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Optimismo nas vésperas de Annapolis

A preparação da conferência de Annapolis, com que os EUA querem promover a paz entre israelitas e palestinianos, passou por Lisboa. Foi o tema forte do Euromed, o fórum que reúne os 27 da UE e 12 países do Sul do Mediterrâneo

Já passava largamente da hora de almoço de terça-feira, mas Luís Amado e Javier Solana ainda tinham a cabeça na refeição da véspera. “No jantar de ontem, tivemos um debate muito construtivo e aberto sobre o processo de paz do Médio Oriente”, afirmou o ministro português dos Negócios Estrangeiros e presidente do conselho de ministros da UE, na conferência de imprensa que encerrou a Conferência Euromediterrânica (EuroMed) em Lisboa.

“Construtivo e com bom clima”, corroborou o Alto Comissário para as Relações Externas, Javier Solana. “A relação entre as duas margens do Mediterrâneo está mais madura”, acrescentou o espanhol. O jantar de trabalho de boa memória para Amado e Solana — intitulado “Processo de Paz no Médio Oriente” — sentou à mesma mesa, na segunda-feira, os chefes da diplomacia dos 27 membros da UE e de 12 outros países ribeirinhos do Mediterrâneo.

No centro da conversa esteve a conferência de Annapolis (Maryland), prevista para 27 de Novembro, com que a Administração Bush quer relançar o diálogo entre israelitas e palestinianos. “A grande diferença em relação a experiências do passado é que existe hoje um plano bilateral de negociações entre Israel e a Autoridade Palestiniana”, disse Amado.

Num “briefing” que antecedeu a conferência de imprensa final, a chefe da diplomacia de Israel, Tzipi Livni, admitiu ter feito “um esforço suplementar para vir a Lisboa discutir o futuro da região com parceiros com quem Israel não tem relações diplomáticas”. Porém, alertou a governante israelita, “Annapolis é parte do processo. O mais importante é o dia seguinte a Annapolis”.

Artigo publicado no Expresso Online, a 6 de novembro de 2007. Pode ser consultado aqui

Os novos ‘muros da vergonha’

Crescem em todo o mundo para impedir a circulação humana. Travam terroristas, ilegais e dividem populações

Há quem diga que, com os seus 6352 quilómetros de comprimento, a Grande Muralha da China é a única construção humana visível a partir da Lua. Nunca um astronauta o confirmou, mas tal não belisca o estatuto daquela fortaleza histórica, construída ao longo de 14 séculos. Em 1987, a UNESCO consagrou-a património da Humanidade — algo impensável em relação aos muros que hoje crescem um pouco por todo o mundo. À sombra de argumentos antiterroristas ou anti-imigração ilegal, ou em nome de reivindicações políticas, erguem-se autênticos ‘muros da vergonha’.

Esta semana, numa conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, intitulada ‘A União Europeia e a Imigração’, o vice-presidente da Comissão Europeia, Franco Frattini, afirmou: “Não imagino uma Europa fortaleza”, defendendo que a “Europa tem de estar mais próxima de África”. Ora, é impossível ignorar que, em matéria de imigração, a relação Europa-África tem esbarrado contra muros, nomeadamente em Ceuta e Melilla. Mas como comentou ao “Expresso” o ex-comissário europeu António Vitorino: “A imigração ilegal não se combate com nenhum tipo de muro. Isso não significa que não tenha que haver mecanismos de controlo das fronteiras. Os espaços têm um limite à capacidade de integração de pessoas que vêm de fora”. Os muros são “uma parte de uma política mais geral de controlo dos fluxos migratórios. Por si só, não pode resolver tudo”, acrescentou.

Mas 17 anos após a queda do Muro de Berlim (ícone da Guerra Fria que dividiu fisicamente a Europa e ideologicamente o mundo), o Velho Continente continua a enfrentar a necessidade de derrubar tais obstáculos. Na Irlanda do Norte, sobretudo em Belfast e em Derry, cerca de 40 barreiras separam protestantes e católicos. Ironicamente chamam-se Linhas de Paz.

MÉXICO-EUA: GRANDE MURALHA ÀS PORTAS DO ‘EL DORADO’

A cidade mexicana Tijuana e a norte-americana San Diego estão separadas por uma vedação metálica, onde, do lado do México, pregadas cruzes (umas identificadas, outras anónimas) que homenageiam migrantes que morreram ao tentar atravessar a fronteira TOMAS CASTELAZO / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda que muitas muralhas se estendam mar adentro, como é o caso do Muro da Tortilla — o maior dos vários pedaços de vedação espalhados ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México —, nem sempre conseguem conter a criatividade humana. Do histórico deste muro, erguido para travar a imigração ilegal entre Tijuana e San Diego, consta o feito de um acrobata que, certo dia, com o passaporte na mão, se meteu dentro de um daqueles canhões usados pelos homens-bomba no circo e, tal qual um duplo no cinema, voou para o lado de lá do muro.

A proeza não fez escola, mas ainda hoje cavar túneis é uma técnica popular para quem arrisca entrar clandestinamente nos EUA: já foram descobertos túneis pavimentados, com trilhos férreos e até com electricidade. Mas não são os túneis a maior preocupação da Casa Branca. A 26 de Outubro passado, o Presidente George W. Bush assinou o Decreto Vedação Segura (Secure Fence Act), que prevê a construção de novos 1125 quilómetros de vedação.

Os obstáculos criados pelo muro, equipado com um sofisticado sistema de vigilância, têm levado cada vez mais candidatos a imigrantes a contornar dificuldades atravessando zonas inóspitas, tais como o Deserto Sonoran e a Montanha Baboquivari, no Arizona. Em alguns casos, percorrem 80 quilómetros antes de encontrar a primeira estrada. Mas há quem nunca a alcance.

Também Melilla se tornou um território mais blindado após o drama humano do Verão de 2005. Na sequência de sucessivas avalanchas de subsarianos que tentaram saltar a dupla cerca metálica de 11 quilómetros que percorre a fronteira entre aquele enclave espanhol e Marrocos, as autoridades de Madrid introduziram alterações físicas e tecnológicas para tornar a vedação mais eficaz e… mais humana. Ordenaram então a construção de uma terceira vedação, tridimensional, que, além de retardar o tempo que o clandestino demora a superar os obstáculos, impede que se lesione.

ISRAEL-CISJORDÂNIA: TÃO POLÉMICO QUANTO O CONFLITO

Os receios terroristas em relação ao vizinho do lado são os alicerces de alguns muros. Israel, Índia, Marrocos e Arábia Saudita ergueram barreiras em nome da segurança interna

Grafiti do misterioso artista britânico Banksy no chamado “muro da Cisjordânia”. Intitulado “Balloon Debate”, foi desenhado num troço da vedação em Ramallah MARGARIDA MOTA

Nenhum outro muro provocou tanta polémica como o que Israel está a construir, desde 2003, junto ao território palestiniano da Cisjordânia. Para Israel, esta “vedação anti-terrorista” visa a protecção dos seus cidadãos ante a infiltração de bombistas suicidas; para os palestinianos, trata-se de um ‘muro’ que dificulta a vida na Palestina ao expropriar milhares de hectares agrícolas fundamentais à subsistência de muitas famílias palestinianas.

Projectado com 720 quilómetros, o muro faz várias incursões em território palestiniano, violando a fronteira anterior à guerra de 1967. Há dois anos, o Tribunal Internacional de Justiça considerou-o ilegal. Mas para Israel construir a cerca em cima da Linha Verde seria descurar as reais necessidades de segurança dos israelitas em prol de uma mera declaração política.

Também na Índia, a ameaça terrorista levou à construção de muros nos dois lados da fronteira. A oeste, junto ao Paquistão, uma vedação de 550 quilómetros, em arame, electrificada e equipada com sensores de movimento estende-se ao longo da Linha de Controlo, na disputada região de Cachemira.

A leste, junto ao Bangladesh, está em curso a construção de uma outra cerca, com 3286 quilómetros de comprimento e três metros de altura. Visa não só impedir a infiltração de terroristas como também de contrabandistas e de imigrantes ilegais.

Tanto num lado como no outro, a afectação de terras férteis, que as autoridades indianas justificam com a necessidade de criar uma ‘terra de ninguém’ junto às vedações, gerou protestos por parte dos agricultores locais, subitamente privados do principal meio de subsistência.

Neste caso, contra números não há argumentos. Segundo as autoridades indianas, esta política reduziu em 80% a entrada de terroristas. Igualmente, em Israel, a redução drástica do número de atentados parece dar razão aos defensores do muro.

Distante das atenções da comunidade internacional está o muro do Sara Ocidental — tão distante quanto o próprio conflito o está das agendas dos políticos. Construído nos anos 80, consiste em 2720 quilómetros de barreiras de pedras e areia com três metros de altura, artilhadas com bunkers, cercas e minas.

Na ausência de qualquer tipo de diálogo entre Marrocos e a Frente Polisário — que reclama a independência do Sara Ocidental —, as autoridades marroquinas apostam nesta muralha defensiva para conter as incursões dos guerrilheiros sarauis.

Preocupações terroristas, bem como a prevenção de movimentações não-autorizadas de pessoas e bens através da fronteira, estiveram na base da construção de uma vedação entre a Arábia Saudita e o Iémen. Já este ano, Riade apresentou um projecto multimilionário de construção de uma barreira de segurança ao longo dos 900 quilómetros de fronteira com o Iraque.

COREIAS: A ÚLTIMA FRONTEIRA

Conflitos latentes ou mal resolvidos transformaram algumas fronteiras em locais de grande tensão. Na península coreana e na ilha de Chipre há dois exemplos que perduram

“Zona tampão” administrada pelas Nações unidas, em Nicósia, e proibida a “veículos militares e pessoais” MARGARIDA MOTA

O ex-Presidente americano Bill Clinton afirmou tratar-se do “lugar mais assustador à face da Terra”. A apreciação pode ser subjectiva, mas a fronteira entre as duas Coreias é seguramente o sítio mais patrulhado do mundo. Cerca de dois milhões de militares concentram-se nos dois lados da vedação de 248 quilómetros, repleta de sensores, torres de vigia, arame farpado, minas, artilharia automática, armadilhas para tanques e armamento pesado. A cerca divide, desde 1953, a península coreana pela metade e é tida como a última fronteira da Guerra Fria.

Igualmente, em Chipre subsiste uma demarcação em arame com mais de 30 anos. Com quase 180 quilómetros, a chamada Linha Verde separa, desde 1974, as partes turca e grega da ilha. Até 2003, era uma fronteira inultrapassável. Hoje, há cinco pontos de passagem.

(Imagem de abertura: PIXY)

Artigo publicado no Expresso, a 25 de novembro de 2006

O adeus de Besseisso

O decano dos representantes diplomáticos em Portugal vai regressar finalmente à sua terra natal

Durante mais de vinte anos, Issam Besseisso foi o rosto da causa palestiniana em Portugal. Agora cessa funções como delegado-geral da Palestina em Lisboa e prepara-se para regressar à pátria. Em Portugal, deixa “raízes fortes de amizade”, “muitos amigos” e os três filhos, dois deles nascidos cá. Por isso, não encara a sua partida como um “adeus”, antes um “até já”.

Corria o ano de 1984 quando Issam Besseisso aterrou em Portugal como representante oficial da Organização de Libertação da Palestina (OLP). “Terrorista palestiniano chegou a Lisboa”, noticiou então o jornal “O Dia”. No ano anterior, o assassínio de Issam Sartawi — fundador da OLP e conselheiro de Arafat —, em Montechoro, precipitara a abertura de uma representação palestiniana em Portugal. “Depois daquele acontecimento, sentimos a importância de abrir uma missão diplomática aqui”, recorda Besseisso.

As lutas intrapalestinianas passavam também por Portugal, ainda que o nosso país há muito tivesse aberto as portas aos palestinianos. Em 1976, o Presidente Costa Gomes declarara o reconhecimento oficial da OLP e o ministro dos Negócios Estrangeiros Medeiros Ferreira mandara uma carta a Yasser Arafat oferecendo uma embaixada em Lisboa.

Facto elucidativo do tipo de influência que caracterizava Portugal internacionalmente ocorreria em 1979. “O General Ramalho Eanes foi o primeiro Presidente europeu a receber Arafat. Depois desse encontro, todas as portas da Europa Ocidental se abriram. Este é o papel de Portugal na história.”

Até 1988, Issam Besseisso foi o representante da OLP. Após o Conselho Nacional Palestiniano ter autoproclamado a independência da Palestina, a 15 de Novembro de 1988, em Argel, a missão ascendeu à categoria de Delegação-Geral. Os primeiros apoios oficiais portugueses chegaram após a Guerra do Golfo de 1991 e do consequente congelamento das verbas que Saddam Hussein destinava à OLP. Nesse ano, o Governo de Cavaco Silva atribuiu à delegação palestiniana 23 mil contos (115 mil euros) e no ano seguinte 59 mil (295 mil euros).

Mas mais delicadas do que as contribuições financeiras eram as ajudas políticas. Aquando da Expo-98, o Governo de António Guterres apoiou a criação do Pavilhão da Palestina. “A embaixada de Israel levantou problemas. Queria que se chamasse pavilhão da Autoridade Palestiniana ou pavilhão da Cisjordânia e Gaza”, recorda Besseisso. No Médio Oriente, palestinianos e israelitas viviam tempos de acalmia, mas na gráfica lisboeta onde se imprimiam os boletins da Expo havia grande turbulência à volta das nuances linguísticas. “Houve uma guerra informática…”, diz.

Para o diplomata palestiniano, Mário Soares foi o político português que mais o sensibilizou: “É uma figura internacional muito importante”. Soares cativou-o pela “coragem” com que em 1982, em plena guerra do Líbano, se “disfarçou de pescador para tentar entrar, de barco, nos territórios palestinianos”. E depois quando, durante o bombardeamento israelita a Beirute, acompanhou Arafat, de abrigo em abrigo.

Em Portugal, só não aprendeu a gostar de bacalhau porque, como os portugueses, também os palestinianos já lhe conhecem o gosto. “Nas semanas a seguir à Naqba (expulsão dos palestinianos após a criação de Israel), os refugiados não tinham que comer. Recebemos bacalhau do Governo de Salazar, em resposta a um apelo da ONU. Para os refugiados, bacalhau era só para ricos. Então, vendiam o bacalhau a palestinianos ricos para comprarem arroz, pão, azeite, açúcar… coisas mais importantes para eles”. Quando Besseisso chegou a Portugal, a iguaria não escapou à sua mesa de refeições — ainda que “à moda palestiniana”.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 10 de dezembro de 2005

A luta de Ramzi

Quando era miúdo, Ramzi Aburedwan participou na revolta das pedras contra os israelitas. Agora a sua luta passa por mudar as mentes levando a música aos campos de refugiados

Passava pouco da uma da madrugada quando o grupo se lançou mar adentro, ao encontro das ondas quentes e densamente salgadas do mar Morto. Na escuridão da noite, era impossível descortinar quem boiava ao lado de quem, mas aos poucos tal deixou de ser importante. Ao fim de 15 minutos imperava um silêncio relaxante, que apenas o bater das ondas no areal pedregoso — e as gargalhadas de Uday — quebravam. «Uday precisa disto e de muito mais», comenta Kamal, o motorista palestiniano que conduziu o grupo até àquela aventura nocturna.

Uday nasceu há 13 anos no campo de refugiados de Fawwar, perto de Hebron. O campo não fica longe do mar Morto, mas o pequeno nunca lá estivera. Não fosse, há dois anos, ter-se cruzado com um músico palestiniano, Ramzi Aburedwan, e continuaria talhado a um futuro tão incerto quanto a vida num campo de refugiados reserva a quem lá nasce. «Tinha acabado de fazer um ‘workshop’ no campo de Fawwar quando um grupo de miúdos veio ter comigo», recorda Ramzi. «Uday era um deles. Muito timidamente, disse que queria cantar. Eu disse-lhe que sim», acrescenta.

Uday começa a cantar e Ramzi fica encantado com aquela voz madura num corpo tão franzino. Uday diz que Deus é a fonte do seu talento. Quando for grande quer ser cantor, obviamente. Precisará de sorte para que o seu futuro seja tão generoso quanto o seu presente é promissor. Para já, conta com o apoio incondicional de Ramzi, que o orientará nos estudos musicais e lhe vai dando visibilidade levando-o a cantar em concertos.

Uday faz o que mais gosta: canta MARGARIDA MOTA

Foi pela mão de Ramzi que, este Verão, Uday foi a estrela de um programa de «workshops» e concertos para crianças de campos de refugiados palestinianos, organizados pela associação Al Kamandjati («o violinista», em árabe). Fundada por Ramzi em 2002, em França, onde o palestiniano concluiu este ano o curso de viola no Conservatório de Angers, a organização é o início da materialização de um sonho pessoal — abrir escolas de música nos territórios palestinianos — e Uday a prova de que há talentos em quem apostar.

A acompanhar Ramzi e Uday, de instrumentos às costas, havia nove músicos franceses e dois palestinianos, os companheiros de Uday no banho nocturno no mar Morto. Desde há três anos que Ramzi vem desafiando músicos amigos a acompanharem-no pelos campos de refugiados.

As crianças experimentam a harpa MARGARIDA MOTA

Para Ramzi, os fins justificam o investimento — ou não fosse ele próprio um vivo exemplo de como nascer num campo de refugiados não determina necessariamente um futuro sem perspectivas. Nascido em 1979 no campo de refugiados de Al Amari, em Ramallah, Ramzi despertou para a música após ter conhecido o violinista Mohammed Fadel, em casa de uma amiga. Tinha 17 anos e acedeu a participar numa acção de demonstração de instrumentos. Apaixonou-se pelo som da viola e começou a ter aulas num edifício não muito longe do colonato de Bisgot. «Às vezes, abandonava as aulas durante uns minutos, descia à rua, atirava meia dúzia de pedras aos carros dos colonos e voltava a subir», recorda.

Tinha 17 anos quando iniciou as aulas de viola. Às vezes interrompia-as para ir atirar pedra aos israelitas

Ramzi ganhara o hábito de arremessar pedras aos israelitas quando tinha 8 anos. Um dia, quando regressava da escola com o seu melhor amigo, este caiu desamparado no chão, atingido por um tiro. A reacção de Ramzi foi instintiva e de imediato começou a atirar pedras aos soldados israelitas posicionados à entrada do campo Al Amari. Um fotógrafo registou o momento e a foto correu mundo, transformando Ramzi num símbolo da primeira Intifada palestiniana.

Aos 8 anos, Ramzi foi fotografado a apedrejar soldados israelitas, tornando-se um símbolo da Intifada

Com o tempo, Ramzi aperceber-se-ia que a música pode contribuir para resgatar as crianças palestinianas, ainda que por breves instantes, do seu quotidiano complicado. «Em 2002, quando os israelitas invadiram territórios palestinianos, visitei um centro infantil onde as crianças só faziam desenhos de tanques, armas, sangue… Dois dias depois, voltei com o meu busuk (instrumento oriental) e toquei para eles. Alguns miúdos começaram a desenhar instrumentos. Apercebi-me de como em apenas 30 minutos se pode alterar a imaginação deles. As crianças pintam aquilo que vêem e aquilo com que sonham».

Em Al Amari, Ramzi passou a partilhar alguns momentos de estudo com a vizinhança. «Às vezes tocava em frente à minha casa. As crianças aproximavam-se e pediam-me determinada música. Então eu dizia-lhes que, para tocá-la, tinha de mexer os dedos de determinada maneira. E eles ficavam a pensar que eu era um mágico…»

Os «workshops» são uma ocasião para muitos miúdos verem, pela primeira vez, um violino ou uma flauta

Hoje, os miúdos que frequentam os «workshops» Al Kamandjati não revelam tanta inocência. No entanto, para muitos é uma oportunidade para, pela primeira vez, verem e tocarem num violino, numa flauta ou numa trompa. No «Kids Club» de Jericó, por exemplo, os níveis de concentração, a disciplina e o interesse são elevados. O espaço é acolhedor, há um jardim e uma piscina, sobra espaço para correr e saltar e não faltam jogos nem brinquedos. Pelos corredores, as crianças cruzam-se com o Pinóquio, a Bela Adormecida, Fred Flintstone ou o Nemo, em coloridos murais pintados nas paredes.

Pelo contrário, no campo de Balata — o maior da Cisjordânia, com 21.903 refugiados registados pelas Nações Unidas — os músicos defrontam-se com alguma hostilidade. Balata é um campo difícil. Há ruas tão estreitas que os prédios dos dois lados quase se tocam. Nas escolas, em vez de desenhos e colagens nas paredes, há fotografias coloridas… de mártires. E quando se lhes tenta tirar uma fotografia, os miúdos fazem pose simulando o disparo de uma arma.

Ruas estreitas, no campo de refugiados de Balata MARGARIDA MOTA

No Centro para a Juventude de Balata, o pequeno Saif revela-se um craque do audiovisual, fotografando e gravando as actividades. A dada altura aproxima-se de uma janela e faz um comentário, curto mas imperceptível. Saif quer fazer-se entender e corre a buscar uma máquina digital: aponta-a à janela, faz um grande «zoom», dispara e, por fim, mostra o motivo do seu comentário: «Judeus!» O campo cresceu morro acima e, lá no alto, há postos de vigia israelitas, omnipresentes na vida do campo.

Campo de refugiados de Balata: miúdos agressivos MARGARIDA MOTA

Ramzi salienta que é importante que as crianças palestinianas contactem com povos para além do israelita e percebam que os estrangeiros podem ser sorridentes e gentis — e não necessariamente pessoas dentro de tanques ou com armas na mão. É este, aliás, um dos grandes objectivos das missões Al Kamandjati. Porém, o violetista não partilha os sonhos de Daniel Barenboim, o maestro judeu que fundou uma orquestra israelo-árabe.

É importante as crianças perceberem que há estrangeiros sem tanques nem armas

O logótipo Al Kamandjati — um «keffieh» em forma de clave de sol — traduz, sem equívocos, a natureza palestiniana do seu projecto, ainda que, por vezes, esse cartão de visita lhe dificulte a vida num território onde o conflito está ao dobrar de cada esquina. O clarinetista Thierry, com 23 anos mas um veterano nestas andanças, recorda como, no ano passado, foram proibidos de tocar junto ao simbólico «checkpoint» de Khalandia, entre Ramallah e Jerusalém.

Romain, de 22 anos, recorda outro episódio, num «checkpoint» de Jericó. Quando os soldados dificultavam a passagem a um dos músicos palestinianos, Romain saca do violino e, ali mesmo, acompanha o músico em apuros num concerto improvisado. Acabariam por seguir viagem.

Este ano, o ponto culminante da missão Al Kamandjati foi a inauguração da sua primeira escola, na cidade velha de Ramallah. Na véspera, chegou um contentor com duas toneladas de instrumentos, angariados um pouco por todo o mundo — novos e usados, uns inteiros, outros a precisarem de ser reconstruídos.

(FOTO PRINCIPAL Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na Única do “Expresso”, a 22 de outubro de 2005

Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento

“Abbas precisa de tempo”

Para Riad Malki, director do Centro Panorama, de Ramallah, os bons resultados do Hamas nas eleições podem encorajá-lo a depor as armas e a aderir ao sistema político. Entrevista

Riad Malki, no seu gabinete no Centro Panorama, em Ramallah, em agosto de 2005 MARGARIDA MOTA

Mahmud Abbas toma hoje posse como presidente da Autoridade Palestiniana. “Há obrigações mútuas no Roteiro para a Paz e nós queremos começar a respeitar imediatamente as nossas obrigações”, afirmou na quinta-feira o sucessor de Yasser Arafat. “Esperamos que os israelitas respeitem as suas também”.

Na segunda-feira, no mesmo dia em que o Parlamento israelita aprovava um novo Governo liderado por Ariel Sharon — com a participação do Partido Trabalhista —, o primeiro-ministro israelita telefonava a Mahmud Abbas felicitando-o pela vitória. Nos Estados Unidos, o Presidente George W. Bush afirmava-se “impaciente” para receber o líder palestiniano na Casa Branca.

O rescaldo da eleição de Abbas — no domingo, com 62,3% dos votos — foi fértil em reacções eufóricas quanto ao futuro do diálogo israelo-palestiniano. “A expectativa é enorme”, afirmou ao “Expresso”, a partir de Ramallah (Cisjordânia), Riad Malki, director do Centro Panorama, vocacionado para a promoção da democracia e do desenvolvimento comunitário entre os palestinianos.

Na quinta-feira, no final de um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Sylvan Shalom, o Alto Representante da Política Externa e Segurança Comum da União Europeia, Javier Solana, não podia estar mais de acordo: “As eleições palestinianas converteram uma janela de oportunidades numa avenida em direcção à paz”. Mas, no terreno, qualquer esperança de paz sucumbia às fragilidades. Na véspera, um colono judeu era morto e três soldados israelitas ficavam feridos, durante uma emboscada de activistas da Jihad Islâmica, em Gaza.

Pressionado pela necessidade de corresponder às expectativas de mudança decorrentes da sua eleição, Mahmud Abbas tem pela frente uma tarefa gigantesca. Para Riad Malki, director do Centro Panorama, de Ramallah, a sociedade civil tem um papel crucial a desempenhar na sua orientação.

EXPRESSO — O que esperam os palestinianos de Mahmud Abbas?
RIAD MALKI —
Prioritariamente, uma melhoria das condições económicas e garantias de segurança. Depois, que ele imponha a lei e a ordem nos territórios, que trabalhe nas reformas e que leve os corruptos a tribunal. Esperam que as relações com os países vizinhos árabes melhorem e que chegue a acordo com Sharon no sentido de travar a construção do Muro, o confisco de terras, a expansão dos colonatos, a demolição de casas, o assassínio de activistas e de libertar prisioneiros políticos. Abbas terá de hierarquizar prioridades e precisa de tempo.

EXP. — Está refém da segurança? A cada ataque, a sua autoridade será posta em causa…
R. M. — Claro. Durante a campanha, disse que os ataques a Israel são um erro porque não trazem resultados palpáveis. E apelou à desmilitarização da Intifada, através de manifestações, da desobediência civil e de acções populares que podem minimizar a superioridade militar israelita.

EXP. — Que argumentos pode usar para que Hamas e Jihad Islâmica renunciem às armas?
R. M. — O Hamas participou nas eleições municipais de Dezembro e, na primeira fase, obteve entre 35 e 40%, o que é impressionante. Este resultado pode encorajá-lo a aderir ao sistema político, considerando que pode beneficiar mais no processo eleitoral do que estar à margem e recorrer à resistência armada. Acredito que o Hamas se vá transformar. Se participar nas legislativas de 17 de Julho é um bom indício. E se o fizer, a Jihad Islâmica segui-lo-á.

EXP. — Quanto às reformas, por onde deverá começar?
R. M. — Abbas disse que iria cumprir as obrigações decorrentes do Roteiro para a Paz, que prevê reformas. Já tomou medidas para concentrar os vários serviços de segurança e colocá-los sob a liderança do primeiro-ministro, e não do Presidente. Nos primeiros 100 dias, vai tentar melhorar a situação económica, garantir segurança aos cidadãos e promover reformas. Essas apostas permitirão a consolidação do seu poder, para depois avançar para a fase de negociações com Sharon.

EXP. — A sociedade civil palestiniana é suficientemente forte para o orientar?
R. M. — É a mais forte do Médio-Oriente. Estamos a discutir, colectiva e individualmente, que tipo de agenda adoptar e conceitos como a “transparência” e a “responsabilidade”. Vamos ter um acesso fácil a Abbas. Agora mais do que nunca, temos condições de sucesso. Temos de agarrar a oportunidade.

EXP. — A agenda de reformas palestiniana difere da agenda internacional?
R. M. — Há muito que a sociedade civil palestiniana apela a reformas na Autoridade Palestiniana. Ficamos surpreendidos quando a comunidade internacional em vez de adoptar a nossa agenda de reformas a reduziu a três tópicos: segurança, administração e finanças. Um processo de reformas tem de ser amplo e não selectivo. Como activista, considero a reforma do aparelho judicial a mais importante, porque é a que garante os direitos. Também o sistema educativo carece de reformas. A maior parte dos livros escolares são jordanos e egípcios, os mesmos usados antes de 1967.

EXP. — Este período eleitoral (municipais, presidenciais e legislativas) é o início de um processo democrático como os palestinianos nunca tiveram?
R. M. — Sem dúvida, e essa é que é a ironia. Vivemos tantos anos impedidos de votar e, de repente, fomos invadidos por um carnaval de eleições! Claro que prefiro ter três eleições num ano do que estar 20 anos sem votar.

EXP. — Nesse sentido, Arafat era um obstáculo?
R. M. — Sim e não. Indirectamente, ele encorajou a corrupção, permitindo que corruptos permanecessem nos lugares. Mas não pode ser culpado de tudo, porque vivíamos sob uma ocupação militar.

EXP. — Aparentemente, há uma conjuntura favorável à retoma do diálogo com Israel: Telavive viabilizou as eleições, os trabalhistas entraram no governo, Bush quer receber Abu Mazen… Está optimista?
R. M. — Estou cautelosamente optimista. Há bons indicadores, mas ainda não se reflectiram positivamente no terreno. Não vi Israel levantar os bloqueios nas ruas ou dizer que vai parar a construção do Muro. Cruzo os dedos a toda a hora, temendo que algo de mau possa acontecer, como um ataque suicida do Hamas em Telavive. Seria voltar à estaca zero.

Artigo publicado no Expresso, a 15 de janeiro de 2005