O Papa Francisco escolheu Henrique Cymerman para dar a sua primeira entrevista, no Vaticano, a uma televisão. Ao “Expresso”, o jornalista partilha momentos a sós entre os dois e descreve a sua reação quando o Papa lhe chamou “anjo da paz”
Quando ia a caminho da Residência de Santa Marta, no Vaticano, para entrevistar o Papa Francisco, o jornalista Henrique Cymerman temeu o pior. “Recebemos a informação que o Papa estava doente e que todos os seus compromissos para aquele dia estavam a ser cancelados. Chegamos e o secretário do Papa disse-me que ele queria que eu fosse vê-lo ao quarto. Sem câmaras. Sentamo-nos e ele disse: ‘Henrique, para mim, tu foste um anjo da paz. Muito obrigado pelo teu papel. Sem ti, a oração de ontem não teria acontecido’. Eu respondi que tinha sido um trabalho de equipa e ele contrapôs: ‘É verdade, mas o principal papel foi o teu’.”
Na véspera, domingo passado, o Papa tinha reunido, no Vaticano, os Presidentes israelita e palestiniano numa oração pela paz. Em entrevista ao “Expresso”, o jornalista confessa que ao ouvir o elogio do Papa, teve “vontade de rir”. “Ele tem muito sentido de humor, faz piadas e ri-se muito. Eu pensava que ele estava a brincar comigo. Quando ele disse que eu era um anjo quase lhe respondi: ‘Não, não tenho asas’. Mas logo percebi que ele falava a sério. Fiquei um bocado à rasca, reconheço.”


Ao recordar o momento, Cymerman admite ter ficado “chocado” com a simplicidade dos aposentos papais. “Ele vive num pequeno apartamento, que mais parece um hotel de três estrelas dos anos 70. É um local simples, com mobílias simples, uns sofás verdes de veludo. O quarto deve ter uns 10 metros quadrados, a sala é um pouco maior. Tem também uma espécie de escritório, que é um cantinho cheio de papéis e livros. ‘Aqui não se atrevem a tocar porque eu não deixo’, disse ele.”
A sós, no quarto, o Papa expressou vontade de agradecer ao jornalista português diante das câmaras. “Saímos e enquanto cruzávamos toda a Santa Marta íamos conversando sobre coisas que tinham acontecido durante a oração. Ele levava um saco na mão que me parecia bastante pesado.” Quando as câmaras se ligaram, o Papa repetiu os elogios e ofereceu-lhe uma escátula, “uma obra de arte de um artista de Roma de há um século que se chama ‘o anjo da paz’ e na qual se vê o anjo da paz a vencer o diabo da guerra”. “É uma condecoração que, normalmente, ele dá aos reis e chefes de Estado. Para mim, foi um pouco exagerado. Mas foi assim que ele sentiu. Foi do coração. Foi um momento muito emotivo que vou lembrar para o resto da vida”, assegura.
Entrevista sem pré-condições
A entrevista que se seguiu, e que é transmitida esta sexta-feira na SIC, durou 52 minutos. “Senti que podíamos ter continuado mais duas horas, mas ele estava doente e denotava algum cansaço. Fez um grande esforço para dar esta entrevista”, a primeira a uma estação de televisão realizada no Vaticano.
A conversa foi combinada sem pré-condições. “Eu acho que ele tem bastante confiança em mim”, diz Cymerman, que admite que essa química é recíproca. “Eu já disse ao Papa que sou totalmente judeu. Mas na minha forma de ver o mundo, sou bergogliano. Partilho com ele muitos valores.”
Francisco fala também do seu futuro e revela que, aberto o precedente por Bento XVI, que se tornou Papa Emérito, não hesitará em renunciar ao Pontificado quando sentir que a saúde lhe falta. “O Papa não tem tempo. Ele diz, na brincadeira, que os ritmos dos diplomatas e dos burocratas são muito lentos para ele. Almoça e janta em 15 minutos. Com ele, é tudo muito rápido, muito direto.”
Na entrevista, o chefe da Igreja Católica fala de abusos cometidos pelo clero e de uma certa opulência que o incomoda e desagrada, revela quais são as suas intenções em relação aos arquivos do Vaticano sobre o Holocausto e diz o que sentiu após ler um livro sobre a Inquisição em Espanha e Portugal.
A discrição de um hotel de 3 estrelas
A pressa em obter resultados fez-se sentir sobre Henrique Cymerman durante o processo de organização da “oração pela paz”, que fez o jornalista ir seis vezes ao Vaticano, a custas próprias, no último ano. “No dia da Canonização de João Paulo II (a 27 de abril passado), reuni-me, com israelitas e palestinianos, numa pequena sala no terceiro andar do Relais Dei Papi, um hotel de três estrelas (em Roma). Não queríamos ir a hotéis grandes para não chamar a atenção. Ninguém tinha a mínima ideia do que estávamos ali a fazer.”
A viagem papal à Terra Santa já estava marcada (entre 24 e 26 de maio) e as partes tentavam encaixar a “oração da paz” no programa. “O Papa pressionava-me muito. Dizia: ‘Tens de ajudar-me, tens de salvar isto. Pode ser em qualquer lugar, a qualquer hora, eu estou disposto a tudo’.”
A hipótese do encontro realizar-se em Jerusalém colocava a iniciativa em perigo. “Os palestinianos colocaram problemas. Diziam que o Presidente Mahmud Abbas não queria ir a Jerusalém temendo que isso pudesse provocar uma humilhação, por parte das forças de segurança israelitas, nos checkpoints.”
Passada a histórica oração, o correspondente do “Expresso” em Israel diz ter a impressão que o Papa Francisco não ficará por aqui, no que a iniciativas de paz para o conflito israelo-palestiniano diz respeito. “Ele é uma pessoa com os pés na terra. Entende que não podemos esperar que, de repente, haja uma paz messiânica em toda a região, mas acredita que é preciso dar passos”, passos modestos na direção certa.
A PROMESSA A DILMA
Na entrevista à SIC, Francisco explica por que motivo não tem medo de contactar com as pessoas, sabendo que isso pode custar-lhe a vida, e partilha a promessa que fez — sendo ele argentino — à Presidente brasileira, Dilma Rousseff, a propósito do Mundial de Futebol. Para saber qual, tem de ver a reportagem que passa na SIC esta sexta-feira, no Jornal da Noite, e depois na SIC Notícias, às 22h30, seguida de debate. (Link da entrevista de Henrique Cymerman ao Papa Francisco)
(Foto principal: Papa Francisco e Henrique Cymerman, na residência de Santa MArta, no Vaticano HENRIQUE CYMERMAN)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 13 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui