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“Honraram a minha fé”, disse Khan a partir da prisão, mas não era a sua voz e isso levanta uma questão: pode a IA contornar a repressão?

Apesar de estar preso, o ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan participou na campanha para as legislativas e celebrou a vitória com um discurso para os apoiantes. Tudo graças à inteligência artificial que recriou a sua voz e colocou-o a proferir uma mensagem composta a partir de notas que Khan passou para o exterior da cadeia. “A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta ao Expresso um especialista na área da Computação e da Inteligência Aumentada. “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”

Imran Khan vendeu caro o seu afastamento da política ativa e da vida em liberdade. Detido desde agosto e sujeito a uma catadupa de processos na justiça — orquestrados pelos militares, com motivações políticas e assentes em acusações forjadas, assim pensa ele e quem o defende —, o antigo primeiro-ministro do Paquistão viu os candidatos conotados com o seu partido ganhar a maioria dos assentos no futuro Parlamento, nas eleições de quinta-feira passada.

Com o partido de Khan dissolvido pelo Supremo Tribunal, militantes perseguidos e ele próprio desqualificado para concorrer — só nas últimas duas semanas, recebeu três penas de prisão de 10, 14 e 7 anos, por divulgação de segredos de Estado, corrupção e casamento ilegal, respetivamente —, os candidatos do Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI) apresentaram-se nas urnas como independentes.

Quer os entraves ao funcionamento do partido, quer as restrições adotadas pelas autoridades no dia das eleições — que decretaram um blackout nas comunicações móveis e na Internet durante o período de votação — não foram suficientes para o derrotar. Imran Khan está encarcerado, mas não o está a sua enorme popularidade, que advém dos tempos em que era uma estrela do críquete e capitaneou a seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1982.

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dos 260 deputados eleitos, a 8 de fevereiro, para a Assembleia Nacional são independentes apoiados pelo PTI de Imran Khan. Será a fação maioritária no parlamento

Na hora de celebrar a vitória, foi Imran Khan “quem fez” o discurso para os seus apoiantes — não de viva voz, dado estar preso e privado de participar em atos políticos, mas com o seu timbre vocal gerado por inteligência artificial, numa demonstração de como a tecnologia pode ser usada para contornar a repressão política.

Num vídeo, uma imagem antiga de Khan surge a discursar com os movimentos labiais sincronizados com o som criado pela inteligência artificial. A mensagem foi composta a partir de notas passadas pelo próprio aos seus advogados.

“Eu tinha plena confiança de que todos vocês iriam votar. Todos vocês honraram a minha fé e a vossa participação massiva surpreendeu a todos”, disse a voz de Khan. (Abaixo a versão do discurso em língua inglesa.)

Não foi a primeira vez que o staff de Khan socorreu-se da tecnologia para combater as restrições impostas ao partido e contornar a censura noticiosa às suas iniciativas. Durante a campanha, militantes do PTI alimentaram a dinâmica eleitoral organizando comícios digitais em plataformas como o YouTube e o TikTok, com a voz de Khan gerada por inteligência artificial. Abaixo, outro exemplo.

“A equipa de redes sociais do PTI emergiu como um farol de inovação, empregando técnicas engenhosas para chegar aos cidadãos em todo o país, uma reminiscência de tigres encurralados que lutam pela sobrevivência”, reconheceu o próprio partidoA televisão árabe “Al-Jazeera” rotulou a estratégia da equipa de Imran Khan de “campanha de guerrilha”.

“Esta é, sem dúvida, uma boa utilização da clonagem de voz, dadas as circunstâncias” repressivas em torno da candidatura de Imran Khan, diz ao Expresso Subbarao Kambhampati, professor na Escola de Computação e Inteligência Aumentada, da Universidade Estatal do Arizona (EUA). Porém, “com mais frequência ouvimos e preocupamo-nos com o mau uso ou utilizações perigosas, como a utilização de vozes clonadas em anúncios políticos enganosos.”

Um exemplo recente teve como protagonista o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Nas vésperas das primárias democratas no estado do New Hampshire, que se realizaram a 23 de janeiro, uma voz criada para soar como a do candidato democrata foi usada em mensagens telefónicas gravadas destinadas a desencorajar as pessoas de irem votar.

“O seu voto faz diferença em novembro, não nesta terça-feira”, ouvia-se. Para 5 de novembro estão agendadas as eleições presidenciais. “Embora a voz na chamada automática soe como a voz do Presidente Biden, esta mensagem parece ter sido gerada artificialmente”, apurou o gabinete do procurador-geral de New Hampshire.

“A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta Subbarao Kambhampati. “Embora as autoridades se esforcem por penalizar estas práticas e por ajudar a detetá-las (por exemplo, colocando marcas de água nos meios de comunicação gerados sinteticamente), estas medidas não serão suficientes para impedir que aqueles que espalham desinformação usufruam dos dividendos das suas mentiras.”

Uma das normas de segurança recentes é o C2PA, desenvolvido por grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft e a Adobe. Visa a criação de um protocolo universal de Internet que permita aos criadores de conteúdos adicionarem um “rótulo nutricional”, como lhe chama o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com informações sobre a sua origem: de onde veio e quem ou o quê o criou.

Do além para a campanha

Outro exemplo recente de uma voz clonada para fins políticos, e que parece confirmar a tendência para que 2024 sobressaia como um ano de grande desinformação eleitoral, aconteceu na Indonésia, onde, esta quarta-feira, realizam-se eleições presidenciais.

Suharto, um antigo general que governou o arquipélago indonésio com ‘mão de ferro’ durante mais de 30 anos, e que morreu em 2008, ‘ganhou vida’ num vídeo criado por inteligência artificial que clona a voz e a imagem do antigo ditador.

“O vídeo foi feito para nos lembrar da importância dos nossos votos nas próximas eleições”, disse Erwin Aksa, vice-presidente do Golkar, o partido político que promoveu o vídeo. O Golkar não apresentou um candidato presidencial próprio, mas deu apoio a Prabowo Subianto, o atual ministro da Defesa, que é genro do ditador Suharto.

Para Subbarao Kambhampati, a integração na política das ferramentas deepfake — que usam inteligência artificial para fundir, substituir ou sobrepor áudios e imagens, produzindo assim vídeos e áudios falsos — veio para ficar. “Nos próximos anos, certamente irá difundir-se mais. Depois disso, a nossa capacidade de adaptação à nova realidade — e de não confiarmos em informações que não sejam autenticadas (como, por exemplo, por jornais de confiança, tecnologia de marca de água digital ou tecnologia de autenticação criptográfica) — será alcançada e iremos aceitá-la com calma.”

Segundo o professor, à medida que as falsificações se tornem mais sofisticadas, também aumentará a nossa imunidade a elas: “Aprenderemos a não confiar nos nossos sentidos e a insistir na autenticação”.

Até lá, deixa um conselho: “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Jornada eleitoral no Paquistão: eleitores votaram com comunicações suspensas e fronteiras encerradas

Os paquistaneses foram a votos num escrutínio que desafiou, em múltiplas frentes, a democracia que o país reclama. A Internet foi suspensa, as fronteiras com dois países foram encerradas, houve milhares de agentes mobilizados em nome da segurança da jornada eleitoral, mas pelo menos nove pessoas morreram em atos violentos. Tudo acontece com o político mais popular do país detido e objeto de sucessivas penas de prisão

Imran Khan, o político mais popular do Paquistão, está preso DEVIANT ART

O Paquistão realizou, esta quinta-feira, as 12.ª eleições gerais desde que se tornou um país independente, em 1947. Exatamente 128.585.760 eleitores — numa população de mais de 243 milhões — foram convocados para escolher os membros da próxima Assembleia Nacional e também das assembleias das quatro províncias — Balochistão, Khyber Pakhtunkhwa, Punjab e Sindh.

Durante mais de três décadas, o país foi governado pelos militares, mas nos últimos 16 anos, pelo menos oficialmente, o Governo tem estado nas mãos de civis, naquele que é o período ininterrupto mais longo de liderança civil. Cada ato eleitoral é, por essa razão, uma oportunidade de consolidação da democracia. Esta quinta-feira, alguns episódios expuseram um país no fio da navalha.

O político mais popular está preso

Imran Khan, de 71 anos, é uma antiga estrela do críquete — capitão da seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1992 — que manteve intacta toda a sua popularidade quando decidiu entrar na política.

Foi afastado do poder em abril de 2022, no âmbito de uma moção de censura, e tem vindo a ser condenado em sucessivos processos na justiça. A última sentença foi-lhe atribuída no sábado passado: um tribunal civil considerou que o seu casamento com Bushra Bibi, celebrado em 2018, violava a lei islâmica e condenou ambos a sete anos de prisão.

Dias antes, Khan fora condenado a 10 anos, considerado culpado num caso de divulgação de segredos de Estado. Já em meados de 2023, tinha sido condenado a três anos de prisão por corrupção.

Detido na Prisão Adiala, em Rawalpindi, o líder do partido Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI), fundado em 1996 com o propósito de acabar com a corrupção no pais, votou por via postal.

Uma campanha de repressão visando apoiantes do PTI, nos dias que antecederam o escrutínio, avolumaram preocupações acerca do caráter livre e justo das eleições. Nos boletins de voto, onde os partidos são identificados por símbolos, o taco de críquete que identifica o PTI foi proibido.

Blackout nas comunicações

Durante o período de votação, as comunicações móveis e os serviços de dados estiveram suspensos em todo o país.

blackout teve impacto na dinâmica eleitoral, já que eleitores perderam formas de se coordenarem na ida às urnas, candidatos ficaram sem canais de comunicação com os seus representantes nas assembleias de voto, informações importantes emitidas divulgadas por SMS pela Comissão Eleitoral deixaram de estar acessíveis.

Na página da Comissão Eleitoral, a instituição disponibilizou um endereço de e-mail para os eleitores — privados de acesso à Internet — apresentarem queixas e denunciarem situações irregulares.

Estes constrangimentos levaram o PTI, de Imran Khan, a sugerir um truque: “Paquistaneses, o regime ilegítimo e fascista bloqueou os serviços de telemóvel em todo o Paquistão no dia das eleições. Vocês estão todos convidados a combater este ato covarde, removendo as passwords das vossas contas pessoais de WiFi, para que qualquer pessoa nas proximidades possa ter acesso à Internet neste dia extremamente importante”.

Violência é arma de combate político

Por todo o Paquistão, a Comissão Eleitoral estabeleceu 90.777 assembleias de voto, considerando 29.985 “sensíveis”, no que respeita às condições de segurança, e 16.766 “altamente sensíveis”, noticiou o jornal digital “Pakistan Observer”. Cerca de 44 mil foram consideradas “normais”.

Para garantir um ato eleitoral seguro, o Governo mobilizou para o efeito cerca de 650 mil agentes das forças de segurança. Ainda assim, pelo menos nove pessoas, incluindo duas crianças e seis agentes, foram mortas na sequência de ataques com granadas, explosões de bombas e tiroteios, em várias regiões do país.

Já a véspera da jornada eleitoral foi sangrenta com pelo menos 28 mortos contabilizados em dois ataques à bomba junto a sedes de candidatura, na província do Balochistão. Estes atentados foram reivindicados pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

Duas das quatro fronteiras encerradas

Outra medida temporária, à semelhança da suspensão das comunicações, foi o encerramento das fronteiras com o Irão e o Afeganistão. O Paquistão tem fronteira também com a Índia e a China.

O Ministério do Interior justificou as restrições adotadas no dia das eleições dizendo: “Como resultado dos recentes incidentes de terrorismo no país, nos quais vidas preciosas foram perdidas, as medidas de segurança são essenciais para a manutenção da lei e da ordem e para lidar com possíveis ameaças”.

As fronteiras foram encerradas à circulação automóvel e também pedestre. Em comunicado, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros anunciou que a normalidade nas fronteiras será retomada na sexta-feira.

Votar ainda está vedado a muitas mulheres

Entre os mais de 128 milhões de eleitores, 59 milhões são mulheres, quase metade portanto. No entanto, no universo de 5121 candidatos aos 265 assentos na Assembleia Nacional, há apenas 312 do sexo feminino. Para além dos 4807 homens, há ainda dois candidatos transgénero.

No país que se notabilizou por ter eleito, pela primeira vez em todo o mundo, a primeira mulher muçulmana para a sua liderança — a primeira-ministra Benazir Bhutto, em 1988 —, as paquistanesas continuam a esbarrar com conservadorismo social e costumes tribais.

Reportagens como esta da agência France Presse, realizada em Dhurnal, na província do Punjab, revelam que, na hora de votar, muitas mulheres são impedidas de o fazer pelos homens da família, sejam o marido, o pai, um irmão ou um filho.

“A mulher não tem autonomia para tomar decisões de forma independente”, diz uma viúva de 60 anos, mãe de sete raparigas, seis delas com formação universitária. “Falta aos homens a coragem para garantir às mulheres os seus direitos.”

Dinastia política continua a fazer escola

Um dos principais partidos a ir a votos é o Partido Popular do Paquistão (PPP), fundado em 1967 por Zulfikar Ali Bhutto, que viria a ser primeiro-ministro e Presidente do Paquistão e seria condenado à morte por enforcamento na sequência de um golpe militar.

Zulfikar era o pai de Benazir Bhutto, que foi primeira-ministra entre 1988 e 1990 e ainda entre 1993 e 1996. Benazir foi assassinada a 27 de dezembro de 2007, num ataque suicida realizado durante um comício eleitoral em Rawalpindi. À semelhança do pai, também Benazir liderou o PPP.

Atualmente, quem dirige esse partido político é Bilawal Bhutto-Zardawi, filho de Benazir e neto de Zulfikar. O seu pai, Asif Ali Zardari, foi também Presidente do Paquistão, entre 2008 e 2013.

Nascido em 1988, Bilawal desenvolveu uma campanha com ênfase nas alterações climáticas e na igualdade de género na economia. Apesar de ter uma irmã mais nova — Aseefa Bhutto-Zardari, que também já debutou na política —, é ele o descendente desta importante dinastia política paquistanesa, muito atingida pela violência política.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Quem ataca quem no Médio Oriente? A Palestina é o pretexto comum, mas os nove países envolvidos têm agenda própria

Em três meses, o conflito na Faixa de Gaza assumiu uma dimensão regional, com vários Estados a envolverem-se em trocas de fogo. A Palestina é o argumento útil, mas vários países atacam no interesse de agendas próprias

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A ofensiva de Israel na Faixa de Gaza destapou o vespeiro da conflitualidade no Médio Oriente. Desde o início da guerra, a 7 de outubro, nove Estados da região já dispararam contra vizinhos. Se países como o Líbano e a Síria têm uma grande exposição ao problema israelo-palestiniano, atores internos no Iraque e no Iémen parecem agir por controlo remoto.

O Irão saiu da sombra e passou a protagonista, bombardeando três países, um deles o Paquistão, uma potência nuclear. A Turquia confirmou que mantém o foco na questão curda. E até a discreta Jordânia alvejou um vizinho.

Israel ➨ Faixa de Gaza

O ataque terrorista do Hamas a Israel, a 7 de outubro, entrou para a memória coletiva do povo judeu como uma espécie de 11 de Setembro, pela sua surpresa, dimensão, impacto emocional e pela vulnerabilidade que evidenciou um país reconhecido pela eficácia dos seus serviços de informação.

Israel retaliou contra a Faixa de Gaza, o território palestiniano controlado pelo grupo islamita, inicialmente com bombardeamentos aéreos posteriormente combinados com uma ofensiva terrestre. No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse à nação que Israel não parará até “destruir as capacidades do Hamas”.

Faixa de Gaza ➨ Israel

Desencadeada a resposta militar de Israel, o disparo de foguetes desde Gaza não cessou. Na terça-feira passada, o Hamas disparou 25 rockets contra território israelita a partir do norte do território palestiniano, que tem sido o foco principal da intervenção militar.

Ainda que a maioria dos foguetes tenham sido intercetados pelo Iron Dome, o escudo defensivo de Israel, ou caído em descampados, o seu disparo revela capacidade desafiante do Hamas e é, para as comunidades israelitas próximas da fronteira, um reviver permanente do terror vivido a 7 de outubro.

Líbano ➨ Israel

Mal começou a guerra em Gaza, a fronteira norte de Israel tornou-se numa frente de conflito, com troca de fogo de parte a parte e vítimas mortais ocasionais dos dois lados. O sul do Líbano é um bastião do Hezbollah, uma milícia xiita (e também partido político, com deputados e ministros) cujo nascimento está intrinsecamente ligado à invasão israelita do sul do Líbano, em 1982, e subsequente ocupação, até ao ano 2000.

A luta contra a ocupação israelita da Palestina e também contra a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente são prioridades para o Hezbollah. Os ataques ao longo da fronteira com Israel são, por isso, frequentes, mas com a guerra em Gaza tornaram-se diários e mais intensos.

Israel ➨ Líbano

Para Israel, a sua fronteira norte é um local de tensão permanente desde que se retirou do sul do Líbano. Desde 7 de outubro, as forças israelitas têm não só alvejado posições do Hezbollah como também já atacaram nos subúrbios de Beirute, para eliminar um alto responsável do Hamas.

Este estado de guerra forçou a transferência de milhares de habitantes do norte de Israel para locais mais seguros.

Na fronteira entre Israel e Líbano, que foi demarcada pela ONU (Linha Azul), existe, desde 1978, uma missão de capacetes azuis (UNIFIL), que não tem, porém, dissuadido a troca de fogo de parte a parte.

Israel ➨ Síria

Os ataques israelitas em território sírio não são inéditos e, desde 7 de outubro, já ocorreram por diversas vezes, visando, entre outros, o Aeroporto Internacional de Damasco.

Os alvos de Israel, para além de posições do exército sírio, são prioritariamente grupos armados apoiados pelo Irão e combatentes do Hezbollah libanês, que foram cruciais para a sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad, após os protestos da Primavera Árabe e a guerra civil que se lhe seguiu.

A Síria mantém com Israel uma disputa territorial em torno dos Montes Golã, que Israel ocupou na guerra de 1967, anexou através de uma lei de 1981, mas que os sírios continuam a reivindicar.

Iémen ➨ Israel

No Iémen quem manda são os hutis, um grupo que conquistou o poder pela força em 2014, mas que não é reconhecido como um interlocutor legítimo pela comunidade internacional.

Estes rebeldes iemenitas, que controlam a costa ocidental do país, declararam apoio aos palestinianos e mostraram-no ameaçando navios em trânsito pelo Mar Vermelho com origem ou a caminho de portos em Israel.

Em retaliação ao assédio dos hutis às embarcações que percorrem esta via marítima, por onde passa 12% do comércio mundial, forças dos Estados Unidos e, por uma vez, também do Reino Unido já bombardearam posições dos hutis dentro do Iémen.

Irão ➨ Iraque

A 3 de janeiro, um duplo atentado suicida reivindicado pelo Daesh, na cidade iraniana de Kerman, provocou 94 mortos. O Irão retaliou esta semana e um dos alvos foi Erbil, na região autónoma do Curdistão iraquiano (norte), onde Teerão disparou 11 mísseis balísticos contra o que diz ser um centro de espionagem da Mossad (serviços secretos de Israel).

O Iraque, cuja população é maioritariamente xiita, como o Irão, ainda alberga tropas norte-americanas que ali ficaram após ajudarem no combate ao Daesh. Não raras vezes, os militares dos EUA investem contra milícias locais ligadas ao Irão e são eles próprios um alvo das mesmas, como tem acontecido desde 7 de outubro.

Esta semana, o primeiro-ministro do Iraque defendeu a saída das tropas norte-americanas do país.

Irão ➨ Síria

Paralelamente ao ataque na região iraquiana de Erbil, os Guardas da Revolução Islâmica, uma unidade de elite das Forças Armadas iranianas, atacaram também dentro da Síria, com a qual o Irão não tem fronteira.

Quatro mísseis balísticos foram lançados desde a província de Khuzestan, a oeste do Irão, na direção de posições do Daesh em Idlib, numa resposta direta aos atentados em Kerman.

Nesta região do noroeste da Síria, persiste ainda um foco rebelde de contestação ao regime sírio, que é apoiado pelo Irão. Neste ataque, noticiou a agência iraniana IRNA, Teerão disparou “nove mísseis de vários tipos” contra “grupos terroristas em diferentes áreas dos territórios ocupados na Síria”.

Turquia ➨ Iraque

O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem sido dos líderes mais vocais contra o primeiro-ministro de Israel, ao ponto de já ter dito que Benjamin Netanyahu “não é diferente de Hitler”. Mas paralelamente ao seu apoio à Palestina, há uma questão maior no posicionamento da Turquia na região: o independentismo curdo.

Dentro de portas, os curdos são uma ameaça separatista que Ancara tenta combater também nos países da vizinhança onde vivem minorias curdas.

No sábado passado, caças turcos alvejaram posições no Curdistão iraquiano (norte), onde a Turquia tem várias bases militares. Na véspera, um ataque a uma dessas bases atribuído ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla inglesa) provocou nove mortos entre os militares turcos.

Turquia ➨ Síria

Os curdos foram o alvo de bombardeamentos turcos também na Síria, dentro do mesmo espírito que levou Ancara a atacar no Curdistão iraquiano.

Segundo o Ministério da Defesa da Turquia, foi alvejado um total de 29 localizações — incluindo “cavernas, bunkers, abrigos e instalações petrolíferas” — associadas ao PKK e às Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa). Esta organização armada da região do Curdistão sírio teve um papel central na coligação liderada pelos EUA que derrotou o Daesh na Síria.

Dos quatro países do Médio Oriente que têm populações curdas — Turquia, Síria, Iraque e Irão —, a Síria é a que tem a minoria mais pequena.

Irão ➨ Paquistão

No dia seguinte a ter atacado no Iraque e na Síria, o Irão bombardeou também o Paquistão. Os dois países partilham uma fronteira de 900 quilómetros e um inimigo comum: os separatistas do Balochistão, uma região rica em gás e minérios, atravessada pela fronteira entre ambos.

Na terça-feira, o Irão usou drones e mísseis para alvejar posições do Jaish al-Adl, um grupo sunita composto por baloches envolvido em ataques dentro do Irão, numa área remota e montanhosa dessa região separatista. Morreram duas crianças e três civis ficaram feridos.

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esclareceu que os alvos dos bombardeamentos não foram paquistaneses, mas “terroristas iranianos presentes em solo paquistanês”. A 15 de dezembro, 11 polícias iranianos tinham sido mortos num ataque a uma esquadra, perto da fronteira com o Paquistão.

Paquistão ➨ Irão

Islamabade respondeu ao ataque do Irão mandando chamar o seu embaixador em Teerão e disparando mísseis contra a província iraniana de Sistão e Balochistão. O bombardeamento, que teve como alvo outro grupo separatista — a Frente de Libertação Baloche —, provocou nove mortos (nenhum tinha nacionalidade iraniana).

Os ataques entre estes dois países originaram posições de condenação de parte a parte e acusações de violação da soberania, mas a relação não congelou.

No mesmo dia em que o Irão atacou o Paquistão, os dois países realizaram um exercício naval com navios de guerra, no Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. E no dia seguinte (véspera da retaliação do Paquistão), os dois ministros dos Negócios Estrangeiros deitaram água na fervura e conversaram ao telefone.

Esta sexta-feira, o Governo paquistanês anunciou que o seu país e o Irão concordaram em diminuir as tensões após a troca de violentos ataques esta semana.

“Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros concordaram que a cooperação e a coordenação no combate ao terrorismo e outras áreas de interesse comum devem ser reforçadas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, no final de uma chamada telefónica entre os dois governantes.

Jordânia ➨ Síria

Não foram razões políticas que estiveram na origem de bombardeamentos atribuídos à Jordânia em território sírio, mas, ao estilo de uma guerra sem regras, entre os dez mortos que o ataque provocou havia crianças.

O alvo, na quinta-feira, foi a província de Sweida, no sudoeste da Síria, uma zona não muito distante da fronteira com a Jordânia. Terá sido um esforço para atingir o tráfico de drogas — nomeadamente da anfetamina Captagon, usada pelos terroristas do Daesh para facilitar a matança — e perturbar o seu fluxo para dentro do reino hachemita.

As autoridades de Amã não se pronunciaram sobre o caso, mas é conhecido que, no passado, o país já recorreu a ataques desta natureza para atingir grupos dedicados ao narcotráfico, bem organizados e armados.

No ano passado, o Governo do Reino Unido defendeu que o Captagon é uma “tábua de salvação financeira” para a máquina de guerra do regime sírio.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

De crise em crise na direção do abismo

Em 76 anos, nunca um primeiro-ministro concluiu um mandato. Mas o problema do país não é só político

Imran Khan (ao centro) é o politico mais popular do Paquistão GLOBELY NEWS

Há um ditado entre os estudiosos das relações internacionais segundo o qual o Paquistão não é bem um país, mas antes “um exército com um país dentro”. A hipérbole reflete o peso das Forças Armadas naquele Estado de 76 anos que já viveu longos períodos em ditadura militar. Mesmo quando não estão formalmente no poder, os generais são omnipresentes. “São atores de veto”, diz ao Expresso Daniel Pinéu, que viveu três anos e meio no Paquistão e lecionou na Universidade Quaid-i-Azam, em Islamabade.

“Os militares têm um império económico brutal. A quantidade de generais que são gestores de empresas públicas e municipais, reitores de universidades, donos de grandes negócios ou estão presentes nos órgãos diretivos de bancos é muito grande”, continua. “Os militares controlam e retiram daí grandes vantagens económicas. Os únicos sistemas de pensões ou de saúde que funcionam razoavelmente bem no país são os militares. Eles têm uma série de privilégios de que não vão abrir mão.”

Esta preponderância justifica muita da ingovernabilidade que já se tornou uma sina paquistanesa. Desde a independência (1947), o Paquistão já teve 31 primeiros-ministros e nenhum conseguiu levar um mandato de cinco anos até ao fim. “Torna-se praticamente impossível haver uma estratégia de médio ou longo prazo no país, seja do que for”, realça o analista.

A crise política atual opõe os militares a Imran Khan, um herói nacional (ver Perfil) que subiu ao poder em 2018 com a ajuda dos generais, que viram nele a esperança de um líder civil permeável às suas vontades. Não foi assim. “Khan quis autonomizar-se dos militares, ter uma agenda própria e opõe-se-lhes em questões específicas”, diz Pinéu. “Talvez achasse que tinha apoio popular suficiente e não precisasse deles.”

Khan foi afastado a 10 de abril de 2022, após perder uma moção de confiança no Parlamento. Há cerca de um mês, foi detido à chegada a um tribunal de Islamabade onde ia responder num caso de corrupção. Foi levado por dezenas de homens em traje antimotim, membros de um grupo paramilitar, os Punjab Rangers, que invadiram o tribunal para o deter.

Dias depois, o Supremo Tribunal declarou a sua detenção ilegal e libertou-o. Enfrenta ainda mais de 120 processos na justiça. “Todos os partidos políticos e o establishment querem que eu seja afastado em ano eleitoral”, disse recentemente. O Paquistão tem eleições gerais a 14 de outubro próximo. Até lá, este país de 230 milhões, com um arsenal nuclear, tem várias outras crises para esgrimir.

Crise económica: novo mercado para a Rússia

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo de sempre comprado pelo Paquistão à Rússia, tradicional aliada da sua arquirrival Índia. Para Moscovo, é um novo mercado que se abre ao arrepio das sanções internacionais decretadas após a invasão da Ucrânia; já para Islamabade é a oportunidade de comprar petróleo com desconto, em época de grave crise económica.

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo comprado à Rússia

Com uma inflação de 37,97% em maio e um crescimento anémico de 0,29% projetado para 2023, o Paquistão negoceia há meses com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o descongelamento de $1100 milhões (€1000 milhões) de um total de $6500 milhões (€6000 milhões) acordado em 2019.

Desde a década de 1950 que o Paquistão já celebrou 23 acordos de resgate com o FMI. “Nunca cumpriu nenhum”, diz Daniel Pinéu. “O país tem uma carga fiscal extraordinariamente baixa. Há poucas pessoas a pagar impostos e as que pagam, pagam poucos. O encaixe fiscal do Estado é extraordinariamente baixo.”

Crise ambiental: um terço do país submerso

Vulnerável a fortes sismos, o Paquistão tornou-se, no ano passado, uma tragédia a céu aberto após chuvas diluvianas originarem grandes inundações que submergiram cerca de um terço do país.

Esta catástrofe ambiental foi ruinosa para o sector agrícola, nomeadamente para a produção de trigo, um cereal que o Paquistão exportava e passou a importar. Esta escassez fez disparar alertas sobre a iminência de uma crise alimentar no país.

Esta semana, os alarmes soaram a propósito da passagem do ciclone “Biparjoy”, que obrigou à deslocação de milhares de pessoas nos territórios do Paquistão e da Índia.

Crise securitária: talibã bom e talibã mau

Após perder três guerras com a Índia (1947, 1965 e 1999), “os militares paquistaneses têm uma noção muito clara de que não conseguem ter uma vitória convencional contra a Índia”, diz o docente no Colégio Universitário de Amesterdão (Países Baixos). “Há duas coisas ao seu alcance: a política nuclear e a utilização de grupos terroristas que o serviço de informações militares do Estado (ISI) apoia, treina ou financia.”

O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante

Esta estratégia beneficia da prevalência da etnia pashtun (a dos talibãs) no Paquistão e no vizinho Afeganistão. “É talvez o maior grupo tribal do mundo, separado por uma fronteira muito ténue”, diz Pinéu. “O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante atrás de si. Se a Índia tomasse o Paquistão ou ganhasse uma guerra, conseguiria deslocar para dentro do Afeganistão uma parte importante das suas forças e atacar a partir daí.”

Mas a ambiguidade de Islamabade — entre potenciar ‘talibãs bons’, que colaboram com os objetivos do Estado, e reprimir ‘talibãs maus’, que agem por conta própria em função dos seus objetivos — acarreta riscos. O ex-primeiro-ministro Pervez Musharraf, um militar, sofreu dois atentados às mãos de grupos islamitas. “É uma política muito esquizofrénica, até para a política interna.”

Crise geopolítica: EUA cada vez mais distantes

A seguir ao 11 de Setembro, o Paquistão foi dos países que mais ajuda receberam dos Estados Unidos, no âmbito da luta contra o terror, na sua esmagadora maioria canalizada para o sector militar.

Neste momento, consumada a retirada norte-americana do Afeganistão, “o Paquistão é para os EUA essencialmente um país-problema”, conclui Daniel Pinéu. “Não tem nenhum interesse estratégico, exceto conter o poderio da China.”

PERFIL

IMRAN KHAN

Já era popular antes de ser político. Famoso jogador de críquete, capitaneou a equipa que deu ao Paquistão o seu primeiro título mundial, em 1992. Nascido em 1952, em Lahore, fundou o Movimento Paquistanês pela Justiça, em 1996. Foi primeiro-ministro entre 2018 e 2022. Conquistou eleitores fartos dos políticos tradicionais. Mas, como outros populistas, ofereceu poucas soluções para os problemas dos cidadãos.

VULNERABILIDADES

3
golpes militares já levaram o Paquistão a viver períodos em regime militar: 1958–1971, 1977–1988, 1999–2008

13
partidos formam a Aliança Democrática do Paquistão (criada em 2020), que sucedeu a Imran Khan no poder

37,97
por cento é a taxa de inflação registada no mês de maio, um novo máximo no país

23
programas de resgate foram celebrados, desde 1958, entre o Paquistão e o Fundo Monetário Internacional

121
casos na justiça visam Imran Khan, incluem corrupção, traição, blasfémia, sedição, terrorismo e incitamento

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Cheias no Paquistão, uma tragédia a céu aberto à atenção da COP27

Se não existissem alertas de sobra em relação à crescente agressividade do clima, as históricas cheias do Paquistão ilustram como a vida pode tornar-se impossível. Depois de um terço do país ter ficado submerso, e enquanto a água não recua na totalidade, os números da calamidade não param de agravar-se — dos mortos ao surto de doenças

A cerca de 4000 quilómetros da estância egípcia de Sharm El Sheikh, onde decorre a 27ª sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), o Paquistão é uma tragédia a céu aberto, reveladora da vulnerabilidade do planeta face à crescente agressividade do clima.

“Durante 40 dias e 40 noites, caiu-nos em cima um dilúvio bíblico, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como geri-los”, disse em setembro passado o primeiro-ministro paquistanês, num emotivo discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Shehbaz Sharif referia-se às cheias inéditas que submergiram um terço do país desde meados de junho. A calamidade resultou da combinação entre chuvas da tradicional época das monções, particularmente fortes em 2022, e o efeito das alterações climáticas, que originaram um rápido degelo dos glaciares das montanhas do norte. A água que daí resultou engordou os caudais dos rios.

Com mais de 220 milhões de habitantes, o Paquistão contribui menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.

OS CINCO MAIORES POLUENTES
(% das emissões globais)

  1. CHINA: 29,18%
  2. ESTADOS UNIDOS: 14,02%
  3. ÍNDIA: 7,09%
  4. RÚSSIA: 4,65%
  5. JAPÃO: 3,47%

O Paquistão surge na 31ª posição, com 0,50% das emissões globais (e Portugal em 60º, com 0,14%). O Paquistão é, porém, dos países que pagam um preço mais pela desregulação climática. Cinco meses após o início das chuvas torrenciais, os números da tragédia não param de aumentar. Cinco exemplos.

1739

É o número de mortos contabilizados, desde 14 de junho, pela Autoridade Nacional de Gestão de Desastres, do Paquistão. Há ainda 12.867 feridos registados, decorrentes de incidentes relativos à queda das chuvas das monções ou a inundações provocadas pelo transbordo de rios.

A última atualização, tornada pública a 4 de novembro, detalha que, entre os mortos, há 353 mulheres e 647 crianças. Ou seja, mais de um terço das vítimas mortais são crianças.

A província de Sindh, no sul, é a mais atingida, com um total de 799 mortos. Esta região é atravessada de norte a sul pelo rio Indo — o mais comprido e mais largo do Paquistão —, cujo extravase afetou quase 15 milhões de pessoas.

https://twitter.com/NASAEarth/status/1581020523764404224

33.046.329

É a quantidade de pessoas diretamente afetadas pelas cheias. Perto de metade (14.563.770) vivem na província de Sindh e quase um quarto (9.182.616) no vizinho Baloquistão.

Para se ter noção da área alagada atente-se na dimensão do Paquistão (796.095 km²) e de Portugal (92.212 km²). Se ficou alagado um terço do território paquistanês, isso corresponde sensivelmente ao triplo do mapa português.

Dos 193 Estados-membros das Nações Unidas, 119 têm uma área terrestre inferior à extensão das terras paquistanesas inundadas.

A concentração de água parada expõe populações inteiras a ameaças acrescidas à saúde. Num relatório de 28 de outubro, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) alertou para o aumento de casos de malária “por causa da água parada, enquanto a incidência de diarreia é pelo menos cinco vezes maior do que o normal”.

Já se detetou um surto de dengue crescente, “com 74% dos casos maioritariamente reportados em áreas afetadas pelas cheias”. A destruição de casas e infraestruturas fez aumentar o velho hábito de defecar a céu aberto, com todas as consequências que isso traz ao nível de higiene, saúde pública e mesmo segurança.

2.288.481

É a quantidade de casas destruídas pelas inundações. As autoridades nacionais detetaram ainda 439 pontes danificadas, bem como 13.115 quilómetros de estrada intransitáveis.

As casas, em particular, colocaram milhões de paquistaneses de mão estendida na fila da assistência humanitária. Localidades inteiras passaram a viver em tendas, muitas delas doadas ao abrigo de mecanismos de ajuda internacional. Em Bholari, por exemplo, nasceu “a cidade de tendas Recep Tayyip Erdogan”, disponibilizada pela Turquia e batizada com o nome do Presidente do país.

9.400.000

São os acres de área de cultivo que ficaram encharcados (1 acre = 0,40 hectares).

Neste país que é o quinto produtor mundial de algodão, as cheias danificaram ou destruíram 40% da colheita anual dessa fibra, segundo uma estimativa da Iniciativa Better Cotton.

Esta organização, que promove boas práticas ao nível do cultivo de algodão em 21 países, não prevê “escassez de oferta este ano, embora os impactos provavelmente perdurem no próximo ano”.

No impacto económico desta calamidade, há ainda o registo de 1.164.270 cabeças de gado perdidas nas enxurradas de água e lama, privando milhões de pessoas desse meio de subsistência.

27.000

É a quantidade de escolas destruídas ou danificadas, que privam mais de dois milhões de crianças de irem à escola. Nas zonas mais atingidas pela intempérie, alguns estabelecimentos de ensino ficaram apenas com o telhado à tona, esperando-se que sejam precisos meses até que as águas recuem totalmente.

Para ajudar as crianças deslocadas a lidarem com os traumas provocados pela experiência, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) instalou 500 Centros de Aprendizagem Temporários, em colaboração com os departamentos educativos provinciais.

Estes centros “oferecem às crianças uma oportunidade de se encontrarem com outras crianças num ambiente seguro e protegido, onde podem brincar, aprender e ser crianças novamente”, descreve a UNICEF. Além de constituírem mais de um terço das vítimas mortais, estima-se que 16 milhões de crianças paquistanesas tenham a vida voltada do avesso por causa das inundações.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui