundo desunidos em tempos de guerra”, de Tiago Soares, publicado no “Expresso Online”, a 24 de dezembro de 2023. Pode ser lido aqui
Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de dezembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.