Fundação Champalimaud premeia centro oftalmológico mais antigo do Médio Oriente. Mais de metade do orçamento da instituição vem de donativos
Na sempre agitada região do Médio Oriente, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém é, há décadas, um exemplo de resiliência. Com mais de 140 anos — vividos entre guerras, sublevações, disputas locais e o domínio de poderes externos —, esta unidade médica de Jerusalém Oriental apenas não funcionou entre 1914 e 1919. A Palestina era então uma região do Império Otomano, o qual, após entrar na Grande Guerra, transformou o hospital num depósito de munições.
A resistência às adversidades e como, em paralelo, se consolidou como um centro de referência ao nível do combate à cegueira numa região marcada pelo conflito valeu ao St. John of Jerusalem Eye Hospital (na designação internacional) a atribuição, esta semana, do Prémio António Champalimaud de Visão, no valor de um milhão de euros.
“Este generoso prémio chega no momento perfeito”, diz ao Expresso o CEO do hospital, Ahmad Ma’ali. “Somos a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos a quem vive na Terra Santa e dependemos de contribuições voluntárias, que re presentam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera os 15 milhões de euros. “Dentro de seis a oito meses esperamos ter um hospital a funcionar no Norte da Cisjordânia”, ocupada por Israel.
Casamentos entre primos
Um estudo do St. John apurou que a taxa de cegueira e de deficiência visual entre os palestinianos é 10 vezes superior à verificada no Ocidente. “Há muitas razões. Decorre da falta de acesso a cuidados”, resultante de barreiras físicas e restrições à mobilidade. “Tem a ver também com pobreza e falta de conhecimento”, continua. “Outra causa são os casamentos entre primos em primeiro grau, que ocorrem em 38%-40% da população. Os filhos nascem geralmente com cataratas, glaucoma e outras doenças hereditárias.”
O hospital procurou dar resposta ao problema da consanguinidade e dotou-se de um “laboratório de genética”, onde, a partir de uma análise ao sangue do paciente, determina a probabilidade de os filhos terem a doença. “Se informarmos as pessoas sobre a probabilidade de os seus filhos terem cegueira ou outras doenças, elas decidem com base na informação.”
Fundado em 1882, o St. John foi o primeiro hospital oftalmológico no Médio Oriente. “Devido à instabilidade política que dura há muitos anos, decidimos que, se as pessoas não conseguem vir até nós, temos de conseguir chegar a elas. Nesse sentido, estabelecemo-nos como um grupo de hospitais”, explica.
Além do hospital-mãe, em Jerusalém, o St. John tem antenas na Faixa de Gaza (território palestiniano sob bloqueio) e em Hebron (no Sul da Cisjordânia). Para precaver previsíveis longas esperas dos pacientes nos postos de controlo (checkpoints), o hospital dispõe de três unidades móveis que se deslocam para aldeias remotas e áreas controladas por Israel.
Todos os centros têm desafios específicos. Situado na parte árabe da cidade (ocupada por Israel em 1967, posteriormente anexada e reivindicada pelos palestinianos para capital do seu Estado), o hospital de Jerusalém está no olho do furacão, integrado no bairro de Sheikh Jarrah, palco com frequência de violência entre árabes e judeus.
Já na Faixa de Gaza, controlada pelo grupo islamita Hamas, o trabalho é mais complexo. Tudo o que entra no território é inspecionado por Israel, por receio de que possa ter dupla utilização e cair em mãos erradas. “Quando ali construímos o hospital, em 2016, tivemos de trabalhar em grande proximidade com as autoridades militares israelitas, porque tudo podia ter duplo uso. O cimento, por exemplo, podia servir para construir túneis”, usados de forma clandestina para infltrar no território produtos que não passariam na fronteira. “As inspeções originam atrasos. Mandar algo para Gaza pode demorar um mês a chegar. Temos muito cuidado em garantir que há stock suficiente em Gaza.”
Entre os cerca de 260 profissionais do St. John, há muçulmanos, judeus e cristãos. Os pacientes judeus são ínfimos, “uma vez que eles têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente”. Ma’ali realça a “excelente colaboração com hospitais de Israel”, nomeadamente o prestigiado Hadassah, em Jerusalém Oriental. “Somos um local de formação para ortoptistas judeus enviados pelo Hadassah.”
Quem não paga nada perde
Mandado erguer pela rainha Vitória de Inglaterra, o St. John pertence à Ordem de São João e é “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos”, diz Ma’ali. “A missão é tratar toda a gente, independentemente de raça, religião, classe social ou posses para pagar.”
“Só 40%-45% dos palestinianos têm seguro de saúde. Quando nos são encaminhados, têm cobertura do Ministério da Saúde da AP. Após voltarem a casa, o hospital espera quatro ou cinco anos para ser reem bolsado”, segundo Ma’ali. “Neste momento, a AP deve-nos 3,5 milhões de dólares [3,2 milhões de euros].” Anualmente, a União Europeia desembolsa 13 milhões de euros para abater à dívida da AP aos hospitais de Jerusalém.
No St. John desde 1990, onde entrou como estudante de enfermagem, e CEO desde 2019, Ma’ali diz-se apreensivo com a degradação da segurança na Cisjordânia, onde vive. Para chegar ao trabalho tem de passar um checkpoint. “Como qualquer CEO, tenho de pensar de onde virá o próximo dólar, mas a minha grande preocupação é o acesso de funcionários e doentes ao hospital de Jerusalém.”
DIMENSÃO DO PROBLEMA
10 vezes mais casos de cegueira e deficiência visual são registados nos territórios palestinianos, por comparação aos países ocidentais
142 mil pessoas foram tratadas no Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém em 2022. Foram também realizadas 6900 cirurgias
80 por cento dos problemas oftalmológicos diagnosticados na população palestiniana são curáveis, garante o hospital
(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)
Com mais de 140 anos de vida e trabalho de qualidade na área da oftalmologia, o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém recebe, esta quarta-feira, o prémio anual atribuído pela Fundação Champalimaud. Em entrevista ao Expresso, um responsável do hospital explica por que razão este prémio, no valor de um milhão de euros, chega no momento certo. E também porque nos territórios palestinianos há dez vezes mais casos de cegueira e de deficiência visual do que em qualquer país europeu
O Prémio António Champalimaud de Visão, que anualmente reconhece trabalho desenvolvido na área da prevenção da cegueira, distinguiu, este ano, um projeto de excelência e de grande resiliência atendendo ao nível de conflitualidade na região em que se insere.
O galardoado é o Hospital Oftalmológico São João de Jerusalém (St. John of Jerusalem Eye Hospital, na designação internacional), localizado no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. Esta é a parte árabe da cidade histórica anexada por Israel e onde, com frequência, irrompem atos de violência entre árabes e judeus.
A Fundação Champalimaud justificou o reconhecimento — e a atribuição de um prémio no valor de um milhão de euros — “pelo empenho na prestação de cuidados oftalmológicos essenciais numa região marcada pelo conflito”, e em especial “pelo combate à cegueira na Palestina”.
“Este generoso prémio chega num excelente momento. Fortalecerá a nossa determinação em estendermos os nossos braços amigos a mais pessoas marginalizadas que necessitam de cuidados oftalmológicos nesta parte tão problemática do mundo”, reagiu Ahmad Ma’ali, CEO do St. John, em entrevista ao Expresso.
“O nosso hospital é a única instituição de beneficência prestadora de cuidados oftalmológicos para as pessoas que vivem na Terra Santa, e dependemos muito de receitas voluntárias que representam 55% a 60% do nosso orçamento operacional”, que supera os 15 milhões de euros, diz o responsável. E anuncia: “Estamos prestes a lançar outro projeto, na parte norte da Cisjordânia [território palestiniano ocupado por Israel]. Nos próximos seis a oito meses, esperamos ter um hospital em funcionamento nessa região que forneça cuidados oftalmológicos de qualidade a quem aí vive. Por isso, o momento deste prémio é perfeito.”
As causas de um grande problema
Nos territórios palestinianos, os casos de cegueira e deficiência visual são cerca de dez vezes mais do que os registados em qualquer país europeu. “Há muitas razões para isso. Por vezes, decorre da falta de acesso a cuidados, outras têm que ver com pobreza e falta de conhecimento”, explica o responsável palestiniano.
Outras causas possíveis são “consanguinidade ou casamentos entre primos de primeiro grau, que ocorrem em cerca de 38-40% da população. Os filhos nascem geralmente com catarata, glaucoma e outras doenças hereditárias.” Tal decorrerá de questões sociais e culturais, mas também dos enormes desafios à mobilidade que enfrentam quem vive nos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Faixa de Gaza).
Unidades móveis para chegar a quem não se pode deslocar
Além do hospital-mãe em Jerusalém, o St. John tem instalações em Gaza (território sob bloqueio) e Hebron (no sul da Cisjordânia). Numa região onde ir à urgência de um hospital ou a uma normal consulta médica pode implicar longas esperas em postos de controlo, este hospital dispõe de equipas móveis que se deslocam para a área C — zonas da Cisjordânia controladas a 100% por Israel — e para aldeias remotas ou isoladas.
“Temos mais de 140 anos, fomos o primeiro hospital oftalmológico a estabelecer-se em todo o Médio Oriente. Devido à instabilidade, à insegurança política que atravessamos há muitos anos, decidimos que se as pessoas não conseguem chegar até nós, precisamos de chegar às pessoas. E por isso, tornámo-nos um grupo de hospitais. Com esta estratégia, quem precisar de nós poderá alcançar-nos.”
Ahmad Ma’ali CEO do St. John of Jerusalem Eye Hospital
Em 2022, o St. John tratou quase 143 mil pacientes e realizou cirurgias em mais de 6900. “Fomos credenciados como hospital de qualidade pela Joint Commission International”, um organismo de acreditação de unidades de saúde, com sede nos Estados Unidos.
“Portanto, não se trata apenas da quantidade, mas também da qualidade do atendimento. De muitas formas, o hospital lidera ao nível da formação oftalmológica de médicos e enfermeiros, além de liderar na prestação de cuidados oftalmológicos”, realça Ma’ali.
Excelente colaboração com hospitais de Israel
Entre os cerca de 260 profissionais do hospital, há pessoal de todas as origens sociais e religiosas. A esmagadora maioria dos pacientes é árabe muçulmana, mas as portas estão abertas a cristãos e judeus.
“Temos muito poucos pacientes judeus, uma vez que eles têm um serviço avançado e gratuito do lado israelita. Mas estamos abertos a toda a gente, mesmo colonos e soldados que procurem cuidados médicos à nossa porta”, garante Ahmad Ma’ali, que trabalha no hospital há 30 anos. “Somos também um local de formação para ortoptistas judeus, que nos são enviados pelo Hadassah [hospital universitário israelita de referência, também em Jerusalém Oriental]. Temos uma excelente colaboração com hospitais de Israel.”
Um desejo da rainha Vitória de Inglaterra
Criado em 1882, por determinação da rainha Vitória de Inglaterra, o St. John, que pertence à Ordem de São João, é um hospital “profundamente enraizado nos ensinamentos cristãos. O próprio nome é um indicador disso”, diz o CEO da instituição. “A nossa missão é tratar a todos, independentemente da raça, religião, classe social ou capacidade para pagar” os cuidados médicos ou tratamentos.
“Ficamos felizes em fazer parcerias com quem quer que seja — judeus, muçulmanos, cristãos — que compartilhe o mesmo espírito. Atravessamos fronteiras, deixamos a política para os políticos e concentramo-nos na vertente humanitária do nosso trabalho”, prossegue o CEO do hospital.
O Prémio António Champalimaud de Visão é entregue esta quarta-feira, numa cerimónia realizada na Fundação Champalimaud, com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Esta ligação disponibiliza a lista de vencedores das edições passadas, bem como a composição do júri.
(FOTO Ahmad Ma’ali, CEO do Hospital Olftalmológico São João de Jerusalém, fotografado na Fundação Champalimaud NUNO BOTELHO)
Como nos anos da segunda Intifada, a cidade de Jenin, e o seu campo de refugiados em particular, continua a ser um dos principais bastiões de resistência à ocupação israelita da Palestina. Após um influente ministro israelita ter pedido, há dez dias, uma campanha militar para “explodir prédios, assassinar terroristas, não um, ou dois, mas dezenas, centenas ou, se necessário, milhares”, esta localidade da Cisjordânia tornou-se um alvo óbvio
O mais recente episódio de violência entre israelitas e palestinianos tem como epicentro o campo de refugiados de Jenin, no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Há 20 anos, ali travou-se uma das mais sangrentas batalhas da segunda Intifada (revolta palestiniana). Hoje, uma ampla operação militar israelita, incitada por governantes israelitas extremistas, traz à memória reminiscências desses dias e vaticina um futuro sombrio.
“Tudo faz parte de uma estratégia que começou com o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, e continua até hoje”, comenta ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais, do Instituto Universitário de Lisboa.
“Isso irá piorar ainda mais com uma liderança governamental e uma sociedade abertamente viradas para a extrema-direita. Parece mais do que claro que sem um posicionamento forte da comunidade internacional não será possível superar o impasse atual.”
O que está a acontecer na Palestina?
Israel tem em curso uma operação militar em larga escala na cidade palestiniana de Jenin (norte da Cisjordânia). A ofensiva começou cerca da uma hora da manhã desta segunda-feira (menos duas horas em Portugal Continental), quando um edifício no interior do campo de refugiados foi atingido por drones. Segundo as Forças de Defesa de Israel (IDF), o alvo era um centro de comando usado para planear ataques contra Israel.
Seguiu-se uma incursão terrestre de meios de infantaria, envolvendo mais de 1000 soldados. Se as incursões terrestres israelitas não são uma novidade na Cisjordânia, o facto de esta em particular ter sido precedida por bombardeamentos confere-lhe um caráter excecional.
A troca de fogo entre as tropas israelitas e militantes armados palestinianos provocou até ao momento, pelo menos, oito mortos e 50 feridos, entre os palestinianos. Há notícia de dezenas de detenções.
“As imagens que chegam de Jenin lembram muito o que aconteceu em abril de 2002”, no contexto da segunda Intifada (2000-2005). “Durante a operação ‘Escudo Defensivo’, as forças militares israelitas invadiram o campo de refugiados e ali estiveram mais de dez dias, não permitindo a presença de jornalistas e organizações internacionais”, recorda a investigadora.
“Foi um massacre com centenas de mortos e milhares de feridos, embora de difícil reconhecimento internacional. Foram publicados apenas alguns relatórios bastante genéricos por organizações internacionais para os direitos humanos, como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional”, diz.
“Mas houve testemunhos claros do que aconteceu em documentários, como “Jenin, Jenin”, do realizador palestiniano Mohammed Bakri.”
Também esta segunda-feira parece ter havido um esforço para isolar o campo de olhares condenatórios, ainda que, na era da Internet e das redes sociais, seja impossível tudo controlar. Num vídeo divulgado pela televisão árabe Al-Jazeera, um bulldozer israelita enche de entulho uma rua do campo de refugiados, obstaculizando a circulação de ambulâncias.
Por que razão o alvo é o campo de refugiados de Jenin?
Segundo o Exército israelita, o objetivo da operação é prender “terroristas” e recolher armas do campo. Incursões deste género são frequentes em especial em Jenin e também em Nablus, um pouco mais para sul, onde também se movimentam grupos armados palestinianos.
A 11 de maio de 2002, enquanto cobria uma operação deste género, precisamente no campo de refugiados de Jenin, foi morta a jornalista do canal árabe da Al-Jazeera Shireen Abu Akleh, atingida por fogo israelita. A repórter palestiniana, que tinha também nacionalidade norte-americana, vestia um colete e usava um capacete que a identificavam como membro da “imprensa”.
Nas cartas militares israelitas, há anos que o campo de refugiados de Jenin, estabelecido em 1953, está referenciado como um reduto terrorista. Mais ainda desde 2021, quando surgiram as Brigadas de Jenin, compostas por militantes afetos a vários grupos armados palestinianos, incluindo o Hamas (o grupo que controla a Faixa de Gaza) e a Jihad Islâmica.
“Desde 2002 que o campo de Jenin se tornou um local de resistência”, diz ao Expresso Ahmed, um palestiniano de 28 anos, que vive na Faixa de Gaza. “As pessoas na Cisjordânia sofrem muito. Israel quer as nossas terras para construir colonatos. Deixem-nos, a terra é nossa, é terra palestiniana! Há operações todos os dias. A resistência está a crescer. Está a ficar como Gaza.”
Ahmed diz que a situação em Gaza tem estado calma. Não têm sido disparados rockets na direção de Israel, mas teme que “se a situação ficar mais dura” na Cisjordânia, talvez possa haver retaliação israelita sobre Gaza. “O Hamas [que controla Gaza] tem soldados na Cisjordânia e funciona em Jenin por baixo da mesa”, diz.
Havia indícios de que esta escalada podia acontecer?
A tensão na Cisjordânia vinha em crescendo, com episódios recentes de violência em várias regiões do território, em especial atribuídos a colonos judeus sobre populações árabes.
Nos últimos dias, a agência noticiosa palestiniana WAFA deu conta de colheitas incendiadas, na aldeia de At-Tawani (sul de Hebron), onde próximo existe o colonato de Ma’on, e também do ataque de colonos a uma nascente de água, em Qaryut, na mesma região.
Sem agricultura e sem água, a vida torna-se impossível e é nisso que apostam os colonos — que se movimentam com proteção militar —, para que os palestinianos partam e libertem mais terras para Israel ocupar. Para os palestinianos que ficam, não restam muitas mais opções do que resistir com o que têm à mão.
Paralelamente, desde os corredores do poder em Israel, têm soado discursos verdadeiramente incendiários. O mais recente Governo liderado por Benjamin Netanyahu, composto maioritariamente por forças extremistas e religiosas, não esconde que a ocupação da Palestina é o caminho a seguir.
“Faz parte claramente do programa do Governo israelita que conta agora com muitos membros que querem uma anexação definitiva dos territórios palestinianos”, refere Giulia Daniele.
“Nas últimas semanas, os partidos da extrema-direita ultra-religiosa no atual Governo israelita incitaram a uma operação militar mais abrangente no norte da Cisjordânia com uma possível reocupação de Jenin por ser uma fortaleza de milícias armadas palestinianas que atuam contra soldados e colonos israelitas”, acrescenta.
“Sem alternativas e nada a perder, mais e mais palestinianos (em particular os jovens) apoiam a luta armada, considerando-a o principal meio que o povo palestiniano ainda tem para acabar com a ocupação militar israelita.”
Há dez dias, durante uma visita a um posto avançado ilegal na colina de Evyatar — uma estrutura que pretende ser o início de um colonato —, Itamar Ben-Gvir, o polémico e extremista ministro da Segurança Nacional de Israel, defendeu: “É preciso que haja um colonato total aqui. Não apenas aqui, mas em todas as colinas ao nosso redor”, disse, citado pelo jornal israelita “The Times of Israel”.
“Temos de colonizar a terra de Israel e, ao mesmo tempo, lançar uma campanha militar, explodir prédios, assassinar terroristas. Não um, ou dois, mas dezenas, centenas ou, se necessário, milhares.”
Ben-Gvir é, ele próprio, um ‘soldado’ ao serviço da ocupação, já que vive no colonato de Kiryat Arba, na área de Hebron. Ao abrigo do direito internacional, os colonatos são ilegais.
Que espaço há para uma solução política para a questão israelo-palestiniana?
O processo de paz é inexistente e não há perspetiva de que se reative tão cedo. Do lado palestiniano, uma liderança envelhecida, corrupta e acomodada não dá garantias de credibilidade para lidar com um problema que afeta várias gerações de palestinianos.
“Existem muitas rivalidades dentro da Autoridade Nacional Palestiniana e o debate acerca da sucessão de Mahmoud Abbas”, que tem 87 anos e está no cargo há 18, “contribui para tornar a situação ainda mais instável”, acrescenta Giulia Daniele.
Esta segunda-feira, Nabil Abu Rudeineh, porta-voz do Presidente Abbas, reagiu aos acontecimento em Jenin repetindo o discurso cansado de sempre e qualificando a operação de “um novo crime de guerra contra o povo indefeso”.
Do lado de Israel, para o Governo de Netanyahu, o diálogo não é uma opção realista. E no terreno, a ocupação não pára de se acentuar, tornando o sonho de uma Palestina independente cada vez menos exequível.
Na Cisjordânia, a expansão dos colonatos e a consequente intensificação de um sistema de apartheid entre judeus e árabes alimenta um ciclo vicioso de violência diária que visa uns e outros à vez. Já na Faixa de Gaza, a ocupação faz-se ‘por controlo remoto’, já que, desde 2007, vigora um bloqueio aplicado por Israel e Egito que controla tudo o que entra e sai do território por terra, mar e ar.
Nos dois territórios palestinianos, “a situação é a mesma, mas com instrumentos diferentes”, conclui Ahmed. “Mas Gaza pode ferir Israel com os rockets.” Na ausência de um processo de paz digno desse nome, a luta transfere-se cada vez mais para as ruas, com pedras ou com armas.
(FOTO “Para não esquecer”, lê-se neste mural, no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada MUJJADARA / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui, aqui e aqui
A ano e meio de mandato, o 46.º Presidente dos Estados Unidos viajou até ao Médio Oriente para uma estadia de quatro dias que o levou a Israel, à Cisjordânia ocupada e à Arábia Saudita. Dois objetivos predominaram: a necessidade de conter o Irão e de integrar Israel na região
Meses após usar a palavra “pária” para se referir à Arábia Saudita, Joe Biden foi ao reino promover uma aliança regional MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES
1. O ELEFANTE NA SALA
OIrão e a sua ambição nuclear foram uma sombra que seguiu Joe Biden do primeiro ao último minuto da deslocação ao Médio Oriente este mês. Em Israel, que olha para a República Islâmica como uma ameaça existencial, o Presidente dos Estados Unidos não conseguiu disfarçar uma discordância em relação ao seu mais sólido aliado na região.
Numa entrevista pré-gravada ao Channel 12 de Israel, divulgada no dia em que chegou ao país, Biden defendeu a reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano (a que Telavive se opõe), aceitando manter a opção militar sobre a mesa, “como último recurso”, se Teerão estiver na iminência de obter uma ogiva nuclear.
A apologia das negociações colide de frente com a posição de Israel em relação ao gigante persa. “A única coisa que poderá conter o Irão é saber que, se continuar a desenvolver o seu programa nuclear, o mundo livre usará a força”, disse o primeiro-ministro israelita, Yair Lapid, na conferência de imprensa conjunta com Biden. “A única maneira de detê-los é colocar uma ameaça militar credível sobre a mesa.”
“Continuo a acreditar que a diplomacia é o melhor caminho”, contrapôs Biden. Não ter ouvido da boca do amigo americano palavras mais intransigentes para com Teerão terá sido grande frustração para as autoridades de Israel.
2. NETANYAHU ATIVO NOS BASTIDORES
Um dos israelitas mais vocais na defesa de uma solução militar para o problema iraniano foi o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que governou entre 1996 e 1999 e, depois, entre 2009 e 2021.
O atual líder da oposição assistiu na pista do aeroporto Ben Gurion à aterragem do Air Force One e, logo ali, não enjeitou em comentar o assunto com a imprensa. “Para travar regimes como o Irão, não bastam as sanções económicas e políticas”, disse. “Não há como parar o Irão sem uma opção militar, sem uma ameaça militar credível, na esperança de o deter. Mas se não impedir, não há outra escolha a não ser ativá-la.”
Netanyahu teve direito a um encontro com Joe Biden — “caloroso e excelente”, como qualificou —, onde insistiu na abordagem bélica ao Irão. “Somos amigos há 40 anos, mas, para assegurarmos os próximos 40, temos de lidar com a ameaça iraniana”, afirmou, defendendo que não bastam sanções nem uma aliança defensiva entre Israel e países árabes amigos. “Tem de haver uma opção militar ofensiva credível.” Como “falcão” da política, prometeu: “É o que farei se ou quando regressar ao gabinete de primeiro-ministro.”
Netanyahu, que é o israelita que mais tempo foi primeiro-ministro, aposta todas as fichas nas eleições legislativas de 1 de novembro próximo para regressar à cadeira do poder. As sondagens dizem que é o político mais popular do país.
3. A PRESSÃO DAS ELEIÇÕES
O encontro entre Biden e o primeiro-ministro Lapid, quinta-feira de manhã, no Hotel Waldorf Astoria, em Jerusalém, foi protagonizado por dois líderes pressionados pelo calendário eleitoral.
O Presidente dos Estados Unidos pode ver esfumar-se a curta maioria democrata de que dispõe no Congresso, nas eleições agendadas para 8 de novembro. Já o primeiro-ministro israelita, líder do partido centrista Yesh Atid, tem na mira as legislativas de 1 de outubro, que serão as quintas no país em menos de quatro anos. Lapid está no cargo há menos de um mês, na sequência da mais recente crise na política israelita.
4. O SIONISTA QUE QUER UMA PALESTINA INDEPENDENTE
À chegada a Israel, naquela que foi a sua primeira visita enquanto 46.º Presidente dos Estados Unidos, Biden recordou a primeira visita ao país, em 1973, era ele senador pelo Delaware.
Desde então, Biden já foi oficialmente a Israel dez vezes, o que lhe possibilitou o “privilégio” de conhecer pessoalmente todos os primeiros-ministros desde Golda Meir (1969-1974). “Repito-o: não é preciso ser-se judeu para se ser sionista”, disse agora.
A confissão agradou aos israelitas e lançou desconfiança entre os palestinianos, expectantes em relação ao que ia dizer-lhes. “Israel deve permanecer um Estado judeu, democrático e independente. A melhor forma de o conseguir continua a ser uma solução de dois Estados para dois povos, ambos com raízes profundas e antigas nesta terra.”
Muitos israelitas não terão apreciado que um sionista de coração fizesse a apologia da solução de dois Estados. “Continua a ser, na minha opinião, a melhor maneira de garantir o futuro de igual liberdade, prosperidade e democracia para israelitas e palestinianos”, disse Biden, “ainda que não seja [viável] no curto prazo.”
O roteiro de Joe Biden contemplou umas horas na cidade palestiniana de Belém, na Cisjordânia ocupada. Visitou a Igreja da Natividade, que abriga o local onde nasceu Jesus Cristo — Biden é cristão e católico — e reuniu-se com o Presidente da Autoridade Palestiniana, mas não se comprometeu com um calendário para a retoma das negociações de paz.
Biden e Mahmud Abbas tentaram, em vão, que o encontro fosse selado com uma declaração conjunta, inviabilizada pela complexidade semântica do problema. Os norte-americanos queriam que constasse que o futuro Estado palestiniano teria a sua capital “em” Jerusalém Oriental, enquanto os palestinianos exigiam escrever que “a” capital fosse Jerusalém Oriental.
5. UMA VISITA QUE IRRITOU OS ISRAELITAS
Sexta-feira de manhã, antes de seguir para a Cisjordânia, Biden fez uma visita a Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade santa, ocupada por Israel e que os palestinianos querem para sua capital) que muito indispôs as autoridades israelitas.
O Presidente dos Estados Unidos visitou o Hospital Augusta Victoria, no Monte das Oliveiras (fora da Cidade Velha), recusando a presença de qualquer representante oficial israelita na sua comitiva.
“Estou muito feliz por Biden visitar tanto o ocidente como o oriente da cidade. Tem todo o direito de realizar uma visita privada, mas tenho de dizer que gostava de o acompanhar”, lamentou o autarca de Jerusalém, Moshe Lion.
A iniciativa de Biden é difícil de “encaixar” por parte de alguns sectores israelitas, já que, em 2017, Donald Trump reconheceu formalmente Jerusalém “a capital de Israel” e ordenou a transferência da embaixada dos Estados Unidos para a cidade santa.
Outra circunstância contribuiu para afastar israelitas desta visita. O Hospital Augusta Victoria foi cofundado a seguir à primeira guerra israelo-árabe (1948) por luteranos alemães e pela agência da ONU que ainda hoje assiste os refugiados palestinianos (UNRWA), precisamente para acudir aos palestinianos expulsos de Israel após a criação do Estado.
Desde então, vigora neste hospital uma política de independência que lhe garante boa cooperação com israelitas e palestinianos, mas que, na prática, lhe permite barrar a entrada a representantes israelitas que ali vão em missão de acompanhamento de convidados.
6. ARMAMENTO DE HOJE E DE AMANHÃ
Acabado de chegar a Israel, quarta-feira, foi no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, que Biden cumpriu o primeiro ponto do seu programa de visita. Na pista, uma exposição de equipamento bélico de última geração funcionava como prova da aplicação dos milhões desembolsados por Washington para financiar a indústria israelita de armamento. São exemplos o sistema de defesa antiaéreo Iron Dome (Cúpula de Ferro) e o novo sistema de interceção a laser Iron Beam (Viga de Ferro), em desenvolvimento, com a chancela da empresa israelita Rafael Advanced Defense Systems.
7. UM VOO PARA A HISTÓRIA
De Israel, Biden viajou diretamente para a Arábia Saudita. O voo entre Telavive, na costa do Mar Mediterrâneo, e Jeddah, na costa do Mar Vermelho, fez história, já que os dois países não têm relações diplomáticas. Só muito recentemente, após a normalização das relações diplomáticas entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, em 2020, é que Riade passou a autorizar que aviões israelitas atravessassem o seu espaço aéreo.
Biden descreveu o voo como “um pequeno símbolo das relações emergentes e dos passos na direção da normalização [diplomática] entre Israel e o mundo árabe, em que o meu Governo trabalha para aprofundar e expandir”. O voo foi bom prenúncio já que, no mesmo dia, Riade anunciou a abertura dos céus nacionais aos aviões civis israelitas. Companhias aéreas como a El Al vão passar a encurtar horas nos seus voos para oriente e a equacionar abrir novas rotas.
Nos últimos dois anos, através dos Acordos de Abraão, os Estados Unidos têm pressionado no sentido da integração de Israel na região do Golfo Pérsico. Se foi a Administração Trump que apadrinhou os primeiros Acordos, Biden não os enjeita e colocou-os no capítulo prioritário da sua agenda externa, com o ambicioso objetivo de envolver a Arábia Saudita, o gigante árabe do Médio Oriente.
A deslocação de Biden à Arábia Saudita teve também essa componente, ainda que o próprio tenha admitido, em entrevista à televisão israelita, que a normalização total entre Telavive e Riade vai “demorar muito tempo”.
“Precisamos de ter um processo, e esse processo precisa de incluir a aplicação da Iniciativa de Paz Árabe [de 2002, também conhecida como Iniciativa Saudita]”, explicou o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Adel al-Jubeir. “Uma vez que nos comprometemos com um acordo de dois Estados com um Estado palestiniano nos territórios ocupados, com Jerusalém Oriental como capital, esses são os nossos requisitos para a paz.”
8. A NOVA ARQUITETURA DO MÉDIO ORIENTE
Joe Biden chegou ao Médio Oriente numa altura em que o mundo se debate com altos preços da energia e grave insegurança alimentar, decorrentes da invasão russa da Ucrânia.
Restaurar a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita — deteriorada pelo assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em 2018 — tem, por isso, tripla importância: minimizar a crise económica levando o gigante saudita a abrir as torneiras do petróleo, promover a segurança pugnando pela integração regional de Israel e criar uma frente de defesa regional de contenção do Irão e dos seus próximos.
No mesmo dia em que Biden chegou à Arábia Saudita, o Irão mostrou as garras e apresentou a sua primeira divisão de drones, estacionada no Oceano Índico. Também a Rússia aproveitou a presença de Biden na região para responder às movimentações de Washington e anunciou a realização de uma cimeira entre o Presidente Vladimir Putin e os homólogos iraniano e turco, Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan. O encontro acontecerá esta terça-feira, em Teerão.
A etapa saudita do périplo valeu duras críticas a Biden. A seguir ao assassínio de Khashoggi, em 2018, não hesitara em rotular o reino de “pária”, nem de referir-se com desprezo ao todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS). Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos. Sexta-feira, foi MbS quem o recebeu à entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah.
9. I2U2, UMA NOVA FÓRMULA DE INTEGRAÇÃO
Além dos Acordos de Abraão, que constituem uma autoestrada entre Israel e o mundo árabe, esta viagem de Biden inaugurou os trabalhos de um novo fórum de integração regional. A partir de Jerusalém, Biden e o primeiro-ministro Lapid participaram numa cimeira por videoconferência com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o Presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohamed bin Zayed (MbZ).
Estados Unidos, Israel, Índia e Emirados batizaram o quarteto socorrendo-se da primeira letra dos seus nomes em inglês, o que resultou num impronunciável “I2U2” (ai-tu-iú-tu). A parceria visa aprofundar a cooperação económica entre as regiões do Médio Oriente e do Indo-Pacífico, à semelhança do que acontece, no Pacífico, com o Quad, que junta Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos e procura funcionar como contrapeso à influência da China na região.
Um dos projetos anunciados pelo I2U2 passa pela construção de parques agrícolas na Índia, no valor de 2000 milhões de dólares, que usarão tecnologia israelita e que Abu Dabi (um dos sete Emirados) ajudará a financiar.
10. JOGOS SÓ PARA JUDEUS
Num momento mais descontraído, mas pleno de significado político, Biden marcou presença na cerimónia de abertura dos 21.º Jogos da Macabíada, no Estádio Teddy, em Jerusalém.
Também chamados “Jogos Olímpicos Judeus”, contam com a participação de milhares de atletas judeus oriundos de cerca de 60 países e também israelitas não-judeus (20% da população de Israel é árabe). A competição é sancionada pelo Comité Olímpico Internacional e realiza-se de quatro em quatro anos, no ano seguinte aos Jogos Olímpicos de Verão.
No discurso inaugural, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realçou um “dia de festa para o Estado de Israel e para todo o povo judeu, um momento especial de união. Um momento que incorpora os valores compartilhados nos quais acreditamos: sionismo e excelência, fé e esperança, solidariedade e aproximação”. Com Biden a seu lado.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui
A primeira viagem do Presidente dos EUA ao Médio Oriente levou-o a Israel, onde falou do Irão. Hoje tem na agenda a Arábia Saudita. Palestinianos são o parente pobre
Quando Joe Biden entrou na Casa Branca, no início de 2021, a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita estava fragilizada pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Para o 46º Presidente, o crime era tão hediondo que o reino não escapava ao rótulo de “pária”.
Biden prometeu “recalibrar” a relação e desprezou o todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), implicado pessoalmente no caso, privilegiando o contacto com o debilitado rei Salman. A confirmar o afastamento entre Washington e Riade, Biden retirou da lista de organizações terroristas os huthis (apoiados pelo Irão), que os sauditas combatem no Iémen.
A ano e meio de mandato, porém, o pragmatismo parece ter assaltado a política externa de Biden. O Presidente americano chega hoje à Arábia Saudita, pressionado pela urgência em convencer o maior exportador mundial de petróleo a abrir as torneiras para que os preços da energia desçam nos mercados internacionais. A visita inclui um encontro com MbS.
Biden chega à Arábia Saudita após dois dias em Israel. O voo direto entre Telavive e Jeddah indicia uma intenção: pressionar no sentido da normalização da relação diplomática, como já aconteceu, desde 2020, entre Israel e Emirados Árabes Unidos, Barém, Sudão e Marrocos.
Os Acordos de Abraão são uma autoestrada de aproximação do Estado judeu ao mundo árabe, em nome de um inimigo comum: o Irão. Na escala em Israel, Biden defendeu um novo acordo sobre o programa nuclear iraniano (a que Israel se opõe) e garantiu que a opção militar continua sobre a mesa, “como último recurso”, para impedir Teerão de aceder à bomba atómica.
A visita permitiu também um encontro entre dois dirigentes aflitos: o próprio Biden, que pode perder a maioria democrata no Congresso nas eleições de 8 de novembro, e o primeiro-ministro israelita Yair Lapid, que tem legislativas marcadas para 1 de outubro, as quintas em menos de quatro anos. Como nas anteriores, não se prevê que o conflito israelo-palestiniano mobilize o eleitorado.
Hoje, Biden estará umas horas no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Em Israel, prometeu enfatizar o apoio à solução de dois Estados, “mesmo que não seja [viável] no curto prazo”. Até lá, a ocupação israelita continuará a desbravar terreno, nas suas múltiplas expressões.
3 julho: Assédio judeu a Al-Aqsa
Pelo menos 114 colonos judeus extremistas irrompem pela Esplanada das Mesquitas, na cidade velha de Jerusalém, protegidos por polícias israelitas. De forma provocatória, passeiam-se junto à mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo para os muçulmanos. Realizam também rituais talmúdicos e recebem explicações de rabinos sobre a importância do Monte do Templo, como os judeus chamam ao local. Os crentes muçulmanos são barrados por seguranças nos portões de acesso.
4 julho: É proibido construir
Seis famílias palestinianas de Khirbet Humsa al-Tahta, comunidade beduína do Vale do Jordão (a zona fértil da Cisjordânia), recebem ordens escritas das autoridades israelitas para pararem de construir em 30 estruturas. Este aglomerado está cercado por israelitas em três lados: o colonato de Hamra, um campo de treino militar e um checkpoint. Esta é uma prática com que Israel visa contribuir para expulsar os palestinianos de certas terras, para que as áreas ocupadas por judeus se expandam.
5 julho: Água não é para todos
Forças israelitas destroem condutas junto a uma nascente de água, que abastece a aldeia de Duma, no norte da Cisjordânia. É também demolido o muro de proteção e trabalhos de reabilitação recentes, feitos pelas autoridades da aldeia. Estas tentaram, em vão, que um tribunal israelita impedisse a destruição da infraestrutura. Na Cisjordânia, o acesso à água faz-se de forma discriminatória: é fácil para os colonos, difícil para os palestinianos, que têm de a comprar a Israel.
6 julho: Cerco aos pescadores
A marinha israelita abre fogo e dispara jatos de água na direção de pescadores da Faixa de Gaza, acusando-os de violação do limite de três milhas náuticas, que estão obrigados a respeitar. O incidente, de que não resultam mortos ou feridos, acontece ao largo das cidades de Jabalia e Beit Lahia, no norte do território. Israel já não tem tropas nem colonos na Faixa de Gaza (onde vivem dois milhões de pessoas), mas ocupa-a desde 2007 por “controlo remoto”, com um bloqueio por terra, ar e mar.
7 julho: Bulldozers ao ataque
Na aldeia de An-Nabi Samwil, em Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade anexada por Israel), bulldozers municipais arrasaram um terreno murado com árvores e um lava-jato, pertencentes a palestinianos, alegando não terem licença. Esta prática é muito usada para dificultar o quotidiano dos palestinianos e levá-los a abandonar terras. Os bulldozers tornaram-se arma da ocupação, ao ponto de empresas como Caterpillar, JCB, Volvo ou Hyundai serem alvo de campanhas de boicote por venderem equipamentos a Israel.
8 julho: Política para empatar
A cinco dias da chegada de Biden, o primeiro-ministro de Israel, Yair Lapid, telefona ao Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmud Abbas para, segundo o diário israelita “Haaretz”, discutirem “a continuidade da sua cooperação e a necessidade de manter a calma e o sossego na região”. A ocupação israelita beneficia da divisão política palestiniana. Aos 87 anos, Abbas mantém-se, há 17, inamovível à frente da AP (que governa a Cisjordânia) e em Gaza manda o grupo islamita Hamas.
9 julho: Vidas sem valor
No checkpoint de Jalama, a leste de Belém, o cadáver de Faleh Mousa Jaradat é finalmente entregue à família. Este palestiniano de 39 anos fora alvejado, a 17 de janeiro, por soldados israelitas que o acusaram de tentar esfaquear um militar. Israel reteve o corpo como medida de punição. Neste mês de julho, já morreram quatro palestinianos às mãos de israelitas: três homens de 18, 20 e 32 anos (dois a tiro e um por agressões), na Cisjordânia, e uma mulher de 68 anos, numa prisão de Israel.
10 julho: Presos em protesto
Ra’ed Rayyan, de 27 anos, cumpre o 95º dia em greve de fome. Detido na Prisão Hospital de Ramleh, em Israel, este palestiniano de Jerusalém exige o fim da sua detenção administrativa, que dura há meses. Dos mais de 4600 palestinianos presos em Israel (entre os quais 30 mulheres e 180 menores), 640 estão nessa situação: detidos sem acusação ou julgamento. Em janeiro, mais de 450 iniciaram um protesto, que dura até hoje, e recusam-se a comparecer nas sessões, em tribunal militar.
11 julho: A lei dos colonos
Cerca de 450 árvores de fruto são arrancadas de terras árabes por colonos judeus, em Turmusaya e Mughayir (nordeste de Ramallah). Os colonos invadem-nas acompanhados por militares israelitas, cuja missão na Cisjordânia é só proteger os 500 mil judeus que ali vivem, entre três milhões de árabes. A violência dos colonos manifesta-se ainda no bloqueio de ruas, arremesso de pedras contra carros e casas, queima de oliveiras, vandalização de colheitas e agressões físicas.
12 julho: Detenções em massa
Nove palestinianos são presos durante incursões de forças israelitas em várias localidades da Cisjordânia e na área de Jerusalém. As detenções em massa são uma forma de intimidação das populações. No dia 6, foram detidos 42 palestinianos e dois dias antes 25. Em junho, as forças israelitas levaram 464 palestinianos, incluindo 70 crianças e 18 mulheres. Desde 1967, perto de um milhão de palestinianos terão passado pelas prisões israelitas. Algo que afeta quase todas as famílias.
Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.