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A pandemia foi global, mas fustigou em particular a região mais desigual do mundo. Sabe qual é?

A pandemia de covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo, a América Latina. A falta de oxigénio no Brasil, o agravamento da violência de género no México ou a falta de caixões no Equador são sintomas de um subcontinente doente a vários níveis. Saiba tudo sobre o impacto da covid-19 na América Latina. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Não há canto no mundo onde a pandemia de covid-19 não tenha chegado. E se, nos últimos dias, temos falado muito da Índia, não há latitude onde o impacto tenha sido tão grande como na América Latina.

Com uma população que não chega a 10% do total mundial, as regiões da América Latina e Caraíbas contribuem com mais de um quarto das mortes por covid-19 em todo o mundo. Algumas das imagens mais fortes que ajudarão a contar a história desta pandemia vivem-se nestes países…

Cadáveres ao abandono por falta de urnas em Guayaquil, no Equador… Hospitais em Manaus, no Brasil, com falta de oxigénio… Cemitérios e crematórios saturados em Tijuana, no México… Milhares de venezuelanos ao deus-dará, fugidos das dificuldades no país natal e sem sustento nos países vizinhos.

A pandemia revelou ainda mais sintomas em países que já vinham evidenciando pouca saúde. Lembra-se como estava a América Latina antes da chegada do coronavírus?

No Chile, considerado um caso de sucesso económico na região, havia gigantescos protestos contra o custo de vida.

Na Colômbia, que passou 52 dos últimos 60 anos em guerra civil, havia manifestações contra as concessões feitas à guerrilha das FARC durante as negociações de paz.

No Equador, o alvo da contestação popular era a austeridade decretada pelo Governo.

Já na Bolívia, gritava-se que as eleições presidenciais que viabilizaram o quarto mandato de Evo Morales tinham sido fraudulentas.

A América Latina era um subcontinente em polvorosa quando a covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo.

O Peru chegou a ter a maior taxa de mortalidade global, graças a um sistema de saúde deficiente, uma economia assente no sector informal onde o teletrabalho não existe e as dificuldades de distanciamento social são evidentes.

No México, o confinamento agravou o problema da violência de género.

E como se não bastasse, a crise económica decorrente do problema de saúde pública atingiu em cheio a região.

Estima-se que a covid-19 seja responsável pela pior recessão em 100 anos na América Latina, pelo aumento da pobreza extrema.

A nível político, vários países tornaram-se montras do declínio das democracias.
Foi o caso da Bolívia. Quando a pandemia chegou, o país estava polarizado entre apoiantes e críticos do ex-Presidente Morales, que renunciara ao cargo por pressão popular, após 13 anos no poder. Essa luta não cedeu ao vírus e as eleições que deviam trazer a normalidade foram sendo adiadas uma e outra vez, por interesses políticos.
Numa demonstração do descontrolo geral do país, a Presidente interina Jeanine Añez foi infetada com covid-19.

Tal como aconteceu com Jair Bolsonaro, no Brasil. O Presidente minimizou o vírus, assumiu-se como um dos membros da Aliança da Avestruz, politizou a produção das vacinas e promoveu uma narrativa populista de confinamento versus economia. Com tudo isto enfraqueceu a estratégia de combate à pandemia do Brasil e tornou o país um exemplo… pelas piores razões.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Cuba abdicou da corrida às vacinas: arregaçou as mangas e está quase a ter a sua

As autoridades cubanas confiam que até ao fim do ano conseguirão imunizar toda a população contra a covid-19. Para tal, contam com pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento nos seus laboratórios. É a última conquista de um país pobre, mas eficiente ao nível da saúde pública, apesar das sanções do gigante vizinho setentrional. “O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos”, defende ao Expresso um historiador norte-americano

Cuba está no lote dos países que ainda não administraram qualquer dose de qualquer vacina contra a covid-19. No entanto, as autoridades de Havana esperam ter os seus mais de 11 milhões de cidadãos imunizados até ao fim do ano. O “milagre” é fácil de explicar: o país abdicou de disputar a ‘corrida internacional à vacina’ e lançou-se a produzir o seu próprio fármaco.

Neste momento, há quatro vacinas em desenvolvimento nos laboratórios cubanos: a Soberana 01 e a Soberana 02, do Instituto de Vacinação Finlay, e ainda a Abdala e a Mambisa, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia. A última tem a particularidade de ser administrada por via intranasal e não intramuscular. A 3 de março, o Presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, anunciou uma quinta candidata.

Até ao final do ano, Cuba espera produzir 100 milhões de doses, o que lhe permitirá atender às necessidades internas e exportar o restante. Esta meta coloca a ilha entre a elite dos países com capacidade científica no domínio da saúde pública.

“Era expectável que Cuba tivesse uma vacina para a covid-19 na fase de ensaios clínicos. Cuba avançou na biomedicina durante décadas. Os Estados Unidos opuseram-se com ferocidade a esses avanços, rotulando falsamente as instalações cubanas de laboratórios de armas biológicas”, comenta ao Expresso o historiador norte-americano Ronn Pineo, especialista na área da América Latina.

“Cuba já exportava vacinas para países em desenvolvimento necessitados, sem procurar lucro. E exportará esta nova vacina se ela se mostrar segura e eficaz, o que parece muito provável. No entanto, o bloqueio dos Estados Unidos está a dificultar o fornecimento de suprimentos, como frascos de vidro, por exemplo, na quantidade necessária.”

As dificuldades decorrentes do embargo acicatam o orgulho nacional implícito nos nomes patrióticos dados às vacinas: além das “Soberana”, “Abdala” é nome de um poema escrito pelo herói revolucionário José Martí e “Mambisa” é referência a guerrilheiros independentistas cubanos que combateram Espanha, no século XIX.

As vacinas mais adiantadas são a Soberana 02 e a Abdala, que avançaram, este mês, para a fase III dos testes clínicos, a última antes da aprovação para uso. A eficácia do fármaco está a ser avaliada em mais de 85 mil voluntários em Havana, Santiago de Cuba e Guantánamo e noutras 50 mil pessoas… no Irão.

Aliança Cuba-Irão

Esta colaboração é ditada por razões geopolíticas, já que Cuba e Irão são alvo de sanções dos Estados Unidos que penalizam também os sectores da saúde. Para o Teerão, um dos países do Médio Oriente mais atingidos pela covid-19, que já começou a vacinar com a russa Sputnik V, Cuba afigura-se como uma porta de saída do pesadelo.

“O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos. Qualquer que seja a justificação que os decisores políticos americanos erradamente pensaram existir durante a Guerra Fria, é óbvio que isso já não se aplica há mais de três décadas”, critica o professor da Universidade de Towson, Maryland (EUA).

No decorrer da pandemia, uma doação de máscaras, kits de testes rápidos e ventiladores feita pelo empresário chinês Jack Ma, fundador da empresa Alibaba, não conseguiu chegar a Cuba. A empresa de transporte norte-americana contratada para o efeito recusou-se a fazer o frete, escudando-se no Helms-Burton Act, que reforçou o embargo à ilha.

Noutro exemplo, duas empresas que habitualmente forneciam equipamentos médicos a Cuba — a IMT Medical AG e a Acutronic — terminaram a sua relação comercial com a ilha após serem compradas pela norte-americana Vyaire Medical Inc., em 2018.

Estes obstáculos obrigaram Cuba a procurar provisões em mercados mais distantes, como a China, a ter mais custos com o transporte e a sofrer demoras desnecessárias.

A pandemia de covid-19 deu relevância a outra vertente da política de saúde de Cuba que não cede ao peso das sanções: o envio de missões médicas para países em situações de emergência. Durante a primeira vaga, quando Itália era o epicentro da catástrofe, Cuba enviou 52 médicos para a região da Lombardia.

“Cuba tem sido muito generosa na ajuda a países em desenvolvimento por todo o mundo, fornecendo profissionais de saúde. Cuba vai aonde é convidada, independentemente da política do país anfitrião”, diz o professor Ronn Pineo. “Hoje, a ilha continua a mostrar um dos melhores rácios médico-população do mundo. Cuba não sofre com a falta de médicos ao enviá-los para o estrangeiro. Tem excedente de médicos.”

Um “exército de batas brancas”

Segundo o Banco Mundial, o rácio de Cuba é mesmo o melhor do mundo, com uma média de 8,4 médicos por mil habitantes (dados de 2018). Portugal tem 5,1 (dados de 2017).

Esse “exército de batas brancas”, como lhe chamou o líder cubano Fidel Castro, nasceu após a Revolução de 1959. A primeira missão foi enviada para o terreno em 1960, para o Chile, depois de um sismo na cidade de Valdivia ter provocado milhares de mortos.

400.000
profissionais de saúde cubanos já foram destacados para missões no estrangeiro, em pelo menos 164 países, para responder a crises de curto prazo, desastres naturais e, atualmente, à pandemia de covid-19

Em 2005, Fidel Castro batizou estes contingentes médicos de “Brigadas Henry Reeve”, em homenagem a um jovem norte-americano que combateu pela independência de Cuba, no século XIX. À época, o furacão Katrina tinha devastado, em particular, Nova Orleães. O histórico líder cubano ofereceu ajuda aos Estados Unidos, recusada pelo então Presidente George W. Bush.

Desde então, as “Brigadas” já proporcionaram ajuda em contextos de sismo (Paquistão e Indonésia), erupção vulcânica (Guatemala, 2018) ou emergências de saúde pública, como o surto de cólera no Haiti (2010) e a epidemia de Ébola na África Ocidental (2014).

Hoje, as missões médicas cubanas são um poderoso instrumento diplomático de soft power e uma das principais fontes de receita e de reconhecimento internacional para Cuba.

Para cada país beneficiário das suas missões médicas, Cuba celebra um acordo diferente. No caso da Venezuela, por exemplo, a ilha caribenha recebeu petróleo.

Muitas vezes, os médicos cubanos são encarados como uma espécie de guarda avançada do regime de Havana e, consequentemente, alvo de retaliações. No Brasil, após a eleição de Jair Bolsonaro, milhares de médicos cubanos que trabalhavam no Programa Mais Médicos receberam guia de marcha de regresso a casa. O mesmo ocorreu na Bolívia e no Equador após a saída do poder dos presidentes Evo Morales e Rafael Correa, respetivamente.

“Regras draconianas” nas missões médicas

Em julho do ano passado, a Human Rights Watch denunciou que o Governo cubano impõe “regras draconianas” aos médicos destacados nas missões, que “violam os seus direitos fundamentais”. “Os governos interessados em receber apoio de médicos cubanos deviam pressionar o Governo cubano para rever este sistema orwelliano, que dita com quem os médicos podem viver, apaixonar-se ou conversar”, defendeu então José Miguel Vivanco, diretor da organização para o continente americano.

“Uma forma de avaliar as condições dos profissionais de saúde cubanos nas missões no exterior é tentar averiguar quantos desses trabalhadores abandonam o programa. Quase nenhum o faz”, contrapõe o professor Pineo. “Aqueles que deixaram as missões expressaram, muitas vezes, descontentamento com as condições. As autoridades cubanas deviam fazer mais para levar a sério essas preocupações expressas. Todos os cubanos devem gozar do direito político de expressar as suas opiniões, seja em Cuba ou em missões médicas no estrangeiro.”

Em Cuba, o lema parece ser ‘fazer muito com pouco’. “É um modelo para muitos países”, disse o anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, quando visitou Cuba em 2014, elogiando o sistema de saúde local.

“Cuba teve um êxito notável nas medidas sanitárias mais importantes. Embora tenha um rendimento per capita de cerca de um décimo do dos Estados Unidos, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é bem mais baixa”, conclui o historiador norte-americano. “O foco de Cuba na saúde pública e na medicina preventiva, por oposição à medicina curativa, começa a explicar as suas conquistas na área da saúde.”

(IMAGEM As várias vacinas para a covid-19 produzidas em Cuba FACEBOOK DE JOSÉ ANGEL PORTAL MIRANDA, MINISTRO DA SAÚDE DE CUBA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Fotogaleria. Sai um “coronaburguer” para a mesa do canto: a comida em forma de vírus, máscaras e vacinas

As adversidades provocadas pela pandemia inspiraram pasteleiros e cozinheiros a rechear as ementas dos seus espaços com petiscos e guloseimas adaptados aos novos tempos. Hambúrgueres em forma de vírus, bolachas com máscaras de creme, bolos injetados com geleia, papel higiénico feito de pasta de açúcar. Nem sempre um encontro com o ‘vírus’ é uma experiência desagradável

Neste restaurante em Hanói, no Vietname, a ementa foi enriquecida com um ‘corona burguer’ MANAN VATSYAYANA / AFP / GETTY IMAGES
Vírus ou vacina? Na montra deste café em Praga, na República Checa, qualquer das opções é um doce DAVID W CERNY / REUTERS
Com olhos e de máscara postam estas bolachas ‘ganharam vida’, numa confeitaria de Dortmund, na Alemanha INA FASSBENDER / AFP / GETTY IMAGES
Vírus com diferentes estados de humor, numa padaria do território palestiniano da Faixa de Gaza IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Injeções de geleia de framboesa ‘vacinam’ bolas de Berlim, num café de Muri, na Suíça STEFAN WERMUTH / AFP / GETTY IMAGES
Nesta padaria alemã, os bolos em forma de rolos de papel higiénico são um ‘bestseller’ INA FASSBENDER / AFP / GETTY IMAGES
Um ‘Caril Covid’ e uma ‘Máscara Naan’, a caminho da mesa, num restaurante de Jodhpur, na Índia SUNIL VERMA / AFP / GETTY IMAGES
Um bolo decorado a preceito para um 34.º aniversário em ano de pandemia, na cidade da Guatemala JOHAN ORDONEZ / AFP / GETTY IMAGES
Uma homenagem ao teletrabalho, numa confeitaria alemã INA FASSBENDER / AFP / GETTY IMAGES
“Adeus covid-19, não farás falta”, diz a mensagem espetada nos biscoitos em forma de seringa ‘com o RNA mensageiro’ INA FASSBENDER / AFP / GETTY IMAGES
Um ‘coronavírus’ feito de chocolate e coberto de amêndoa colorida, numa cozinha de Landivisiau, em França DAMIEN MEYER / AFP / GETTY IMAGES
“Sandesh da Imunidade” feito com quinze ervas e especiarias, e mel dos Himalaias “para aumentar a sua imunidade”, numa pastelaria de Calcutá, na Índia DIBYANGSHU SARKAR / AFP / GETTY IMAGES
Pão em forma de vírus, antes de ir a cozer, num restaurante de Hanói, no Vietname NGUYEN HUY KHAM / REUTERS
Bolos e pasteleiros, todos com máscara de proteção, numa padaria da cidade palestiniana de Khan Yunis, na Faixa de Gaza ASHRAF AMRA / GETTY IMAGES
Um bolo com o formato de um vírus sorridente, na montra de um café de Cracóvia, na Polónia BEATA ZAWRZEL / GETTY IMAGES
Uma pasteleira mexicana decora um bolo temático sobre a covid-19, em Guadalajara ULISES RUIZ / AFP / GETTY IMAGES
Papel higiénico feito de pasta de açúcar, na montra de uma confeitaria de Kuala Lumpur, na Malásia MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES
No terraço de uma casa na aldeia palestiniana de Dar Salah, na Cisjordânia, um bolo em forma de vírus é a estrela do lanche HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES
Bolachas com máscaras de creme, num café da cidade alemã de Wangen im Allgäu FELIX KÄSTLE / GETTY IMAGES
Bombons em forma de vírus, numa pastelaria da cidade alemã de Erfurt MICHAEL REICHEL / GETTY IMAGES
Um ‘coronaburguer’, criado num restaurante de Hanói, a capital do Vietname NGUYEN HUY KHAM / REUTERS
Um vírus com máscara ‘para se proteger de si próprio’, na montra de um café em Banguecoque, na Tailândia LILLIAN SUWANRUMPHA / AFP / GETTY IMAGES
Um pasteleiro grego decora bolos com uma injeção de esperança em relação ao fim da pandemia, em Thessaloniki ALEXANDROS AVRAMIDIS / REUTERS
Bolos para todos os gostos e decorados com o mesmo tema, na cidade palestiniana de Khan Yunis, na Faixa de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Um ‘vírus’ tratado com todo o requinte, num café de Praga, na República Checa DAVID W CERNY / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

A nova ‘moeda de troca’ da política internacional

Vários países estão a usar a vacina para a covid-19 para projetar poder. Ao doarem milhares de doses, solucionam problemas, mas a prazo buscam compensações políticas

O arsenal de armas de soft power com que os Estados procuram projetar a sua influência no mundo sem recorrer à guerra ganhou um novo elemento — a vacina para a covid-19. Desde que soou o tiro de partida da imunização em todo o mundo, alguns países têm doado milhões de doses a terceiros com indisfarçável interesse político.

“A vacina está a ser usada como qualquer outro instrumento de política externa, é um meio para atingir um fim maior”, explica ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A prática assemelha-se a outros benefícios económicos que normalmente se utilizam como ‘cenoura’ destinada a premiar o comportamento de um Estado ou levar a um comportamento que se pretende.” Ajuda humanitária, alívio de dívida, assistência bilateral, dinheiro a fundo perdido ou empréstimos, acesso a tecnologia, participação em organizações internacionais… “Usa-se uma ferramenta económica, mas o objetivo é político.”

China, Índia e Rússia — pesos-pesados da geopolítica mundial e produtores da vacina — têm direcionado milhões de doses para fora do país, quando a inoculação das respetivas populações está numa fase inicial. “A vacina é tão ou mais valiosa para qualquer dos Estados em causa do que qualquer apoio económico ou financeiro, pelo que é provável que as consequências desta ação, o efeito permanente deste soft power, seja mais durável no tempo”, acrescenta o académico. “Esse apoio, em momentos difíceis, vai deixar uma marca consistente tanto nos decisores como na população.”

CHINA: Enterrar o “vírus chinês”

Para a China — onde começou a pandemia —, a vacina revelou-se uma oportunidade para acabar com a narrativa do “vírus chinês”, que Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos, propalou até à exaustão. Com quatro vacinas aprovadas (Sinopharm, Sinovac, CanSino e Sinopharm Wuhan), presenteá-las a terceiros é para Pequim um atalho eficaz para melhorar a imagem.

No início de fevereiro, a China anunciou a doação de vacinas a 14 países asiáticos e africanos e a intenção de “assistir” outros 38. As 100 mil doses enviadas para a Guiné Equatorial, por exemplo, garantiram a imunidade de 4% da população.

A dimensão asiática desta “diplomacia da vacina” é, para a China, muito condicionada pela rivalidade com a Índia. O primeiro país a receber a vacina chinesa de graça foi o Paquistão, arquirrival da Índia. Outro beneficiário foi o Sri Lanka, ‘campo de batalha’ entre chineses e indianos pelo domínio da Ásia do Sul. A 28 de janeiro chegaram ao país 500 mil doses oferecidas pela Índia. À espera, no aeroporto de Colombo, o Presidente Gotabaya Rajapaksa agradeceu a “generosidade”. Na Índia, a imprensa tratou o assunto como vitória diplomática sobre a China. Dias depois, Pequim fez chegar ao Sri Lanka 300 mil doses da sua vacina.

Com mais de 1400 milhões de habitantes, a China tinha vacinado, até 28 de fevereiro, apenas 3,65% da sua população — Portugal vai nos 8,68%. Essa circunstância não contém o regime comunista no seu esforço de afirmação externa. “O facto de as democracias estarem (mais) sujeitas a pressões e escrutínio públicos poderá promover a lógica de ‘os nossos primeiro’ e levar a que regimes autocráticos, menos limitados na alocação de recursos e na elaboração da sua política externa, possam dedicar-se mais a essa oferta”, diz Ponte e Sousa. “Os regimes autocráticos precisam mais desse apoio internacional para melhorar a sua imagem. Poderão ‘esforçar-se mais’ para obtê-lo.”

ÍNDIA: A farmácia do mundo

A pandemia permitiu à Índia mostrar os músculos ao nível da produção de vacinas e afirmar-se como “a farmácia do mundo”. O Instituto Serum (privado e com sede em Pune) é o maior fabricante mundial de vacinas — estima-se que 65% das crianças de todo o mundo recebam pelo menos uma vacina ali produzida. Diariamente, o Instituto fabrica 2,5 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford para a covid-19 (chamada localmente Covishield), destinada aos mercados externo e interno.

Outro laboratório indiano — Bharat Biotech, que exporta para mais de 120 países — desenvolveu uma vacina própria (Covaxin). Autorizada apenas na Índia, foi administrada ao primeiro-ministro Narendra Modi.

A “diplomacia da vacina” tem permitido a Nova Deli rentabilizar a política de “vizinhança primeiro”, teorizada por Modi, e dar réplica ao avanço da China. Nesse espírito, Sri Lanka, Nepal, Maldivas, Maurícias, Butão, Bangladesh, Seychelles, Afeganistão e Myan­mar já receberam doações da Índia.

Com base no princípio filosófico indiano Vasudhaiva Kutumbakam — frase em sânscrito, encontrada em textos hindus, que significa “o mundo é uma família” —, a Índia já começou a doar vacinas para fora da região. Nas redes sociais, Nova Deli vai publicitando a chegada de carregamentos da Covishield a um novo país com a hashtag #VaccineMaitri (“vacina pela amizade”). Só esta semana, pelo menos Ruanda, Quénia, Nigéria, Angola, Senegal e Camboja receberam doses made in Índia. Até quarta-feira o país enviara 45,6 milhões para 46 países — 7,1 milhões a título gratuito.

RÚSSIA: Reforçar estatuto

Ao batizar a vacina de Sputnik V — recuperando uma designação que remete para os anos gloriosos da exploração espacial da União Soviética —, a Rússia não escondeu a intenção de a usar para reclamar estatuto internacional.

A Sputnik V foi a primeira vacina para a covid-19 aprovada em todo o mundo para uso doméstico, no longínquo 11 de agosto de 2020. Despertou dúvidas acerca da sua eficácia ao não cumprir todas as etapas do processo de produção. O Presidente Vladimir Putin disse que a tomaria, mas até ao momento ainda não o fez. Fora de portas, porém, a Sputnik-V já está a ser usada como bandeira.

A Alrosa — empresa russa parcialmente estatal, líder mundial da mineração de diamantes — anunciou a compra de dezenas de milhares de doses dessa vacina para oferecer a Angola e ao Zimbabwe, países onde opera.

Na ânsia de exportar a sua vacina, o Kremlin conta com um ‘aliado’ inesperado: a resistência do povo à vacinação, que tem feito sobrar doses. “Pergunto-me porque está a Rússia a oferecer, teoricamente, milhões e milhões de doses, embora não avance o suficiente na vacinação do seu próprio povo”, insinuou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decerto incomodada com a interferência russa na coordenação europeia. É que, por força dos atrasos na entrega das vacinas contratualizadas por Bruxelas, a Rússia já conseguiu vender a Sputnik-V à Hungria.

OUTROS EXEMPLOS

SÉRVIA — Comprou vacinas à China, à Rússia e à Pfizer e distribuiu uns milhares de doses pela vizinhança, em especial um país com quem estava em guerra há menos de 20 anos: Bósnia-Herzegovina. Antes ofereceu vacinas à Macedónia do Norte e Montenegro.

ISRAEL — Quase a tornar-se o primeiro a vacinar toda a população, ofereceu doses a países que aceitaram transferir as suas embaixadas para Jerusalém (Guatemala, Honduras, República Checa). Comprou vacinas à Rússia para entregar à Síria em troca da libertação de uma israelita.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS — A riqueza proveniente do petróleo permitiu-lhe comprar vacinas para oferecer a países onde tem interesses comerciais ou estratégicos. As Seicheles (100 mil habitantes), onde têm projetos energéticos e são parceiros no combate à pirataria, receberam 50 mil doses.

(ILUSTRAÇÃO PIXAHIVE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Rapidez e robustez: as duas armas com que o Vietname ‘encaixotou’ o vírus

Encostado à China, o Vietname é um caso de sucesso no combate à covid-19. Do governo autocrático à experiência acumulada em contextos de epidemias, a estratégia vietnamita passa essencialmente por antecipar-se aos problemas e atuar com rapidez

O Vietname, com quase 100 milhões de habitantes, tem dos registos mais eficazes no combate à pandemia de covid-19. Com uma fronteira de cerca de 1300 quilómetros com a China — onde tudo começou —, o país conseguiu contornar os piores cenários verificados em países mais desenvolvidos e com mais meios.

Este país do Sueste Asiático comunicou o seu primeiro caso positivo no longínquo 23 de janeiro de 2020 — uma vietnamita de 35 anos que passou dois meses em Wuhan, numa viagem de negócios —, e as duas primeiras mortes a 30 de julho seguinte. Até esta sexta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, contabilizava apenas 2426 casos de infeção e 35 mortes por covid-19.

O facto de o Vietname ter um Governo autocrático pode levantar suspeitas sobre a credibilidade dos números. O infeciologista Guy Thwaites, diretor da Unidade de Pesquisa Clínica da Universidade de Oxford, em Ho Chi Minh (antiga Saigão), garante ao Expresso: “Os números estão corretos. O Governo não está a esconder nada”.

O Vietname é um país jovem, com uma média de idades a rondar os 30 anos, e tem uma taxa de obesidade (fator de risco para a covid-19) extremamente baixa. Mas o que verdadeiramente fez a diferença em relação a países com mais e melhores meios foi, sobretudo, a resposta rápida e robusta com que conseguiu “encaixotar” o vírus.

Da experiência acumulada na gestão de epidemias passadas até uma estratégia de testagem direcionada, há dez pilares do modelo vietnamita que — combinados — têm protegido o país de um cenário de caos.

1. SISTEMA DE SAÚDE DESENVOLVIDO

O Muro de Berlim ainda não caíra, mas no Vietname, governado pelo Partido Comunista, já havia a noção de que algo teria de mudar. Em 1986 um conjunto de reformas económicas que ficaram conhecidas como “Doi Moi” visaram a transformação de uma economia planificada centralizada para uma economia de mercado de orientação socialista. O sector da saúde foi dos que beneficiaram de forte investimento. Entre 2000 e 2016 os gastos com a saúde pública aumentaram em média 9% por ano, per capita. A capacidade do sistema de saúde vietnamita possibilita que, atualmente, todos os casos positivos de covid-19 sejam hospitalizados, independentemente dos sintomas do paciente, sem que os hospitais entrem em rutura.

2. EXPERIÊNCIA ACUMULADA

O Vietname tem experiência de combate a epidemias — a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, em 2003-3004), a gripe das aves (2004-2005) e o Zika (2016) — que agora se revelou preciosa para atacar o SARS-CoV-2. Em 2003, o país tornou-se mesmo o primeiro a ser retirado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da lista de territórios afetados pela SARS. Decorrente de todas estas emergências, o Vietname está hoje dotado de um centro nacional de operações de emergência de saúde pública, equipado com epidemiologistas, e um sistema nacional de vigilância de saúde pública. Tudo contribui para que as autoridades atuem com conhecimento de causa e a população reconheça e obedeça.

3. DADOS CENTRALIZADOS

Há cerca de dez anos, o Vietname transferiu para a Internet o seu robusto sistema de recolha e cruzamento de dados de entidades de saúde pública, agilizando a reação aos problemas. Desde 2016, os hospitais são obrigados a reportar determinadas doenças a uma base central num período de 24 horas. Isto permite ao Ministério da Saúde acompanhar uma crise epidemiológica em tempo real.

4. VIGILÂNCIA DE PROXIMIDADE

O Vietname tem um programa de vigilância comunitária que capacita professores, farmacêuticos, líderes religiosos, responsáveis comunitários e até curandeiros para relatarem situações suspeitas. Os alertas são dados, por exemplo, perante aglomerados de pessoas com sintomas semelhantes que possam indiciar a emergência de um surto.

5. TESTES DIRECIONADOS

Se o Vietname tem uma testagem à covid-19 per capita relativamente baixa, lidera destacadíssimo a lista dos países que mais testam por caso positivo. Em vez de realizar testes em função dos sintomas da população, o Vietname optou por testar com base na exposição ao risco, priorizando as pessoas identificadas no rastreamento de contactos dos casos positivos e acorrendo com rapidez a edifícios ou bairros onde se registavam surtos.

Esta estratégia passou por um amplo rastreamento em redor de cada caso positivo (F0) envolvendo quem contactou com a pessoa infetada nos 14 dias anteriores (F1). Se F1 testasse positivo era hospitalizado, se testasse negativo ficava 14 dias de quarentena num centro administrado pelo Governo. Contactos próximos de um paciente F1 (F2) ficavam em isolamento em casa durante duas semanas. E assim sucessivamente até ao grau F5.

6. CONFINAMENTOS RIGOROSOS

Cerca de um mês antes de a OMS classificar a epidemia de covid-19 como “pandemia” (o que aconteceu a 11 de março de 2020) e apelar à adoção de “ações urgentes e agressivas” para inverter o rumo da situação, já as autoridades vietnamitas confinavam localidades. Em meados de fevereiro, Son Loi foi isolada durante quase um mês quando se descobriu que seis dos seus cerca de 10 mil habitantes estavam entre os 16 casos de covid-19 detetados no país.

Outro tipo de confinamento rigoroso aconteceu em abril seguinte, quando a localidade de Dong Van (7600 habitantes) ficou confinada 24 horas enquanto aguardava pelo resultado de testes à covid-19 feitos a moradores suspeitos.

Na fase inicial da pandemia, as autoridades vietnamitas lidaram com o problema com rédea muito curta, mais ainda quando foram detetados casos importados. As medidas passaram não só pelo isolamento de pessoas que tinham contactado com pessoas infetadas, ou que viviam na mesma rua, ou que tinham viajado no mesmo avião. Muitos passageiros oriundos de países fortemente afetados pela pandemia ficaram duas semanas de quarentena nos centros do Governo. E os voos internacionais foram desviados dos aeroportos onde partiam e chegavam voos domésticos.

7. TECNOLOGIA INTRUSIVA

A resposta vietnamita à covid não dispensou a tecnologia. Com a doença no país há menos de dois meses, o Ministério da Saúde lançou a aplicação móvel (app) NCOVI, que ajuda a montar sistemas de vigilância de bairro: nela os cidadãos podem não só notificar diariamente o seu estado de saúde como fornecer informação sobre casos suspeitos nas suas áreas de residência. Esta app inclui um mapa dos casos detetados que permite que os utilizadores observem o movimento em tempo real de pessoas colocadas em quarentena. Sem valorizar as questões da privacidade, para muitos vietnamitas, os fins justificam os meios.

Pouco depois, a 15 de abril de 2020, foi lançada outra app, a Bluezone, que funciona através de bluetooth e notifica os utilizadores de uma possível exposição ao vírus a dois metros de distância. A Bluezone foi descarregada mais vezes do que apps populares como o Messenger e o TikTok.

8. COMUNICAÇÃO CLARA

O primeiro aviso do Ministério da Saúde à população sobre os perigos da doença foi feito a 9 de janeiro de 2020, quando ainda não tinha sido ainda detetado qualquer caso de covid-19 fora da China. Desde então o Governo de Hanói não mais parou de comunicar com o público, em espaços públicos, enviando sms, aproveitando as redes sociais (só o Facebook tem 64 milhões de utilizadores no Vietname) ou adaptando a letra de um popular tema musical vietnamita, agora intitulado “Ghen Co Vy” (Coronavírus Ciumento).

A comunicação frequente — sob o lema “Lutar contra a epidemia é como lutar contra o inimigo” — contribuiu para criar um espírito de comunidade em que cada cidadão se sente motivado a cumprir a sua parte, seja usando a máscara ou tolerando confinamentos.

“Cada cidadão é um soldado, cada casa, aldeia, área residencial é uma fortaleza na luta contra a pandemia.”

Nguyen Xuan Phuc
primeiro-ministro do Vietname
9. RAPIDEZ NA ATUAÇÃO

O Vietname não esperou pela confirmação do primeiro caso positivo dentro de portas para aplicar confinamentos e limitar a mobilidade de quem lá vive. As escolas foram encerradas quando apenas havia notícias de uma “grave pneumonia” na China. Por vezes, as autoridades associaram à rapidez decisões drásticas. Quando, a 25 de julho de 2020, foi detetado o primeiro caso de transmissão local no país, na estância turística de Da Nang, o local foi rapidamente evacuado, o que obrigou à transferência de 80 mil pessoas, a maioria turistas locais. Foi nesta cidade, a 31 de julho, que se registou a primeira vítima mortal no país.

10. GOVERNO AUTORITÁRIO

O regime de partido único e, consequentemente a ausência de oposição política, torna possível uma cadeia de comando única desde o Presidente Nguyen Phu Trong — simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista — e a autoridade local na mais pequena aldeia do país. Num contexto de emergência pública, é a situação ideal para passar mensagens, mobilizar recursos, aplicar estratégias e punir, se for caso disso. Desde 14 de abril de 2020 que publicar, nas redes sociais, informação falsa ou distorcida, mentiras e calúnias passou a ser punido com multas. Para um país como o Vietname, que sente estar a travar mais uma guerra biológica, tudo vale para a vencer.

(ILUSTRAÇÃO PHARMACEUTICAL TECHNOLOGY)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui