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Corrida contra o tempo para proteger os rohingya do coronavírus

Ainda não há casos de covid-19 dentro dos campos de refugiados rohingya no Bangladesh, mas é questão de tempo. Manuel Pereira, português que coordena o trabalho humanitário da Organização Internacional para as Migrações nos campos, explica ao Expresso o que está a ser feito para tentar aguentar o embate

Para um povo habituado a viver sob o signo do drama, como são os rohingya, a pandemia de covid-19 é apenas mais uma de muitas adversidades. O novo coronavírus ainda não entrou nos campos de refugiados desta minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), mas está cada vez mais próximo.

No país que os acolhe, o Bangladesh, há 7103 casos confirmados e 153 mortos, e no distrito de Cox’s Bazar, onde estão localizados os campos, os casos positivos (que ainda são apenas 13) aumentam de dia para dia.

“O encerramento de fronteiras e as medidas de confinamento decretadas pelo Governo do Bangladesh contribuíram para atrasar a chegada do coronavírus aos campos”, diz ao Expresso Manuel Pereira, chefe de missão adjunto da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Bangladesh.

“Além disso, foi reduzida a presença de não-residentes dentro dos campos e está-se a desenvolver programas de sensibilização e distanciamento social para mitigar contactos e possíveis transmissões, até termos melhores condições de resposta médica.”

Cox’s Bazar é o distrito mais ao sul do Bangladesh. A importação de contágios está dependente da evolução do surto no resto do país. “As autoridades estão a limitar os movimentos para o distrito, o que é positivo”, diz o português, de 41 anos, natural de Lisboa. “Cox’s Bazar está isolado, com movimentos condicionados também para refugiados e pessoal humanitário, sobretudo ao nível das entradas e saídas dos campos.”

No Bangladesh, os campos ocupam uma área de cerca de 24 quilómetros quadrados e dão abrigo a 859.161 rohingyas (números de março da OIM). A esmagadora maioria — 708.985 — chegou à região após 25 de agosto de 2017, quando começou, em Myanmar, uma violenta campanha de perseguição à minoria muçulmana. Manuel Pereira alerta que nos campos, “o isolamento social é muito difícil, devido à grande densidade populacional”.

Na semana passada, como 1800 milhões de muçulmanos em todo o mundo, os rohingya começaram a cumprir o Ramadão, o nono mês do calendário islâmico, que obriga à prática do jejum desde o nascer até ao pôr do sol. Diariamente, a provação é quebrada pelo iftar, refeição comunitária que junta muita gente à volta da mesa.

Nos campos, “o iftar é feito em família e em comunidade, em horários diferentes. Como ainda não há casos positivos, existe alguma flexibilidade. Mas tentamos sensibilizar os líderes religiosos para que seja feito o distanciamento social e a celebração decorra sobretudo ao nível da família”.

Quem canta o vírus espanta

Sensibilizar é a palavra de ordem da OIM nos campos rohingya. A organização tem em curso campanhas de promoção de hábitos de higiene destinadas aos refugiados, mas também às populações dos aglomerados envolventes aos campos.

As recomendações são transmitidas porta a porta, em sessões ao ar livre envolvendo pequenos grupos, nas distribuições de ajuda humanitária (comida e bens não alimentares) ou durante as sessões de apoio psicossocial. A Internet, que podia ser um aliado neste contexto, está cortada desde setembro de 2019 por “motivos de segurança”, diz o Governo de Daca.

“A falta de Internet não permite aos refugiados comunicarem a partir de casa ou indiretamente com o pessoal humanitário”, diz Manuel Pereira. “Além disso, limita as ações de sensibilização e pode fomentar a consolidação de boatos que circulem em pequenos núcleos onde as nossas campanhas ainda não tenham chegado.”

Estar desligado na Rede dificulta a partilha de vídeos como este, onde o artista Muhammed Taher, refugiado rohingya, interpreta uma canção da sua autoria, de consciencialização para o coronavírus. O músico é apoiado pelo Centro de Memória Cultural, programa da OIM que compila mais de 600 artefactos, práticas e perfis representativos do património cultural deste povo.

FALTA VÍDEO!!!!

As campanhas de sensibilização da OIM ensinam a lavar as mãos como um profissional, explicam o conceito de distância social, ajudam a identificar os sintomas da doença, orientam as pessoas na procura de cuidados médicos e esclarecem para combater boatos. “Alguns acham que é um inseto que provoca a doença e que pode ser morto com facilidade. Outros pensam que todos os infetados morrem”, diz Manuel Pereira.

O português, formado em Engenharia do Ambiente e que começou a trabalhar para as Nações Unidas em 2006, em Timor-Leste, considera que os rohingya são um povo disciplinado que escuta e tenta acatar os conselhos. “São pessoas muito afáveis e, como é natural, estão muito preocupadas e pedem informação e apoio.”

Nesta ação de formação da OIM, um grupo de homens rohingya aprende a tossir para o braço, no campo de Jadimura, no Bangladesh ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Numa corrida contra o tempo, a OIM — principal prestadora de cuidados de saúde nos campos — está a criar espaços de isolamento para doentes de covid (refugiados ou oriundos das comunidades locais), a dar formação específica sobre a doença a pessoal dos seus 35 centros de saúde, a distribuir equipamento de proteção individual aos profissionais que estão na “linha da frente” e a aumentar o número de locais para ser medida a temperatura do corpo.

“Neste momento, os testes às populações estão centralizados nos serviços de saúde do Governo, uma vez que ainda há poucos”, explica o português. “Reportamos casos suspeitos e até agora, felizmente, não houve nenhum positivo.”

A OIM está também a tentar antecipar o mais possível a necessidade de tratar doentes com alguma gravidade. “Os parceiros humanitários e o Governo do Bangladesh estão a aumentar, a reforçar e a criar estruturas para tratamento de casos graves entre os refugiados. A compra de equipamento, construção de instalações temporárias, formação de pessoal e contratação de outros mais está a ser acelerada. Ajudamos o Governo para podermos ter capacidade de resposta aos casos mais graves sem sobrecarregar em demasia o sistema nacional de saúde. As limitações são muitas, a nível financeiro, logístico e de recursos humanos, mas continuaremos esta batalha para salvar vidas.”

Funcionários da OIM preparam um centro de isolamento para suspeitos de infeção com covid.19, no campo rohyngya de Leda ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Trabalhar no apoio aos rohingya significa estar em alerta simultâneo a mais do que uma emergência. Neste momento, paralelamente à pandemia de covid-19, os olhos voltam-se também para os céus.

“A primeira época dos ciclones já começou. Nos próximos seis meses, vamos viver um período de potenciais ciclones e de monção, com muita chuva e ventos fortes”, prevê Manuel Pereira. “Esperemos que não se formem ciclones na Baía de Bengala. Se conseguirmos gerir bem a evolução da covid-19, ou mesmo limitar as contaminações dentro dos campos, podemos continuar a operar dentro dos procedimentos de resposta de emergência que aperfeiçoamos nos últimos dois anos. Caso contrário, teremos de fazer adaptações significativas para garantir serviços e proteção para todos.”

(FOTO PRINCIPAL Nesta fila de distribuição de garrafas de gás, num campo de refugiados rohingya de Cox’s Bazar, no Bangladesh, cumpre-se o distanciamento social ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES — OIM)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Depois de prever a pandemia, Bill Gates arrisca agendar o regresso à normalidade

O fundador da Microsoft, à frente de uma fundação que se dedica ao combate a doenças infecciosas, antevê que a retoma da vida a que estávamos acostumados dependa da produção de uma vacina. Em entrevista ao jornal “Le Figaro”, Bill Gates revela-se “estupefacto” com a escala e a devastação provocada pelo novo coronavírus

A pandemia provocada pelo novo coronavírus recuperou, nas redes sociais, o vídeo de uma conferência de Bill Gates, em março de 2015, no qual, de forma quase profética, o fundador da Microsoft previu o surto de “um vírus altamente contagioso” e que não estávamos preparados para enfrentar.

Se o milionário estiver igualmente certeiro na entrevista publicada esta terça-feira pelo jornal francês “Le Figaro”, “não vamos voltar à normalidade antes de um a dois anos”.

Em 2015, no mês seguinte à conferência, Gates assinou um artigo na publicação “The New England Journal of Medicine” sobre as medidas necessárias para reagir ao vírus. “A ideia era estarmos prontos quando chegasse a hora”, diz ao jornal francês. “Aumentar rapidamente a nossa capacidade de fazer testes, envolver a indústria para que seja capaz de produzir muito depressa uma terapia e depois as vacinas. Mas muito pouco foi feito.”

Gates frisa que a retoma das vidas suspensas pelo confinamento — que na sua opinião “salvou milhões de vidas” — só acontecerá após a descoberta de uma vacina. O filantropo defende que, numa primeira fase pós-confinamento, deve ser adotado “um sistema de testes e rastreio”, com que possamos “rapidamente identificar os focos de infeção e contê-los”.

Trabalhar com a China e não ostracizá-la

Gates diz ainda que a resposta à pandemia tem de ser mundial, não só por uma questão de humanidade mas também em nome da economia global. Distancia-se dos detratores da China, que a acusam de ter escondido a verdade. “É muito difícil ser o país onde a epidemia se declarou. A partir de certa altura, a China usou métodos muito duros para conter o vírus”, lembra. “Chegará a hora de fazermos balanços, mas apontar culpados agora não é uma abordagem construtiva. A nossa economia está parada, o mundo sofre, a prioridade deve ser a colaboração.”

Bill Gates e a mulher, Melinda, dirigem uma fundação em nome próprio que se orgulha de, nos últimos 20 anos, ter contribuído para baixar o número de mortes provocadas por doenças infecciosas em todo o mundo de dez para cinco milhões por ano.

A covid-19 veio abrir outra frente no trabalho da fundação. “Este vírus provocou uma devastação imensa, a uma escala inacreditável”, diz Gates. “Mesmo eu, que previ uma pandemia deste tipo, estou estupefacto com a amplitude dos prejuízos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

A pandemia pelo olhar das crianças

Não pertencem aos chamados grupos de risco, mas o novo coronavírus virou-lhes a vida do avesso. Sem poderem ir à escola nem ao parque perto de casa, as crianças são vítimas colaterais da pandemia

ÍNDIA. As máscaras complicam os afetos mas os olhos revelam que estão sorridentes. Mãe e filha estão na fila à espera de serem testadas à covid-19, num bairro pobre de Bombaím INDRANIL MUKHERJEE / AFP / GETTY IMAGES
REINO UNIDO. Na cidade inglesa de Newcastle-under-Lyme, uma criança assoma-se à porta de casa para participar numa homenagem aos profissionais de saúde GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
GRÉCIA. Estas crianças desacompanhadas, que viviam em campos de refugiados, acabam de chegar de autocarro ao aeroporto de Atenas para serem transferidas de avião para a Alemanha COSTAS BALTAS / REUTERS
CHINA. Os passeios de trotinete voltaram a este parque da cidade de Xangai, agora com máscaras YVES DEAN / GETTY IMAGES
COLÔMBIA. A pandemia matou o sonho de uma vida melhor a esta migrante venezuelana, prestes a regressar voluntariamente ao seu país, com o seu bebé LUIS ROBAYO / AFP / GETTY IMAGES
SRI LANKA. Ao colo do pai, uma menina entra na Igreja de São Sebastião, em Negombo, onde a 21 de abril do ano passado (dia de Páscoa) ocorreu um ataque terrorista LAKRUWAN WANNIARACHCHI / AFP / GETTY IMAGES
UCRÂNIA. A interação com a escultura, em Kiev, fica adiada para quando não houver perigo por perto SERGEI SUPINSKY / AFP / GETTY IMAGES
ESPANHA. A escola deste menino passou a ser a sua casa, em Madrid EDUARDO PARRA / GETTY IMAGES
IRAQUE. Profissionais de saúde e voluntários dão prendas a crianças que recuperaram da covid-19, num hospital de Najaf ALAA AL-MARJANI / REUTERS
DINAMARCA. Ao primeiro dia de reabertura das escolas, a 15 de abril, uma professora de música de uma escola pública de Randers optou por dar a aula ao ar livre BO AMSTRUP / AFP / GETTY IMAGES
TAILÂNDIA. Nas mãos desta menina de Banguecoque, a máscara não é mais do que um brinquedo ATHIT PERAWONGMETHA / REUTERS
RÚSSIA. Nesta escola da aldeia de Nezhino, 40 km para norte de Vladivostok, a escola já reabriu, mas as aulas não são como anteriormente YURI SMITYUK / GETTY IMAGES
PALESTINA. Na Faixa de Gaza, o coronavírus ganhou vida e tenta divertir as crianças MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
EUA. Agendada para 20 de abril, a Maratona de Boston foi adiada para setembro. Mas Lisa Wyman, que a corre desde 2002, não resistiu a “cortar a meta” no dia previsto para a prova, para alegria dois filhos SUZANNE KREITER / GETTY IMAGES
EGITO. No Cairo, um palhaço atua para crianças e jovens, numa ação de sensibilização para o uso da máscara MOHAMED ABD EL GHANY / REUTERS
HONDURAS. Deportado do México, este menino é levado de autocarro para cumprir quarentena, após chegar ao aeroporto de Tegucigalpa ORLANDO SIERRA / AFP / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Com as escolas encerradas, esta mulher é a “professora” das duas filhas em casa, na cidade de Yogyakarta ULET IFANSASTI / GETTY IMAGES
FRANÇA. Em Bordéus, uma criança lê um livro à janela. Pelo menos até 11 de maio, por determinação das autoridades, não irá à escola FABIEN PALLUEAU / GETTY IMAGES
EQUADOR. Pai e filhos jogam futebol na rua, em Parroquia San José de Minas, quase a 100 km de Quito. Todos usam máscara FRANKLIN JÁCOME / GETTY IMAGES
ALEMANHA. Sem poder ir à escola nem brincar nos parques públicos, em Berlim, as horas de brincadeira dentro do quarto eternizam-se ABDULHAMID HOSBAS / GETTY IMAGES
SÍRIA. Num campo de deslocados internos a norte de Idlib, decorre uma ação de sensibilização em relação ao novo coronavírus. Dentro de círculos, estas crianças treinam a distância social KHALIL ASHAWI / REUTERS
BRASIL. Felicidade sem fim, que as máscaras não atrapalham, no Aglomerado da Serra, a maior favela de Minas Gerais, Belo Horizonte PEDRO VILELA / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Distância física e confinamento só se o rabino autorizar

As comunidades ultraortodoxas são um entrave ao combate ao novo coronavírus em Israel, que esta segunda-feira levantou algumas restrições. Obedientes apenas e só às autoridades rabínicas, ignoram as recomendações do governo. E como a maioria é avessa a tecnologias, não tem ideia do impacto da pandemia em todo o mundo

Israel está, como quase todo o mundo, a braços com a pandemia de coronavírus, mas sendo o único país onde a população é esmagadoramente judaica, o problema debate-se com uma realidade particular: pelo menos 40% dos infetados são judeus ultraortodoxos (haredi).

“Os líderes espirituais da comunidade ignoraram os avisos relativos à ameaça, especialmente quando as recomendações estavam relacionadas com práticas religiosas, como o estudo da Torá nas ‘yeshivas’ [escolas religiosas] e as orações nas sinagogas”, diz Gilad Malach, diretor do programa Ultraortodoxos em Israel do Instituto para a Democracia de Israel, num “briefing” à imprensa através da plataforma Zoom a que o Expresso assistiu.

Profundamente conservadoras, estas comunidades — que representam 12% da população do país — privilegiam a obediência às autoridades rabínicas em detrimento das autoridades seculares do Estado. Por isso, quando surgiram as primeiras recomendações governamentais apelando ao distanciamento social, foi para os rabinos que a população ultraortodoxa se voltou para pedir instruções.

“Os ultraortodoxos recusaram obedecer às autoridades acreditando que Deus os iria ajudar”, diz Malach. Eles acreditam piamente que rezar e estudar os textos sagrados providenciam proteção física ao povo judeu.

Esta forma de estar tornou as cidades ultraortodoxas — as mais densamente povoadas — os principais centros de contágio, em especial Bnei Brak, nos arredores de Telavive, com 200 mil habitantes. Esta segunda-feira, as autoridades de Saúde confirmaram que essa cidade continua a registar o maior número de casos (1202) por 100 mil habitantes, apesar do confinamento decretado no início de abril, com mais de 1000 polícias a controlarem entradas e saídas.

“As autoridades demoraram algumas semanas a identificar as cidades ultraortodoxas como zonas perigosas. Esse erro é atribuído, em especial, ao ministro da Saúde, Ya’akov Litzman, que é membro dessa comunidade”, diz Malach. E também ao ministério do Interior, Aryeh Machluf Deri, outro ultraortodoxo.

Ambos não pressionaram os líderes religiosos o suficiente para que promovessem alterações de comportamento nas comunidades. Foi somente a 29 de março, mais de um mês após ter sido detetado o primeiro caso em Israel (21 de fevereiro), que o rabino Chaim Kanievsky — o verdadeiro primeiro-ministro, para muitos religiosos — emitiu um decreto obrigando à obediência às ordens do governo.

Três dias depois do decreto, o ministro da Saúde, Ya’akov Litzman, de 71 anos, testou positivo à covid-19, levando um conjunto de personalidades com quem tinha contactado a ficar em quarentena preventiva, incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e Yossi Cohen, o chefe da Mossad (serviços secretos), agência que tem sido crucial para a obtenção de equipamento médico no estrangeiro.

Na imprensa, logo surgiram testemunhos acusando o ministro de, ao arrepio das recomendações do seu próprio governo, ter continuado a frequentar a sinagoga Beit Yisrael, em Jerusalém. Dias depois, a polícia haveria de fechar o templo.

Uma razão para a alta taxa de incidência da covid-19 entre os ultraortodoxos prende-se com o seu estilo de vida, que inclui “muitos rituais e práticas comunitários”, diz Malach. “Rezam em conjunto, estudam em conjunto.”

Com as sinagogas e as “yeshivas” encerradas, este domingo o Governo flexibilizou algumas restrições, passando a ser permitido: orações ao ar livre em grupos até 19 pessoas, com máscaras, separadas por dois metros e a uma distância máxima de 500 metros de casa ou do local de trabalho; casamentos e circuncisões ao ar livre participadas por dez pessoas no máximo; banhos rituais para os homens, desde que não haja mais de três no local.

“Em geral, os ultraortodoxos vivem numa cultura de enclave”, explica o especialista. “Quase ninguém tem televisão e apenas cerca de 50% usa a Internet, alguns apenas no trabalho.” Sem “smartphones” no bolso não estão minimamente expostos a alertas noticiosos, tweets, posts no Facebook e vídeos no WhatsApp. “Por isso, não viram imagens da China e da Itália. Não perceberam a situação.”

Após lhe ter sido diagnosticada covid-19, o ministro Litzman foi colocado de quarentena na sua casa, em Jerusalém. Para poder estar em teletrabalho, foi-lhe instalado… um computador e Internet, que o ministro não tinha.

Passada a tormenta, Gilad Malach acredita que a situação vivida e os erros cometidos poderão contribuir para alterações no seio da comunidade, desde logo ao nível do uso de tecnologia. “Em apenas um mês, a percentagem de ultraortodoxos com acesso à Internet aumentou de 50 para 60%. Nas cidades ultraortodoxas, em março o número de novas ligações à Internet aumentou entre os 200 e os 600%, comparativamente a fevereiro.” Estar “online” vai permitir que consumam informação de outras fontes.

“Uma segunda mudança possível tem a ver com a obediência aos rabinos. Esse respeito continuará a ser central, mas cada vez mais pessoas tenderão a tomar decisões por si próprias em questões pessoais, como o uso da Internet ou a frequência do ensino superior.”

São previsíveis também mudanças a nível económico. Os ultraortodoxos são dedicados à religião e “mais de 40% vive abaixo do limiar de pobreza. As crises económicas limitam a capacidade do Estado apoiar essas comunidades e, nos Estados Unidos [onde vivem quase tantos judeus como em Israel], provocarão uma diminuição do apoio filantrópico a algumas ‘yeshivas’. Por isso, muitos homens haredi não terão alternativa a integrarem-se no mercado de trabalho.”

(FOTO No interior de uma “yeshiva”, na cidade de Bnei Brak, um ultraortodoxo, entregue ao estudo, ignora o polícia equipado com fato protetor JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 20 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Coreia do Sul votou (de máscara e luvas) e premiou Governo pelo combate à covid-19

Os sul-coreanos foram a votos quarta-feira em contexto de pandemia. O escrutínio, que registou a mais alta taxa de afluência dos últimos 28 anos, realizou-se sob rigorosas medidas de proteção. Mas se o uso de máscaras e desinfetante foi tranquilo, a distribuição de luvas descartáveis causou polémica

Medidas sanitárias a observar nas assembleias de voto sul-coreanas

Os sul-coreanos desafiaram o medo e, esta quarta-feira, afluíram às urnas em massa para eleger o próximo Parlamento. De um universo de quase 44 milhões de eleitores, votaram mais de 29 milhões (66,2%) — um recorde de participação desde 1992.

Segundo dados preliminares, o Partido Democrático (PD, centro-esquerda) do Presidente Moon Jae-in foi o grande vencedor, tendo assegurado a eleição de 180 dos 300 deputados da Assembleia Nacional, portanto. Não só garante a maioria absoluta como granjeia a vitória partidária mais expressiva desde que o país começou a ter eleições livres, em 1987.

Entre os 103 deputados eleitos pelo derrotado Partido Futuro Unido (conservador), na oposição, está um desertor norte-coreano. Thae Yong Ho, de 55 anos, era nº 2 na embaixada da Coreia do Norte em Londres quando, em 2016, fugiu para o Sul. Foi agora eleito por Gangnam, o bairro chique de Seul retratado no tema do rapper Psy que correu mundo, Gangnam Style.

Efeito covid

“Os resultados do partido do Governo refletem o nível de aprovação do público em relação à liderança de Moon após a pandemia”, analisa o diário “The Korea Times”.

A Coreia do Sul é identificada como um caso de sucesso ao nível da contenção do coronavírus. Recorrendo a uma estratégia de realização de testes em massa e de aplicação de períodos de quarentena — em detrimento de medidas de confinamento como as que vigoram na maioria dos países europeus —, a Coreia do Sul conseguiu controlar a situação com números relativamente baixos, tendo em conta a sua proximidade geográfica à China.

Esta quinta-feira, pelo quarto dia consecutivo, o país registou menos de 30 novos casos de covid-19. Tem agora um total de 10.613 infetados e 229 mortos, números que Portugal já ultrapassou. Os recuperados são quase 8000.

“Espera-se que os resultados aumentem a confiança de Moon para avançar com políticas importantes a nível da economia, diplomacia, reforma judicial e outras áreas durante o que resta do seu mandato, que termina em maio de 2022”, escreve o jornal coreano.

As luvas da polémica

foram as primeiras eleições legislativas em todo o mundo em época de pandemia e o ambiente em torno das mesas de voto refletiu esses tempos extraordinários.

Após superarem filas de espera por vezes na ordem de dezenas de metros de comprimento — agravadas pela distância física de um metro aconselhada pelas autoridades —, os eleitores, com máscara no rosto, encontravam à entrada das 14.330 assembleias de voto, dispersas por todo o país, um posto de controlo onde lhes era medida a temperatura corporal. Quem superasse os 37.5ºC era encaminhado para uma secção especial para fazer um teste à covid-19.

À entrada, os cidadãos tinham também de desinfetar as mãos antes de calçarem um par de luvas de plástico, que, embora sejam hoje uma arma de defesa contra o coronavírus, não geraram consenso entre os sul-coreanos.

Segundo o jornal “The Korea Herald”, antes das eleições, várias petições apelaram à proibição do uso das luvas por questões… ambientais. “Como votaram mais de 29 milhões de cidadãos, estima-se que mais de 58 milhões de luvas descartáveis tenham sido usadas. Segundo uma ONG local, Movimento Desperdício Zero da Coreia, empilhar as luvas usadas nas eleições podia atingir a altura de sete KLI 63 Building [arranha-céus de 60 andares em Seul] ou 1,7 km de comprimento”. Para os críticos desta medida, os eleitores deveriam ter levado as suas próprias luvas de casa.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui