O Japão tem o passaporte mais valioso do mundo. O português está entre os mais fortes. Mas, com a pandemia sem dar tréguas, um passaporte-vacina poderá tornar-se “o mais poderoso” de todos, explica ao Expresso um professor de Relações Internacionais da Universidade Portucalense, do Porto
A pandemia de covid-19 fechou fronteiras, pousou milhares de aviões em terra e transformou hábitos de viagem em planos sem data de concretização. Na União Europeia, em especial, países que dependem fortemente do turismo, como a Grécia, incentivam à adoção de um passaporte-vacina que facilite a mobilidade de quem foi imunizado e coloque entraves à circulação de quem rejeitou fazê-lo.
O debate ainda está numa fase embrionária, dificultado por muitas incógnitas, como saber se quem tomou a vacina contra o SARS-CoV-2 continua a poder transmitir o novo coronavírus. Mas parece ser já seguro que, no futuro, não bastará a nacionalidade para abrir portas quando se vai ao estrangeiro.
“A forma legal que tal ‘passaporte’ poderá vir a tomar ainda é muito pouco clara, mas é evidente que estará na linha do que acontece com países que exigem testes à partida ou à chegada a cidadãos oriundos de determinados países”, diz ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense, no Porto.
“Em alguns países já existe algo do género, impedindo, por exemplo, a entrada a quem tenha determinadas doenças [como VIH-sida] ou exigindo um teste.” Atualmente, pelo menos 48 países têm em vigor restrições de viagem relacionadas com o HIV: pelo menos 30 impõem proibições à entrada, permanência ou residência e 19 deportam estrangeiros portadores do vírus da sida.
“É provável que, com o passar dos meses, vários grupos de interesse e os próprios Estados tentem promover esses passaportes-vacina, para acelerar a mobilidade e fomentar o turismo. No caso da União Europeia, tal poderá surgir como exigência para entrar no espaço Schengen”, diz Ponte e Sousa. “Outro formato poderá ser um ‘passaporte de imunidade’, certificando quem já teve covid-19 e que, portanto, terá anticorpos.”
Asiáticos são os mais fortes
Com a pandemia sem dar tréguas, um passaporte-vacina poderá tornar-se “o passaporte mais poderoso” de todos, diz o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). Até ao surgimento do novo coronavírus, o poder dos passaportes assentava noutros critérios. “Quanto maior o número de países que permitem ao detentor do passaporte estar isento de visto para entrada ou pedir visto à chegada, mais forte é o passaporte.”
No início de janeiro, foi divulgado mais um Índice de Passaportes Henley, elaborado com base no número de destinos que os seus titulares podem visitar sem terem de pedir visto prévio. O passaporte do Japão — que não permite dupla nacionalidade — é aquele que garante maior número de viagens descomplicadas, do ponto de vista burocrático: 191 países e territórios escancaram as portas aos japoneses ou exigem-lhes apenas visto à chegada.
Neste ranking — que analisa 199 passaportes e não considera as restrições temporárias à circulação decretadas no contexto da pandemia —, Singapura surge em segundo lugar, com 190 destinos amigos, seguida ex aequo da Coreia do Sul e da Alemanha (com 189).
Top-10 dos passaportes mais fortes
- Japão (191 destinos)
- Singapura (190)
- Coreia do Sul, Alemanha (189)
- Itália, Finlândia, Espanha, Luxemburgo (188)
- Dinamarca, Áustria (187)
- Suécia, França, PORTUGAL, Países Baixos, Irlanda (186)
- Suíça, Estados Unidos, Reino Unido, Noruega, Bélgica, Nova
Zelândia (185) - Grécia, Malta, República Checa, Austrália (184)
- Canadá (183)
- Hungria (181)
Para subidas neste ranking contribuem, por exemplo, acordos como o que celebraram Israel e os Emirados Árabes Unidos, a 15 de setembro de 2020. Os dois países normalizaram com ele a sua relação diplomática. Um dos aspetos acordados foi a isenção de visto aos cidadãos de um deles que visitem o outro.
Os Emirados são dos países que mais têm escalado o Índice Henley. Em 2006, quando o ranking foi publicado pela primeira vez, os seus cidadãos só estavam isentos de visto prévio em 35 destinos. Hoje viajam sem preocupações com papelada para 173.
Neste Índice, a seguir à Alemanha, surgem consecutivamente 12 outros membros da União Europeia. “Os passaportes dos Estados-membros da UE estão sistematicamente no topo da lista dos mais fortes. São países que favorecem liberdades individuais e, nomeadamente, a de circulação, que pretendem atrair investidores, empresários, turistas, etc.”, comenta o docente.
“É no interesse dos Estados levantar restrições através de acordos bilaterais, e por vezes até unilateralmente. As boas e amplas relações diplomáticas, a presença em organizações internacionais e outros acordos internacionais, em suma, ter uma imagem positiva para os demais Estados, ajudam a aumentar essa força.”
E Portugal?
No ranking Henley, Portugal integra o grupo dos sextos classificados com 186 destinos a confiar totalmente no passaporte português. Mas entre os países que exigem visto aos portugueses estão alguns dos maiores e mais poderosos do mundo, como China, Estados Unidos, Rússia, Índia, Canadá ou Austrália.
“Boa parte destes países tem regimes de entrada fortemente controlados. É o caso dos Estados Unidos, que exigem visto para quem viaja de quase todo o mundo (com regime especial para os países europeus, o Visa Waiver Program, que ainda assim exige pré-inscrição, embora não seja exatamente um visto prévio; o Canadá tem um regime idêntico)”, explica Ponte e Sousa.
“Esta limitação ao regime de entrada nesses países não se aplica exclusivamente a Portugal, mas à generalidade dos países europeus. O objetivo é evitar que regimes ‘relaxados’ permitam aos que entram prorrogar indefinidamente a sua estada ou ter acesso a funções e direitos que se entende deverem ser restringidos ou exigirem visto específico.”
O investigador do IPRI exemplifica com o Reino Unido, que permite “aos cidadãos de largas dezenas de países (UE incluída) estada até seis meses sem exigência de visto, mas impede o acesso ao mercado de trabalho ou a apoios, como transferências do Estado (ou seja, do ‘Estado-providência’)”.
Para o Reino Unido, a saída da UE (‘Brexit’) foi penalizadora para a qualidade do seu passaporte. No ranking deste ano, o documento britânico surge no grupo dos sétimos classificados, com 185 países a não exigirem visto — em 2015, liderava a lista a par com a Alemanha.
“É provável que o declínio do passaporte do Reino Unido continue, enquanto o ‘Brexit’ e o endurecimento do regime de entrada e da política de vistos continuarem a influenciar a mobilidade e, portanto, a força do passaporte”, comenta Ponte e Sousa. “A falta de reciprocidade por parte do Reino Unido poderá levar outros Estados a endurecer os seus regimes de entrada e enfraquecer ainda mais o passaporte britânico.”
Na cauda do Índice Henley está o Afeganistão, com apenas 26 países a confiarem no seu passaporte. Seguem-se-lhe o Iraque (28) e a Síria (29), onde ainda ecoam os sons da guerra.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui