O oitavo Presidente da República Islâmica toma posse, esta quinta-feira, diante do Parlamento. Após uma carreira de 40 anos ao serviço da justiça, Ebrahim Raisi é apontado como futuro sucessor de Ali Khamenei na liderança espiritual do país. Sem experiência política, tem a complicar a nova tarefa o facto de enfrentar pessoalmente sanções decretadas pelos Estados Unidos

Os calendários eleitorais e a vontade popular determinaram que, em 2021, tanto Estados Unidos como Irão renovassem as suas presidências com outros rostos. Mas mesmo com Joe Biden em Washington e Ebrahim Raisi em Teerão, não está garantida qualquer melhoria no contacto entre os dois países, sem relações diplomáticas desde 1979.
Três dias após ser eleito, o novo chefe de Estado iraniano deu uma concorrida conferência de imprensa em Teerão, onde foi inquirido sobre se planeava encontrar-se com o homólogo norte-americano. “Não”, respondeu secamente.
Nesse encontro com a imprensa, Raisi — que, esta quinta-feira, toma posse diante do Parlamento — defendeu a continuação das conversações indiretas que decorrem, em Viena, sobre o futuro do acordo nuclear (do qual os EUA se retiraram por decisão do anterior Presidente, Donald Trup), instou Washington a levantar as sanções e definiu o programa de mísseis balísticos iraniano como “inegociável”.
Raisi respondeu aos jornalistas com o manto de estadista colocado. De um prisma pessoal, a perspetiva de diálogo com os EUA é algo que também se lhe afigura impossível. Desde finais de 2019 que o novo Presidente do Irão é alvo de sanções dos Estados Unidos.
A 4 de novembro desse ano, dia em que se assinalou o 40.º aniversário do início da crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão — 52 pessoas foram mantidas em cativeiro durante 444 dias —, a Administração Trump decretou sanções financeiras contra o Estado-Maior das Forças Armadas iranianas e nove outros indivíduos próximos do ayatollah Ali Khamenei. Raisi era um dos visados.
“Esta ação visa impedir que os fundos fluam para uma rede secreta de assessores militares e de relações exteriores de Ali Khamenei que há décadas oprimem o povo iraniano, exportam o terrorismo e avançam com políticas desestabilizadoras em todo o mundo”, lê-se no decreto.
À época da imposição das sanções, Raisi levava meses na liderança do sistema judicial do Irão. Fora nomeado para o cargo pelo Líder Supremo, após décadas de experiência na área. Começou em 1981, aos 20 anos, como promotor de justiça na cidade de Karaj, perto de Teerão.
Essa longa experiência contribuiria para uma mancha negativa na sua reputação, profusamente recordada no momento da sua eleição. O seu nome surge associado à sinistra “comissão da morte”, que, em 1988 — era Raisi vice-procurador-geral de Teerão —, supervisionou a execução extrajudicial de presos políticos nas prisões de Evin e Gohardasht, nos arredores da capital.
Crimes contra a humanidade
No dia seguinte à vitória de Raisi nas presidenciais de 18 de junho, a Amnistia Internacional divulgou um comunicado intitulado “Ebrahim Raisi tem de ser investigado por crimes contra a Humanidade”. “Como chefe do sistema judicial iraniano, presidiu a uma violenta repressão aos direitos humanos em que centenas de dissidentes pacíficos, defensores dos direitos humanos e membros de grupos minoritários foram perseguidos e detidos arbitrariamente.”
“Sob a sua supervisão”, continua a organização de defesa dos direitos humanos, “foi concedida impunidade total a funcionários do Governo e forças de segurança responsáveis por matar ilegalmente centenas de homens, mulheres e crianças e sujeitar milhares de manifestantes a prisões em massa e pelo menos centenas a desaparecimentos forçados, tortura e outros maus tratos durante e após os protestos em todo o país em novembro de 2019.”
Neste período, duas execuções tiveram grande repercussão internacional: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam, ambas em 2020.
À frente do sistema judicial, Raisi promoveu um conjunto de reformas penais que resultaram na libertação de presos e na comutação de sentenças de pena de morte, o que lhe angariou popularidade.
Ganhou as eleições à primeira volta, com expressivos 61,95%, naquele que foi o escrutínio menos participado de sempre (51,2% de abstenção). Votaram no vencedor cerca de 18 milhões dos quase 29 milhões de eleitores que foram às urnas. Raisi teve a vida facilitada pelo chumbo aplicado pelo Conselho de Guardiães — órgão que valida as candidaturas à presidência — a alguns perfis moderados e reformistas que poderiam fazer-lhe frente.
Raisi assentou a sua campanha em slogans como “honra nacional”, “dignidade humana” e “igualdade social”, surgindo aos olhos dos eleitores como um homem humilde, intolerante à corrupção. A experiência na 40 anos na área da justiça levou muitos iranianos a acreditarem que será ativo no combate à corrupção, uma das principais queixas do povo.
Ebrahim Raisi nasceu a 14 de dezembro de 1960, em Mashhad, a mesma cidade no nordeste do país onde, 21 anos antes, nasceu Ali Khamenei, atual Líder Supremo do Irão. Mashhad é a segunda cidade do Irão e um importante centro religioso xiita, já que alberga o túmulo de Reza, o oitavo dos doze imãs infalíveis que compõem a linhagem xiita.
Nascido no seio de uma família religiosa, perdeu o pai aos cinco anos e aos 15 começou a estudar no seminário de Qom, a principal cidade santa para os xiitas. Dali assistiu ao avolumar do descontentamento popular em relação ao monarca Mohammad Reza Shah Pahlavi, que haveria de o derrubar e levar os ayatollahs ao poder.
Aos 23 anos, Raisi casou com a professora universitária Jamileh Alamolhoda, de quem teve duas filhas. Pelo casamento, tornou-se genro de Ahmad Alamolhoda, conhecido pregador ultraconservador nas orações de sexta-feira, em Mashhad, que chegou a proibir música ao vivo e mulheres ciclistas na cidade.
Sayyid de turbante negro
Além da visão ideológica conservadora, partilha com o Líder Supremo o título de sayyid. Segundo o Islão xiita, esmagadoramente maioritário no Irão, um sayyid descende diretamente de Fatima, filha do profeta Maomé, e simbolicamente usa um turbante negro para evidenciar esse estatuto.
Nos últimos anos, Raisi tem sido apontado como potencial sucessor de Khamenei, como líder espiritual do Irão. O próprio Khamenei foi Presidente (1981-89), imediatamente antes de assumir a liderança religiosa da República (sucedendo ao pai fundador, o ayatollah Ruhollah Khomeini). Apesar da sua longa carreira na justiça, só muito recentemente se deu a conhecer ao grande público.
Em 2016, foi nomeado por Ali Khamenei guardião da multimilionária fundação caritativa Astan-e Qods-e Razavi, sedeada em Mashhad, com negócios em múltiplas áreas e que supervisiona o santuário do imã Reza.
No ano seguinte, subiu mais um degrau no reconhecimento público e ascendeu ao primeiro plano da política, desafiando nas urnas Hassan Rohani, o Presidente a quem agora sucede. Durante a campanha, Rohani referiu-se a Raisi como um “daqueles que não conhecem nada além de execuções e prisões”. Raisi perdeu aquelas eleições de 2017, com apenas 38% dos votos, num escrutínio que teve uma taxa de afluência de 73%. Mas os iranianos ficaram a conhecê-lo.
Se a presidência do país é, como muitos suspeitam, um trampolim para se tornar o próximo líder espiritual do Irão, os próximos tempos serão vitais. Raisi terá de mostrar capacidade na governação e conquistar o coração de um povo de mais de 80 milhões em grandes dificuldades económicas.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui