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Com a Humanidade fechada em casa, os animais passeiam-se pelas cidades

A natureza está a aproveitar o confinamento em casa de milhões de seres humanos para explorar novos espaços. Em Bombaim, há pavões nas ruas. No País de Gales, rebanhos de cabras desceram das montanhas para correrem pela cidade. E, no Brasil, até as tartarugas-marinhas se reproduzem com outra tranquilidade

Uma cabra passeia-se junto à Igreja de Llandudno, no País de Gales CARL RECINE / REUTERS

As medidas de confinamento decretadas por causa da covid-19 fecharam muitos milhões de pessoas em casa e transformaram muitas metrópoles em cidades-fantasma. Essa circunstância tem permitido que o resiliente mundo natural se manifeste de forma surpreendente.

Recentemente, na cidade indiana de Bombaím, pavões aproveitaram a queda abrupta do trânsito nessa metrópole com mais de 10 milhões de habitantes para tomarem as ruas e darem espetáculo. Neste tweet, onde se vê um pavão a dançar com a cauda colorida armada, o autor realça os “pequenos aspetos positivos do confinamento do coronavírus”.

As redes sociais estão cheias de vídeos amadores que registam animais selvagens a explorar cantos e recantos de grandes cidades: javalis em Barcelona, búfalos em Nova Deli, veados e corças em Londres.

No País de Gales, as estrelas foram um grupo de cabras-da-Caxemira que desceram do promontório de Great Orme e tomaram de assalto o centro da cidade de Llandudno, no norte daquela parte do Reino Unido. Correram em rebanho, comeram sebes, jardins e flores às janelas, dormiram no cemitério.

Segundo a publicação inglesa “Express & Star”, as cabras atrevidas serão descendentes de um casal de cabras indianas oferecidas à rainha Vitória pelo Xá da Pérsia, em 1837.

Este morador nem quer acreditar que elas estão de regresso para mais uma voltinha pela cidade…

“Durante séculos, os seres humanos empurraram a vida selvagem para cantos do planeta cada vez mais pequenos. Mas agora, com muitos milhões em isolamento e ruas de cidades vazias, a natureza está a rebater.” Quem assim fala é o ambientalista brasileiro Herbert Andrade, entrevistado pelo jornal norte-americano “The Washington Post”.

Com as praias do município de Paulista (estado de Pernambuco) desertas de locais e turistas, ou mesmo de corredores ocasionais e crianças curiosas, o projeto que lidera, de conservação de tartarugas-marinhas, tem beneficiado de paz total.

“É extremamente importante que o nascimento das tartarugas seja acompanhado pelas pessoas. Esse contacto é fundamental para a educação ambiental, pois sensibiliza a todos sobre a valorização da preservação desses animais”, escreveu esta quinta-feira o ambientalista na sua página no Facebook.

“Porém, neste momento, é válido perceber que se entendermos e respeitarmos a natureza, ela fará muito mais por nós e pelo nosso planeta. As tartarugas estão a desovar mais, por se sentirem mais seguras, e é isso que precisamos de extrair. Se cuidarmos do nosso meio, estaremos cuidando de todos nós.”

Macacos famintos

Se no litoral brasileiro a ausência de seres humanos beneficia a reprodução da espécie, na Tailândia há um exemplo em sentido contrário. Por falta de turistas, os macacos têm mais dificuldade em alimentar-se.

A meiode março, já com a pandemia de covid-19 a deixar em terra turistas de todo o mundo, um bando de centenas de símios esfomeados invadiu de forma desenfreada o centro da cidade Lopburi, a nordeste de Banguecoque. O momento foi registado num vídeo impressionante que o diário britânico “The Guardian” obteve e que pode ser visualizado aqui.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

A guerra dos militares agora é contra a covid-19

De El Salvador ao Vietname, há soldados envolvidos das mais variadas formas no combate ao novo vírus. Ajudam a montar hospitais, desinfetam espaços, fiscalizam o trânsito e o confinamento das populações. Na esmagadora maioria dos casos, as mãos substituíram as armas

EL SALVADOR. Um soldado controla a distância social numa fila de espera no exterior de uma repartição bancária, em Santa Ana JOSE CABEZAS / REUTERS
ALEMANHA. Em Hanover, militares transportam uma cama para um hospital improvisado num espaço que era até então um centro de exposições PETER STEFFEN / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. No aeroporto da cidade de Palangka Raya, soldados transportam caixas com equipamento médico para ser distribuído por hospitais MAKNA ZAEZAR / REUTERS
ÁFRICA DO SUL. Um soldado e um polícia controlam o cumprimento do período de confinamento, em Eldorado Park, um subúrbio de Joanesburgo SIPHIWE SIBEKO / REUTERS
EUA. Militares participam numa ação de desinfeção no Liceu New Rochelle, em Nova Iorque ANDREW KELLY / REUTERS
EQUADOR. Um cidadão mostra a um militar um documento que atesta a razão para circular na via pública, em Guayaquil, “a Wuhan do Equador” MARCOS PIN / AFP / GETTY IMAGES
ESPANHA. Militares descarregam material de camiões para montarem um hospital de campanha, num centro desportivo de Cabanyal, na região de Valência ROBER SOLSONA / GETTY IMAGES
COLÔMBIA. Um membro do exército transporta contentores para materiais perigosos numa tenda montada para pacientes com covid-19, junto ao Hospital Militar, em Bogotá LEONARDO MUNOZ / REUTERS
MALÁSIA. Um soldado entrega uma máscara a um sem-abrigo, na capital do país, Kuala Lumpur ZAHIM MOHD / GETTY IMAGES
ITÁLIA. Em Veneza, militares patrulham a Praça de São Marcos, despida de gente MANUEL SILVESTRI / REUTERS
BANGLADESH. Soldados pulverizam com desinfetante um riquexó, em Daca MD ABU SUFIAN JEWEL / GETTY IMAGES
MÉXICO. Um militar patrulha uma praia quase deserta, em Acapulco JAVIER VERDIN / REUTERS
REINO UNIDO. Um soldado pratica os conhecimentos adquiridos durante uma formação em cuidados de saúde para poder apoiar as ambulâncias, no País de Gales REUTERS
ÍNDIA. Durante o confinamento, um soldado controla um grupo de trabalhadores imigrantes à espera de autocarro para regressarem à aldeia onde vivem, em Ghaziabad, arredores de Nova Deli ANUSHREE FADNAVIS / REUTERS
JORDÂNIA. Um militar distribui flores a pessoas que estiveram duas semanas em quarentena num “resort” no Mar Morto, cerca de 60 km para sul de Amã KHALIL MAZRAAWI / REUTERS
QUIRGUISTÃO. Posto de controlo militar nos arredores de Bishkek, a capital do país, durante o período de confinamento VYACHESLAV OSELEDKO / AFP / GETTY IMAGES
FRANÇA. Militares participam num simulacro num hospital de campanha, em Mulhouse SEBASTIEN BOZON / REUTERS
GUATEMALA. Distribuição de comida a populações pobres, durante o recolher obrigatório na cidade da Guatemala, a capital do país LUIS ECHEVERRIA / REUTERS
ROMÉNIA. Militares levam a cabo uma operação stop, na Praça da União, no centro de Bucareste ALEX NICODIM / GETTY IMAGES
FILIPINAS. Um soldado verifica a temperatura de profissionais de saúde antes de entrarem num autocarro gratuito que os levará ao trabalho, na cidade de Quezon ELOISA LOPEZ / REUTERS
MARROCOS. Um veículo militar patrulha uma rua de Rabat, que está a ser desinfetada por trabalhadores do Ministério da Saúde FADEL SENNA / AFP / GETTY IMAGES
VIETNAME. Um soldado está de vigia no portão de um espaço de quarentena localizado numa base militar, na região de Lang Son NGUYEN HUY KHAM / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Se a Coreia do Sul já foi a votos em guerra, não deixará de o fazer em tempo de pandemia

Como realizar eleições quando existe à solta um vírus altamente contagioso? Esta quarta-feira, os sul-coreanos vão mostrar como se faz. É dia de legislativas

Medidas sanitárias a observar nas assembleias de voto sul-coreanas

Em tempos de pandemia, ir a votos não é tarefa necessariamente impossível — esta quarta-feira, a Coreia do Sul vai eleger os 300 deputados da sua Assembleia Nacional. O surto de pandemia estará presente de forma implícita, podendo influenciar quer a taxa de afluência às urnas quer o resultado do Partido Democrático da Coreia (centro-esquerda), no poder, pela forma como respondeu à crise.

Certo é que já levou à introdução de alterações na forma como o escrutínio habitualmente decorre. Segundo o jornal “The Korea Times”, nas 14.330 assembleias de voto espalhadas por todo o país, haverá medidas especiais para impedir a proliferação do vírus: “verificação da temperatura corporal, fornecimento de luvas plásticas descartáveis e uma cabine separada para eleitores que apresentem altas temperaturas [acima dos 37.5ºC] ou sintomas respiratórios”.

Quem estiver em situação de quarentena voluntária, sem sintomas de covid-19, poderá votar em assembleias montadas em centros especiais a partir das 18h, ou seja, após o encerramento das urnas para os eleitores sem problemas (que abrem às 8h da manhã).

Votar por antecipação para escapar à confusão

Para evitar multidões, cerca de 11 milhões de eleitores (26,69%) — num total de 43,9 milhões — jogaram pelo seguro e recorreram ao voto antecipado, sexta-feira e sábado pasasdos, reduzindo a exposição ao risco de contágio no dia das eleições, que se prevê concorrido. Segundo uma sondagem solicitada pela Comissão Nacional de Eleições, 79% dos inquiridos deu certezas de que iria votar e 15,1% disse que “possivelmente” o faria.

À reportagem da CNN em Seul, Lee Chang-Hoe, de 53 anos, diz: “Não estou muito preocupado com a hipótese de apanhar o vírus na assembleia de voto, desde que tenhamos em mente a necessidade de manter a distância social. Tal como um rio congelado no inverno, apesar de haver uma camada espessa de gelo à superfície, a água tem de correr por baixo. Penso que acontece o mesmo com as eleições, mesmo durante o surto de coronavírus, as eleições devem continuar”.

No início da pandemia, a Coreia do Sul chegou a ser o país mais afetado pelo coronavírus a seguir à China. Abdicou de medidas rigorosas de confinamento e apostou fortemente na realização de testes. Hoje, tem o surto controlado, tendo reportado, esta terça-feira, 27 novos casos, o que contribui para um total 10.564 casos positivos. Morreram 222 pessoas.

Seul tem, no entanto, uma preocupação persistente — os casos de reinfeção, que já ascendem a 116. O primeiro data de 28 de fevereiro, numa mulher de 70 anos, seis dias após ter sido dada como recuperada.

Eleições em tempos de guerra

Ainda que a CNN considere “chocante” observar “grandes reuniões públicas” em tempos de pandemia como as que decorrem das ações de campanha, a história diz que a Coreia do Sul nunca adiou um ato eleitoral, nem mesmo durante a guerra entre as duas Coreias (1950-53). A 5 de agosto de 1952, realizaram-se eleições presidenciais com uma taxa de participação de 88%.

Neste capítulo, a Coreia do Sul não é caso único, já que, por exemplo, os Estados Unidos realizaram eleições presidenciais em 1864, durante a guerra civil. E em 1918, durante o surto de febre espanhola que matou cerca de 675 mi pessoas no país, decorreram eleições para o Congresso.

Ao contrário da Coreia do Sul, pelo menos 47 países — em fases diferentes do surto — cederam ao vírus e adiaram consultas populares que tinham agendadas: eleições locais no Reino Unido e França, primárias do Partido Democrata nos Estados Unidos, legislativas no Sri Lanka e na Bolívia, referendos na Rússia e na Polónia, são alguns exemplos.

Em Portugal, o único ato eleitoral previsto para este ano acontecerá no outono. Ainda sem dia marcado, servirá para eleger a Assembleia Legislativa Regional dos Açores.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Uma Jerusalém deserta e o Santo Sepulcro encerrado. As imagens da Páscoa na Terra Santa

As ruas de Jerusalém estão desertas quando, noutros anos por esta altura, estavam a transbordar de fiéis e turistas. No Santo Sepulcro, que está de portas fechadas, como todos os outros sítios culturais e religiosos da Terra Santa, as orações fazem-se do lado de fora. E a Via Dolorosa é percorrida simbolicamente por pequenos grupos de monges ou crentes solitários. Tudo por causa do coronavírus

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A tradicional procissão cristã de Domingo de Ramos foi substituída por uma oração no Monte das Oliveiras, com vista para as muralhas de Jerusalém e para a Cúpula do Rochedo, um dos locais mais importantes para os muçulmanos AMMAR AWAD / REUTERS
Na praça em frente à Porta de Damasco, uma das entradas na cidade velha de Jerusalém, a azáfama habitual deu lugar a ações de desinfeção do espaço AMMAR AWAD / REUTERS
Um voluntário lava a porta de entrada na Basílica do Santo Sepulcro, que abriga o túmulo de Jesus Cristo, em Jerusalém MOSTAFA ALKHAROUF / GETTY IMAGES
Em tempos de pandemia, o Santo Sepulcro está de portas fechadas. Num dos locais mais importantes para os cristãos de todo o mundo, só se reza do exterior EMMANUEL DUNAND / AFP / GETTY IMAGES
Este cristão desafia as restrições à circulação de pessoas para rezar diante do Santo Sepulcro GALI TIBBON / AFP / GETTY IMAGES
Na Terra Santa, todos os sítios religiosos e culturais estão encerrados ao público. Uma medida justificada com a urgência do combate ao coronavírus GALI TIBBON / AFP / GETTY IMAGES
Um peregrino solitário transporta a cruz enquanto percorre a Via Sacra, na cidade velha de Jerusalém AMMAR AWAD / REUTERS
Também designada Via Dolorosa, a Via Sacra reconstitui o trajeto que Jesus percorreu até ao Calvário, carregando a cruz AMMAR AWAD / REUTERS
Um voluntário pulveriza o corrimão que ajuda à caminhada numa secção da Via Dolorosa EMMANUEL DUNAND / AFP / GETTY IMAGES
Na Sexta-Feira Santa, frades franciscanos realizam uma pequena procissão na Via Sacra EMMANUEL DUNAND / AFP / GETTY IMAGES
Um homem com máscara caminha sozinho pela cidade velha de Jerusalém. As lojas, que noutros anos estariam a abarrotar de turistas, estão de portas fechadas AMMAR AWAD / REUTERS
No norte de Israel, a cidade de Nazaré, com uma forte conotação cristã, está sem turistas. O mercado da cidade velha está de portas fechadas RAMI AYYUB / REUTERS
Também Belém, no território palestiniano da Cisjordânia, está sem turistas. Para quem visita a Terra Santa é passagem obrigatória já que Jesus nasceu nesta cidade MUSTAFA GANEYEH / REUTERS
Em Belém, a Igreja da Natividade, que abriga o local onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo nasceu, está encerrada aos fiéis MUSTAFA GANEYEH / REUTERS
Diante da primeira estação da Via Dolorosa, este peregrino cristão entrega-se à oração, tentando ignorar o incómodo das luvas e das máscaras EMMANUEL DUNAND / AFP / GETTY IMAGES
Dois homens protegidos com máscaras passam tranquilamente junto à oitava estação da Via Sacra, sem cortejos religiosos AMMAR AWAD / REUTERS
Dois polícias israelitas, equipados e protegidos, patrulham a zona junto à quinta estação da Via Dolorosa AMMAR AWAD / REUTERS
Sem peregrinos em Jerusalém, as cerimónias religiosas, mais curtas e simbólicas do que habitualmente, ficam entregues aos monges GALI TIBBON / AFP / GETTY IMAGES
Monges católicos realizam uma oração junto à porta de entrada na Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém AMMAR AWAD / REUTERS
Dois cristãos expressam a sua fé com a mesma devoção como que se estivessem no interior do Santo Sepulcro ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES
Um dos muitos miradouros da cidade velha de Jerusalém. Estranhamente sem turistas MOSTAFA ALKHAROUF / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

“500 Boeing 777 totalmente carregados”. Em tempo de aviões parados, Qatar aposta na “geopolítica covid”

O Qatar está a aproveitar a pandemia global para se afirmar como um país poderoso e solidário e, ao mesmo tempo, desvalorizar o bloqueio de que é alvo por parte de alguns “irmãos” árabes. O pivô ao serviço desta estratégia é a Qatar Airways

O surto do novo coronavírus paralisou a indústria da aviação em todo o mundo, mas a Qatar Airways anda num corrupio. A companhia aérea do Qatar mantém serviços comerciais regulares para dezenas de países e opera “charters” para repatriar cidadãos estrangeiros encurralados pelo fecho de fronteiras. Paralelamente, tem assegurado o transporte de toneladas de material e ajuda médica para países em desespero.

Só no mês de março trabalhou “com governos e organizações não governamentais de todo o mundo para transportar mais de 50 milhões de quilos de ajuda e suprimentos médicos”, congratulou-se a empresa no Twitter. “Isto equivale a cerca de 500 Boeing 777 totalmente carregados.”

A transportadora do pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico opera sobretudo para a Europa, Ásia e Austrália. Muitas vezes, a taxa de ocupação dos aparelhos fica pela metade, ou menos ainda. Akbar al-Baker, o presidente-executivo da Qatar Airways, já disse que a empresa só tem dinheiro para sustentar as operações por “um período muito curto”. “Certamente iremos pedir apoio ao nosso governo”, alertou, em declarações à agência Reuters.

O que motiva então a Qatar Airways a “torrar” dinheiro numa altura em que a esmagadora maioria das congéneres tem os hangares e pistas cheios de aviões parados?

“A Qatar Airways é muitas vezes considerada um instrumento de ‘soft power’ [a capacidade de influência de um país através da ideologia ou da cultura, e não das armas]. Eu concordo em certa medida. É uma boa maneira de o país se mostrar e, como se costuma dizer, ‘colocar o Qatar no mapa’”, explica ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Mas essa ideia não deve ser levada longe demais. Eu não concordo com o ditado que diz que ‘não existe má publicidade’. Só porque o Qatar é conhecido, isso não significa automaticamente um impulso para o Estado.”

Mas é um facto que, nestes tempos de crise, o Qatar tem marcado pontos na forma como está a contrariar a inércia global forçada. Esta semana, James Cleverly, secretário de Estado do Reino Unido para o Médio Oriente e Norte de África, agradeceu à Qatar Airways por ter ajudado 45 mil britânicos espalhados pelo mundo a regressar a casa. Anteriormente, tinha sido o embaixador da Alemanha no país, Hans-Udo Muzel, a expressar gratidão.

Além de britânicos e alemães, o Qatar já ajudou a repatriar australianos, franceses, suíços, canadianos, norte-americanos, indianos, paquistaneses, filipinos e omanitas, em “charters” organizados pelos respetivos governos.

“Recebemos muitos pedidos de governos de todo o mundo para que a Qatar Airways não páre de voar”, disse Akbar al-Baker, presidente executivo da empresa. “Voaremos enquanto for necessário.”

O protagonismo da Qatar Airways ganha relevância quando dele fazemos uma interpretação geopolítica. Desde junho de 2017 que o Qatar é alvo de um bloqueio regional — económico, político e físico —, liderado pela Arábia Saudita e coadjuvado por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito. Entre as acusações feitas ao Qatar está a sua proximidade ao Irão.

O bloqueio agravou substancialmente o custo de vida no Qatar, mas o reino não dá mostras de cedências, mantendo, por exemplo, a ambição de realizar um Mundial de Futebol inesquecível, em 2022.

“As reservas financeiras do Qatar têm sido a sua principal arma. É o país mais rico à face da Terra em termos ‘per capita’, o que significa que pode comprar a forma de sair dos problemas e pedir emprestado o que necessita”, diz David B. Roberts, autor do livro “Qatar — Securing the Global Ambitions of a City-State” (2017). “O dinheiro não é tudo — a Venezuela deveria ser um Estado rico e a funcionar bem —, mas combinado com liderança sensata quase sempre resulta.”

A emergência resultante deste contexto de pandemia poderia contribuir para diluir a conflitualidade geopolítica no Golfo Pérsico, mas não é o que acontece. A 27 de março, 31 cidadãos do Bahrain, transportados num voo comercial da Qatar Airways desde o Irão (o país da região mais fustigado pela covid-19) ficaram retidos no aeroporto de Doha (capital do Qatar), impedidos de seguir viagem. O Bahrain é um dos pilares do bloqueio e não permite voos diretos com o Qatar.

Perante a nega, o Qatar — que tinha proposto fazer o transporte gratuitamente, em avião privado — ofereceu alojamento num hotel aos cidadãos do Bahrain.

“A interferência do Qatar na questão dos cidadãos retidos visa ofender o Bahrain”, acusou Khalid bin Ahmed al-Khalifa, ministro dos Negócios Estrangeiros do reino desde 2005 e até janeiro passado. “Doha deve parar de usar uma questão humanitária como a pandemia de covid-19 nos seus planos e conspirações contra países e povos.”

A contenda resolveu-se a 29 de março. Segundo a publicação “Bahrain Mirror”, os 31 cidadãos do Bahrain saíram do Qatar a bordo de um “charter” pago pelo seu país, fretado à companhia Iranian Kish, ou seja, do inimigo Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui