Chuvas abundantes combinadas com o rápido degelo dos glaciares colocou quase um terço do Paquistão debaixo de água. Cerca de 33 milhões de pessoas ficaram com a vida virada do avesso e mais de 1400 morreram. Após visitar o país, o secretário-geral das Nações Unidas alertou para o contributo das alterações climáticas nos fenómenos extremos que devastam o Paquistão desde meados de junho. “Hoje no Paquistão, amanhã no seu país”, avisou António Guterres
Antes de ser nomeado secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres liderou o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Nessa qualidade, visitou locais tomados por grandes tragédias humanas — do Sudão do Sul à ilha de Lesbos, na Grécia.
Nada do que viu então é, porém, comparável ao que testemunhou há dias no Paquistão. “Já vi muitos desastres por todo o mundo, mas nunca vi uma carnificina climática a esta escala”, afirmou Guterres ao fim de dois dias no país.
Desde meados de junho que o Paquistão sofre chuvas de monção quase ininterruptas, seguidas de inundações repentinas e deslizamentos de terra. Estima-se que quase um terço do país tenha ficado submerso e que cerca de 33 milhões de pessoas andem ao deus-dará.
Uma razia na agricultura e na pecuária
Nos meses de julho e agosto, caiu no Paquistão 190% de chuva a mais do que a média dos últimos 30 anos. Na província de Sindh, no sul do país, choveu 466% a mais do que a média.
O dilúvio levou à frente casas, ruas e autoestradas, vias férreas, gado e campos de cultivo. Os prejuízos estão calculados em 30 mil milhões de euros.
“Hoje é no Paquistão, amanhã pode ser no seu país onde quer que viva. Esta é uma crise global”, apelou Guterres, “requer uma resposta global.”
Já morreram pelo menos 1400 pessoas, incluindo mais de 450 crianças. Estima-se que ter-se-ão perdido à volta de 700 mil cabeças de gado, o que coloca sobre o país a nuvem negra da insuficiência alimentar.
Lago de 100 km no meio do Paquistão
Às chuvas torrenciais junta-se o efeito do rápido degelo dos glaciares das montanhas a norte. Quer o governo do Paquistão, quer o secretário-geral da ONU insistiram no contributo das alterações climáticas e dos fenómenos extremos para esta tragédia.
Ironicamente, o Paquistão — com mais de 220 milhões de habitantes — contribuiu menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.
Numa conferência de imprensa ao lado de Guterres, em Islamabade, o ministro paquistanês dos Negócios Estrangeiros, Bilawal Bhutto-Zardari, foi a voz da impotência em relação ao desafio que o país tem pela frente.
Disse o filho da ex-primeira-ministra Benazir Bhutto: “Quando temos um lago de 100 quilómetros que se desenvolveu no meio do Paquistão, qual o tamanho do dreno que temos de construir para gerir a situação? Não há estrutura feita pelo homem que possa esvaziar esta água.”
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Chuvas de monção mais intensas do que o habitual inundaram quase um terço do Paquistão, uma área correspondente ao Reino Unido FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Uma cama e roupa a secar, é tudo o que resta a este homem, na localidade de Nowshera FAYAZ AZIZ / REUTERS
Duas meninas socorrem-se de uma jangada improvisada para seguir pelas ruas por onde costumam correr RIZWAN TABASSUM / AFP / GETTY IMAGES
As chuvas intensas provocaram deslizamentos de terras que levaram tudo atrás HUSSAIN ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Água por todo o lado, no solo e nos potes e jerricãs à cabeça das mulheres AMER HUSSAIN / REUTERS
A ameaça da fome, após as cheias devastarem o sector agrícola, destruindo colheitas de arroz, milho e trigo PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Duas pessoas recolhem bambus intactos, junto a uma casa totalmente destruída, em Dera Allah Yar AMER HUSSAIN / REUTERS
As canas de bambu são preciosas para ajudar a improvisar pontes, esta em Shikarpur ASIF HASSAN / AFP / GETTY IMAGES
Na cidade de Khaipur Nathan Shah, as ruas transformaram-se em rios GIDEON MENDEL / CORBIS / GETTY IMAGES
Militares da Marinha paquistanesa asseguram ações de resgate de populações, nas áreas mais afetadas AAMIR QURESHI / AFP / GETTY IMAGES
As inundações destruíram casas e pontes e encobriram estradas e pastagens para o gado ADEEL AHMED / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
As cheias já afetaram 33 milhões de pessoas, muitas das quais passaram a viver em tendas, montadas em campos improvisados AHMED ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Em Sohbatpur, nas escassas extensões de terra que ficaram à superfície, tendas acolhem quem tudo perdeu FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Com a casa inabitável, esta família salvou a louça que pode e espera por abrigo, em Khairpur AHMED ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Perante a ameaça de novas cheias, militares erguem uma barreira de proteção, junto a uma importante central elétrica, em Dadu SALMAN RAO / REUTERS
Ficaram sem casa, vivem na berma de uma estrada, em Sukkur, e não veem a hora da chuva parar de cair ASIF HASSAN / AFP / GETTY IMAGES
As consequências da intempérie já provocaram pelo menos 1400 mortos HUSSAIN ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Tristeza nos rostos de quem, por estes dias, está proibido de correr e saltar em total liberdade FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Distribuição de ajuda alimentar doada pela Turquia, em Mirpur Khan FARHAN KHAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Uma manada de búfalos desbrava as águas, onde normalmente passa uma autoestrada, em Sehwan AKHTAR SOOMRO / REUTERS
Água pelo pescoço, numa zona da província de Sindh, no sul do Paquistão FARHAN KHAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Dificuldades acrescidas nas ruas de Karachi, a maior cidade do Paquistão, com mais de 16 milhões de habitantes RIZWAN TABASSUM / AFP / GETTY IMAGES
Crianças deslocadas pelas inundações e a viver num campo improvisado aguardam pela distribuição de comida, em Sehwan HUSNAIN ALI / AFP / GETTY IMAGES
Uma corrida contra o tempo para salvar fardos de pasto, antes que a água suba mais um pouco ADEEL AHMED / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Um novo ano letivo começou e, em Dera Ghazi Khan, o caminho para a escola só é mesmo possível de barco SHAHID MIRZA / AFP / GETTY IMAGES
Um rasto de lama numa casa engolida pela água, em Nowshera FAYAZ AZIZ / REUTERS
Junto a um posto de combustíveis alagado, em Mehar, populares fazem muros com sacos para impedir o transbordo das águas AAMIR QURESHI / AFP / GETTY IMAGES
O caos citadino acentuou-se em Karachi AKRAM SHAHID / AFP / GETTY IMAGES
Uma família segue na direção de um porto seguro, transportando tudo aquilo que consegue, em Jamshoro. As cheias no Paquistão, este verão, afetaram milhões de pessoas YASIR RAJPUT / REUTERS
Água a perder de vista, na região de Dadu, província de Sindh (sul), uma das zonas mais gravemente atingidas SUSANNAH GEORGE / GETTY IMAGE
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui
A taxa de vacinação contra a covid-19 no Paquistão é muito baixa. Para tal contribui a escassez de doses, mas também um sentimento antiocidental em torno das campanhas de inoculação. A operação militar norte-americana que identificou e executou Osama bin Laden numa cidade paquistanesa, há dez anos, dá algumas respostas…
Campanha sobre cuidados a ter durante a pandemia, desenvolvida pelo Crescente Vermelho do Paquistão LINKEDIN PAKISTAN RED CRESCENT
A corrida contra o tempo implícita nas campanhas de vacinação contra a covid-19 que decorrem por todo o mundo tem obstáculos acrescidos no Paquistão. Neste país de mais de 225 milhões de pessoas, a resistência às vacinas é uma realidade, alimentada por rumores que atribuem a origem da pandemia a uma conspiração estrangeira e encaram as vacinas como venenos.
“Há uma resistência popular às vacinas, especialmente nas áreas rurais”, diz ao Expresso Jassim Taqui, analista político paquistanês. “As pessoas acreditam numa teoria da conspiração que sustenta que as vacinas, tanto as chinesas como as ocidentais, visam esterilizar os muçulmanos para que a sua população seja sistematicamente limitada ou para alterar a sua genética, transformando as novas gerações em animais semelhantes aos macacos.”
Estas crenças levam muitos paquistaneses a viver a pandemia em negação. Mas algo mais contribui fortemente para esse ceticismo: o efeito Osama bin Laden.
A 2 de maio de 2011, o então líder da Al-Qaeda foi morto durante um ataque de forças especiais norte-americanas à casa onde vivia, na cidade paquistanesa de Abbottabad. Para localizar o terrorista, a CIA organizara, previamente, uma falsa campanha de vacinação contra a hepatite B na localidade onde se suspeitava que Bin Laden estivesse escondido. O objetivo era tão somente recolher amostras de ADN de crianças que se suspeitava serem próximas do homem mais procurado do mundo.
“A falsa campanha de vacinação que levou à morte de Osama bin Laden desempenhou um papel fundamental na resistência às vacinas ocidentais no Paquistão e, em geral, a todas as outras vacinas. Mesmo pessoas instruídas questionam a eficácia das vacinas, uma vez que não há indicações ou dados que sugiram que a inoculação garante a imunidade ou que os vacinados não voltem a ser atacados pela covid-19”, explica Jassim Taqui.
Foi o caso do primeiro-ministro Imran Khan e do Presidente Arif Alvi, a quem o coronavírus foi diagnosticado poucos dias após receberem a primeira dose da vacina. “As pessoas acreditam que os países que produziram essas vacinas são motivados, em parceria com a Organização Mundial do Comércio [OMC], por benefícios monetários enormes provenientes da comercialização dessas vacinas e não pelo combate à pandemia.”
Retaliação sobre a Save the Children
Descoberto o embuste em redor da operação de captura de Bin Laden, o Governo paquistanês expulsou do país a organização Save the Children, apesar de esta ONG negar que o médico paquistanês que orquestrou a falsa vacinação trabalhasse para si.
Paralelamente, sectores extremistas da sociedade paquistanesa cavalgaram a onda anti-vacinas, acusaram os voluntários ao serviço das campanhas de imunização de serem agentes da CIA e incentivaram a um sentimento antiocidental.
Em junho de 2012, a liderança dos talibãs paquistaneses emitiu um decreto religioso (fatwa) contra o programa de vacinação do Governo. Desde então, tornaram-se frequentes ataques contra equipas de vacinação, que já levaram à morte de dezenas de pessoas, a maioria pessoal de saúde do sexo feminino e agentes da segurança que trabalhavam no apoio às ações de vacinação.
Tudo contribui para que, dez anos depois da falsa campanha que detetou Bin Laden, os paquistaneses não esqueçam o estratagema e desconfiem da boa vontade de quem lhes bate à porta com o intuito de injetarem-lhes um líquido no corpo.
“Penso que [o episódio Bin Laden] prejudicou a confiança nas vacinas não só no Paquistão, mas em todo o mundo, onde existe desconfiança entre populações e governos, especialmente em zonas de conflito”, diz ao Expresso o epidemiologista paquistanês Rana Jawad Asghar, professor na Universidade de Nebraska (EUA).
Consequências também nos EUA
A 6 de janeiro de 2013, vários reitores de escolas de saúde pública dos EUA escreveram uma carta ao então Presidente Barack Obama comparando o uso de campanhas de vacinação pela CIA à infiltração, décadas antes, de espiões americanos na Peace Corps, agência federal dos EUA, criada em 1961 pelo Presidente John F. Kennedy, para ajudar os países em desenvolvimento.
Cerca de meio ano depois, o então diretor da CIA, John Brennan, proibiu o uso de programas de vacinação nas operações de espionagem. Mas pelo menos no Paquistão, o mal estava feito.
Em finais de janeiro passado, sensivelmente na mesma altura em que foram confirmados os primeiros casos de covid-19 no Paquistão, uma sondagem da Gallup Paquistão concluiu que 49% dos inquiridos não tencionavam tomar a vacina. E dos 46% que aceitavam, apenas 4% preferiam uma vacina produzida na Europa ou EUA.
Foi em contexto de grande ceticismo em relação à covid-19 que, a 3 de fevereiro, arrancou a campanha de vacinação no Paquistão. Na véspera, chegara ao país um carregamento de 500 mil doses da vacina chinesa da Sinopharm, uma gota nas necessidades do país, mas que permitiu iniciar o processo.
“De início, as autoridades sanitárias confiaram totalmente nos chineses, pensando que receberiam as vacinas de graça. Isso não aconteceu. Os chineses exigem dinheiro, embora afirmem que deram ao Paquistão meio milhão de vacinas como presente”, diz Jassim Taqui.
“Depois, o Governo decidiu comprar vacinas a empresas russas e britânicas. Atualmente, o Paquistão criou um laboratório conjunto com a China para encher localmente as vacinas [da chinesa CanSinoBio, de uma dose apenas]. E paga aos chineses por isso.”
4,84
em cada 100 paquistaneses já tomaram a vacina (até 13 de junho). Em Portugal, esse rácio é de 67,09
Rana Jawad Asghar identifica três razões para a baixa taxa de vacinação. “Antes de mais, o Paquistão teve problemas com o fornecimento de vacinas. Isso, por sua vez, obrigou o Governo a não convidar ativamente as pessoas a vacinarem-se, pois temia não poder atender à procura se muitas pessoas o solicitassem. Em segundo lugar, a desinformação sobre vacinas é galopante não apenas no Paquistão, mas em todo o mundo. A falta de informação nas áreas pobres e rurais pode ser uma terceira causa, menos importante.”
No Paquistão, as dificuldades em torno da vacinação têm sido nefastas para o combate contra outras doenças, para além da covid-19. Dadas como erradicadas em grande parte do mundo, a poliomielite e a febre tifoide continuam ativas no país.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui
Para Índia e Paquistão, a Caxemira é um jogo de soma zero: aquele que a controlar coloca uma ameaça existencial ao outro
Em Caxemira, parece haver um conluio que torna a perspetiva de paz num grande desafio. Nele participam a História e a geografia, bem como os interesses económicos e as necessidades de segurança de três potências nucleares: Índia, Paquistão e China. Ali já se travaram três guerras: a quarta pode ser espoletada pelas alterações climáticas.
HISTÓRIA. Problema de nascença
O conflito em Caxemira é uma ferida aberta pela História. Em 1947, quando da divisão do Império britânico — originando a Índia (hindu) e o Paquistão (muçulmano) —, a maioria dos numerosos estados principescos concordou em juntar-se a um ou a outro. O estado de Jammu e Caxemira, o mais setentrional, foi uma das exceções: a maioria da população (muçulmana) queria unir-se ao Paquistão; o marajá Hari Singh (hindu) defendia uma independência neutra.
A disputa redundou na primeira de três guerras (1947, 1965 e 1999), com o Paquistão a invadir a Caxemira e o marajá a ceder a soberania à Índia em troca de apoio militar. Em 1949, o estabelecimento de uma Linha de Controlo selou a trégua. Hoje, a Índia controla 45% da região, o Paquistão 35% e a China 20%.
GEOGRAFIA. O milagre da água
Basta abrir um mapa para perceber por que razão Caxemira é vital para Índia e Paquistão. A região é a principal fonte de abastecimento hídrico de ambos: o Paquistão com 200 milhões de habitantes e a Índia com 1300 milhões e a caminho de ultrapassar a China como o país mais populoso do mundo — em 2024, diz a ONU. Mediado pelo Banco Mundial, o Tratado das Águas do Indo (1960) deu a cada um o controlo de três rios da bacia do Indo, alimentados pelos glaciares.
Para a Índia, essa água é essencial ao fornecimento de eletricidade a centenas de milhões de pessoas. Para o Paquistão, está em causa a sua subsistência agrícola, uma vez que mais de 90% da produção tem origem na bacia do Indo. O problema ganhou dimensão com o aquecimento global: os glaciares derretem mais rapidamente, provocando inundações nos dois países; a prazo, a secura dos leitos dos rios provocará apagões prolongados.
SEGURANÇA. Terreno de rebeldes
Num estudo desenvolvido para uma escola do Exército paquistanês, o general Javed Hassan defendeu que o principal objetivo da doutrina estratégica do Paquistão era balcanizar a Índia. Publicado em 1990, o trabalho não foi retirado de circulação, o que indicia uma sintonia em relação à doutrina oficial. O estudo constatava que a Índia tem “uma incapacidade histórica para existir enquanto Estado unificado” e que “está refém de uma tradição centrífuga e não centrípeta”. Caxemira era identificada como uma zona vulnerável a infiltrações visando a fragmentação ou enfraquecimento da Índia.
Por essa altura, o apoio do Paquistão a grupos separatistas na região já era uma realidade, muito graças aos milhões canalizados pelos EUA no âmbito do combate aos soviéticos no Afeganistão (1979-1989). Essa ajuda permitiu ao Paquistão dotar-se de uma das maiores máquinas de guerra do mundo (ainda assim aquém da indiana) e mascarar apoios a grupos armados.
Em 2008, a célula que realizou os atentados de Bombaim (166 mortos) recebeu ordens do Lashkar-e-Taiba, um dos grupos terroristas mais ativos da Ásia Meridional, sediado na Caxemira paquistanesa. David Headley, um americano-paquistanês detido nos EUA que deu informações para o ataque, testemunhou que a secreta paquistanesa esteve envolvida na preparação.
ECONOMIA. Rotas cruzadas
Um pequeno troço da Caxemira paquistanesa faz fronteira com o Afeganistão, país que é uma porta de entrada na Ásia Central. Esta, abundante em recursos hídricos e naturais, é também uma ponte entre a Ásia e a Europa e, por isso, uma componente vital para grandes projetos com que Índia, Paquistão e China querem afirmar-se no mundo. São exemplos a iniciativa chinesa “Faixa e Rota” e o Corredor Económico China-Paquistão (CPEC).
O Paquistão beneficiará com infraestruturas que vão facilitar a ligação entre a China e a Ásia Central, algumas delas em Caxemira. Para a China, o Paquistão poderá garantir uma saída para o Mar Arábico. Quanto à Índia, está também a desenvolver uma rota comercial até à Europa: o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul. Mas sem poder atingir o Afeganistão — no meio está a Caxemira paquistanesa —, tem de navegar até ao Irão e daí seguir por terra. A Índia acusa o CPEC de violar a sua “integridade territorial” — ao atravessar a Caxemira paquistanesa que diz ser sua.
Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de agosto de 2019. Pode ser consultado aqui
Índia e Paquistão protagonizam das rivalidades políticas mais ameaçadoras à face da Terra. Mas este domingo, em Manchester, apenas a chuva estragou a festa proporcionada por nacionais dos dois países à volta de uma partida de críquete, durante o Mundial da modalidade
Índia e Paquistão são países vizinhos que, de tempos a tempos, parecem estar à beira da guerra. Sempre que isso acontece, é todo o mundo que fica nervoso, já que os dois Estados possuem armas nucleares.
Este ano, os alarmes já soaram por uma vez mais seriamente. Em fevereiro, um ataque suicida na parte indiana do território disputado da Caxemira provocou 42 mortos entre as tropas indianas ali destacadas. O atentado foi reivindicado por um grupo paquistanês e a retaliação não tardou, com a Índia a lançar ataques aéreos sobre a área paquistanesa de Caxemira.
Nessa altura, a partida de críquete entre as seleções dos dois países prevista para a fase de grupos do Mundial da modalidade — a decorrer no Reino Unido desde 30 de maio — ficou em risco. As tréguas voltariam a imperar na região e, este domingo, em Manchester, Índia e Paquistão — 1º e 7º respetivamente no ranking internacional — apresentaram-se no Estádio de Críquete de Old Trafford, indiferentes às desavenças políticas.
Segundo o jornal britânico “The Guardian”, 800 mil pessoas tentaram obter bilhete para assistir ao jogo — o recinto tem capacidade para… 26 mil espectadores. Quanto à audiência televisiva foi calculada em 1000 milhões de telespectadores em todo o mundo.
O jogo chegou a ser interrompido por causa da chuva. Talvez para muitos indianos e paquistaneses perder este jogo seja muito pior do que perder a final do torneio — agendada para 14 de julho. Mas nas bancadas de Old Trafford, isso não foi percetível: a festa fez-se apenas pelo prazer do desporto. E, no fim, a Índia ganhou.
Mistura de verde paquistanês e laranja indiano, nas bancadas de Old Trafford, Manchester OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGESBandeiras dos dois países, lado a lado OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGESApoiante da seleção indiana VISIONHAUS / GETTY IMAGESAdepta da equipa paquistanesa STU FORSTER / GETTY IMAGESPúblico das duas seleções, nas varandas de Old Trafford DIBYANGSHU SARKAR / AFP / GETTY IMAGESConvivência entre nacionais dos dois países STU FORSTER / GETTY IMAGESBandeira da República da Índia OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGESBandeira da República Islâmica do Paquistão OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGESCumprimento entre os dois capitães, o indiano Virat Kohli (de azul) e o paquistanês Sarfaraz Ahmed (de verde) GARETH COPLEY / GETTY IMAGESO Paquistão foi campeão mundial apenas uma vez, em 1992. O capitão da equipa foi Imran Khan, o atual primeiro-ministro do país GARETH COPLEY / GETTY IMAGESA Índia já celebrou o título mundial por duas vezes, em 1983 e 2011 VISIONHAUS / GETTY IMAGESA política ficou fora do estádio ANDREW BOYERS / REUTERS“O críquete cria união”, é a mensagem deste cartaz ilustrado com as bandeiras dos dois países GARETH COPLEY / GETTY IMAGESANDREW BOYERS / REUTERSANDREW BOYERS / REUTERS
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui
Nasceram ao mesmo tempo e logo voltaram as costas um ao outro. Mais de 70 anos depois são uma ameaça para o mundo
1 — O que está na origem desta rivalidade?
Índia e Paquistão conquistaram a independência em 1947, na sequência da partição da Índia Britânica. Entre os dois novos Estados — o primeiro de maioria hindu, o outro muçulmana —, uma ferida ficou aberta: o território fronteiriço de Caxemira, que ambos querem controlar. Essa disputa já originou três guerras (1947, 1965 e 1999) entre o país do Mahatma Gandhi e o de Malala Yousafzai. Já no século XXI, a rivalidade entre Islamabade e Nova Deli continuou a jorrar sangue. Em 2008, aquele que é considerado o “11 de Setembro” da Índia — ataques à bomba em vários pontos de Bombaim fizeram mais de 160 mortos — foi realizado por paquistaneses do grupo islamita Lashkar-e-Taiba.
2 — Qual a importância da região de Caxemira?
Situado nos Himalaias, este território partilhado por Índia, Paquistão e China é uma barreira natural a infiltrações exteriores. A Índia alega que a Caxemira lhe pertence por ter sido parte integrante dos estados governados por marajás. O Paquistão diz que é a população (de maioria muçulmana) que deve decidir em referendo. Mas outra razão pesa cada vez mais: a região é um grande depósito de água dos glaciares, recurso estratégico para países populosos e em crescimento como a Índia (1350 milhões de habitantes) e o Paquistão (200 milhões). Em 1960, o Tratado das Águas do Indo apartou águas: cada país passou a controlar três afluentes.
3 — Porque se receia um conflito entre ambos?
Uma guerra indo-paquistanesa ameaça todo o mundo. Os dois países têm armas nucleares e não são signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear de 1970. Em 1965, o Presidente paquistanês Zulfiqar Ali Bhutto avisou: “Se a Índia desenvolver a bomba, comeremos relva, até passaremos fome, mas também obteremos a nossa. Não temos alternativa”. Em 1974, a Índia testou com êxito o “Buda Sorridente”, nome de código do primeiro lançamento nuclear. O vizinho acompanhou a corrida. Considerado o pai da bomba paquistanesa, o cientista Abdul Qadir Khan seria preso, implicado na proliferação nuclear na Coreia do Norte, Líbia e Irão.
4 — Que outros fatores criam instabilidade?
Alvo de grupos islamitas com ligações à jihad internacional, a Índia alberga fações terroristas com agendas internas: movimentos separatistas, extremistas da minoria muçulmana e da maioria hindu. Já o Paquistão, a quem a Índia acusa de treinar, armar e incentivar revoltas muçulmanas, é um país muito exposto à conflitualidade nesse “cemitério de impérios” que é o Afeganistão. Mas apesar do vespeiro afegão, é a rivalidade com a Índia que mais o preocupa.
Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de março de 2019. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.