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A grandeza que o Irão não esquece

Foi um dos grandes impérios da História. Ainda hoje, o seu legado histórico, geográfico e religioso influencia as opções geopolíticas de um dos gigantes do Médio Oriente, o Irão

“Bem-vindo, peregrino, tenho estado à tua espera. Perante ti jaz Ciro, Rei da Ásia, Rei do Mundo. Tudo o que resta de mim é pó. Não me invejes”

No sítio arqueológico de Pasárgadas, no sudoeste do Irão, a inscrição gravada no túmulo do fundador do primeiro império persa instala a dúvida num visitante casual. Quão poderoso terá sido efetivamente este homem para chamar a si o título de “Rei do Mundo”? A História universal dá a resposta. No século VI a.C., Ciro, o Grande, unificou o Império Aqueménida, que se estendia do atual território da Líbia até à cordilheira do Hindu Kush, entre o Afeganistão e o Paquistão.

Estratego militar brilhante, revelou-se também um líder tolerante, respeitador das tradições e costumes dos povos que invadia. A ele se deve a primeira carta dos direitos humanos do mundo. Descoberto em 1878, em escavações na antiga cidade da Babilónia (que o imperador conquistou em 539 a.C. e que fica no atual Iraque), o Cilindro de Ciro — um rolo em argila que pode ser apreciado no Museu Britânico, em Londres — exalta a benevolência daquele líder que tratou os súbditos com dignidade, libertou escravos, autorizou os judeus cativos a regressarem à Judeia, emancipou minorias e decretou a liberdade religiosa.

Em 2003, quando recebeu o Prémio Nobel da Paz em Oslo, a iraniana Shirin Ebadi — advogada na área dos direitos humanos e uma voz crítica do regime dos ayatollahs — não esqueceu esse legado humanista. “Sou uma iraniana. Uma descendente de Ciro, o Grande. O mesmo imperador que proclamou no auge do seu poder, 2500 anos atrás, que não reinaria sobre o seu povo se este não o desejasse. E prometeu não forçar ninguém a mudar de religião e de fé e garantiu liberdade para todos. A Carta de Ciro, o Grande é um dos documentos mais importantes que deveriam ser estudados na história dos direitos humanos.”

No imaginário coletivo iraniano, Ciro está na origem de uma sucessão de impérios extraordinários que contribuíram para enraizar a ideia de uma civilização singular liderada por monarcas notáveis. No fim dessa linhagem, Mohammad Reza Pahlavi, o Xá do Irão entre 1941 e 1979, deu cumprimento a esse desígnio e coroou-se “Rei dos Reis”.

Convicto de que era o líder perfeito de um país sem igual, cego perante a contestação nas ruas contra a repressão da polícia política, Reza Pahlavi mobilizou recursos infinitos para que fosse organizada com toda a pompa uma receção comemorativa dos 2500 anos da fundação do Império Persa. Em 1971, junto às ruínas de Persépolis, a antiga capital, foi erguida uma “cidade de tendas” com material vindo de França em 100 aviões e 40 camiões para acomodar reis e presidentes, ministros e generais, realeza e comunistas vindos dos quatro cantos do mundo.

Na fila para cumprimentar o Xá Reza Pahlavi e a imperatriz Farah Diba desfilaram do imperador da Etiópia, Haile Selassie, ao ditador romeno, Nicolae Ceauşescu, de Grace Kelly e Rainier do Mónaco a Imelda Marcos, das Filipinas, de Juan Carlos e Sofia de Espanha ao marechal Josip Broz Tito, Presidente da Jugoslávia. Portugal esteve representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício.

250 limusinas no deserto

As tendas foram montadas num oásis construído para a ocasião, com uma floresta, flores, fontes e 50 mil pássaros chilreantes importados da Europa (a maioria dos quais morreria inadaptados às condições climatéricas). Para adequar aquele pedaço inóspito de deserto à presença humana, aeronaves pulverizaram quilómetros em redor da cidade para limpar o solo de todo o tipo de bichos rastejantes. Foram também asfaltados dezenas de quilómetros de autoestrada. O transporte dos convidados entre o aeroporto e o local da celebração foi assegurado por 250 limusinas Mercedes-Benz vermelhas à prova de bala.

Em Paris, o centenário restaurante Maxim’s fechou portas ao público para preparar 18 toneladas de comida, depois transportadas em aviões militares iranianos, juntamente com 150 toneladas de utensílios de cozinha, incluindo louça criada pela exclusiva Limoges, e milhares de garrafas dos melhores vinhos e champanhe franceses. Para servir no banquete, foram contratados dezenas de empregados do luxuoso Palace Hotel, de St. Moritz (Suíça). Diariamente, um helicóptero transportou um bloco de gelo do tamanho de um carro para refrescar o vinho branco. Uma equipa de filmagens foi recrutada em Hollywood para realizar o filme oficial da festa do orgulho persa, com Orson Welles no papel de narrador.

Entre 12 e 14 de outubro de 1971, o Irão foi palco daquela que foi possivelmente a festa mais extravagante da História, transmitida em direto por satélite para televisões de todo o mundo. “Gastaram em dois dias o orçamento da Suíça para dois anos”, testemunhou Marcel Huder, um dos garçons do Palace Hotel de St. Moritz que serviu no banquete, no documentário “Decadence and Downfall: The Shah of Iran’s Ultimate Party”, produzido pela BBC (2016).

https://www.youtube.com/watch?v=l0X_B4x2eBc

As celebrações — protegidas por um aparato de 60 mil tropas — deixaram um país depauperado, um povo revoltado com toda aquela ostentação e uma oposição cada vez menos silenciosa incentivada, desde o seu exílio no Iraque, por Ruhollah Khomeini, um clérigo influente para quem o Irão não era um país suficientemente islâmico.

O festim de Persépolis — convocado pelo “Rei dos Reis” para celebrar o feito do “Rei do Mundo” — desgastou decisivamente a dinastia Pahlavi. Mas na sua essência, toda aquela sumptuosidade espelhava a forma como, ainda hoje, os iranianos olham para si próprios e projetam o seu país no mundo: um povo único, com língua própria (o farsi), herdeiro de uma civilização antiga e superior, destinado a ocupar um lugar central na história.

Superioridade persa

Com cerca de 85 milhões de habitantes, o Irão é um mosaico composto por dezenas de grupos étnicos, ecos da passagem pelo território de outros conquistadores. Os persas correspondem a cerca de 60 por cento da população; azeris e curdos são as maiores das minorias. Maioritários, os persas são também a etnia mais influente na identidade iraniana. No governo, os principais cargos tendem a ser ocupados por persas.

Originalmente conquistadores indo-europeus descendentes dos arianos, os persas orgulham-se de serem os detentores legítimos das terras que ocupam. Em 1934, o monarca Reza Shah, pai de Mohammad Reza Pahlavi, determinou que, na correspondência oficial com o estrangeiro, o nome “Pérsia” fosse substituído por “Irão” (“a terra dos arianos”).

Reza Shah tinha conhecidas inclinações pró-germânicas — acabaria mesmo por ser deposto por tropas aliadas anglo-soviéticas, em 1941, no decurso da II Guerra Mundial, em que o Irão era oficialmente neutral. Mas ao alterar a designação do país talvez tenha pretendido substituir o nome de uma entidade que já passara por um período decadente por outro que colocaria em evidência a pureza do povo.

Os iranianos não são árabes. Muitos acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão

Em paralelo ao fator étnico, a localização geográfica do Irão e, mais importante ainda, a sua orografia contribuem para alimentar uma certa ambição hegemónica. O país situa-se na encruzilhada do mundo islâmico, entre as regiões do Médio Oriente, do Cáucaso e da Ásia Central e do Sul. Essa localização castiga-o com uma tensão permanente que decorre da necessidade de equilibrar benefícios e riscos da sua posição estratégica.

Mas são as suas imponentes montanhas que definem este país. A norte, a cordilheira Alborz atravessa o território de leste a oeste, com o pico no Monte Damavand (5671 metros acima do nível do mar), o mais alto do Médio Oriente. A ocidente situa-se a barreira natural iraniana mais importante — a cordilheira de Zagros. Com vários cumes acima dos 4000 metros, esta cadeia cruza o país desde o território da Turquia até ao Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. No passado, foi a fronteira histórica entre a Pérsia e a Mesopotâmia (atual Iraque).

Do olho nos árabes

Há 2500 anos, foi do coração desta fortaleza geográfica — que tem uma área superior às de França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal combinadas — que o Império Persa iniciou a sua expansão. Hoje, é nesse planalto que o Irão explora as maiores reservas de gás natural e as quartas maiores reservas de petróleo do mundo e cerra fileiras perante ameaças à espreita, desde logo por parte dos seus inimigos históricos — os árabes.

À semelhança de turcos, afegãos e paquistaneses, os iranianos não são um povo árabe. Este é, aliás, um dos equívocos mais frequentes em relação às problemáticas do Médio Oriente. Muitos iranianos consideram os árabes bárbaros e acreditam que a Pérsia entrou em decadência após a invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada na língua árabe, o Islão.

Se é um facto que, nas últimas quatro décadas, o Irão tem vivido sob os ditames de uma teocracia muçulmana, a sua dinâmica quotidiana continua a ser pautada por tradições pré-islâmica. O tempo é contado com base no calendário persa e cada Ano Novo (“Nowruz”) coincide com o início da primavera (21 de março do calendário gregoriano), conforme a tradição mística do zoroastrismo, a fé da antiga Pérsia.

Nos corredores políticos de Teerão, na hora de hierarquizar prioridades geopolíticas, toda esta herança ancestral vem ao de cima — da identidade às inimizades. É neste contexto que deve ser compreendida a grande rivalidade entre o Irão (persa) e a Arábia Saudita (árabe) que, de tempos a tempos, ameaça arrastar todo o Médio Oriente para uma guerra total.

A dor dos xiitas

Um segundo pilar que sustenta a conflitualidade entre iranianos e sauditas é a sensibilidade religiosa predominante nestes dois países islâmicos. Guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina, lugares venerados por qualquer crente muçulmano, a Arábia Saudita é maioritariamente sunita. Já o Irão é esmagadoramente xiita. Com os ayatollahs no poder o Islão xiita tornou-se a religião de Estado.

A diferença fundamental entre as duas correntes decorre da morte de Maomé, no ano 632. O Profeta não designou um sucessor na liderança da “Ummah” (a comunidade dos crentes) e, na hora de se pronunciarem, os discípulos dividiram-se. Uns optaram por Abu Bakr, sogro e braço-direito de Maomé — são os sunitas, partidários da “sunna”, a tradição. Outro grupo preferiu Ali, genro e primo de Maomé — os xiitas, “shiat’ Ali”, “seguidores de Ali”.

Os xiitas iranianos acreditam que os ensinamentos do Profeta foram perpetuados por uma linhagem de 12 imãs. O último, Mahdi, é um mensageiro “oculto” que virá à Terra salvar a humanidade da tirania e da barbárie. Indissociável dessa esperança, a espiritualidade xiita tem também expressões de intensa dor e sofrimento que, não raras vezes, alimentam um estereótipo de fanatismo, intolerância e predisposição para o martírio. Na festa religiosa da Ashura, por exemplo, que celebra o assassínio de Hussein, neto de Maomé e filho de Ali, na Batalha de Karbala, peregrinos autoflagelam-se com facas e punhais num ritual macabro de se observar.

De manifestações desta natureza resulta a perceção — errada — de uma fação extremista como nenhuma outra entre as várias correntes do Islão. Mas protagonistas do terrorismo internacional como a Al-Qaeda ou o Daesh (o autodenominado “Estado Islâmico”), o Boko Haram na Nigéria ou o grupo Abu Sayyaf nas Filipinas são na realidade subprodutos do sunismo.

A Revolução Islâmica de 1979 e a chegada ao poder de teólogos xiitas conservadores acentuou esta grande clivagem entre Teerão e Riade, que determina muita da conflitualidade do Médio Oriente. Mas, “como acontece com a maioria dos Estados revolucionários”, escreve o investigador iraniano-americano Ray Takeyh no livro “Hidden Iran — Paradox and Power in the Islamic Republic” (2006), “o Irão deixou de ser um ator militante que desafia as normas regionais para ser um Estado pragmático que segue uma política baseada em cálculos de interesse nacional”.

Hoje, esse pragmatismo passa pela fortificação de uma frente avançada de defesa em territórios dominados pelos árabes, um “arco de influência xiita” com pilares de apoio em países onde os xiitas são maioritários, estão no poder ou simplesmente têm minorias xiita importantes, vestígios de um império que já foi grande.

Xiitas ganham com guerras

No imenso mar sunita que é a região do Médio Oriente, os xiitas são a maioria da população em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrein, embora só nos dois primeiros detenham o poder.

Se hoje Teerão exerce grande influência em Bagdade deve-o aos Estados Unidos e à guerra desencadeada por George W. Bush, em 2003, apoiada em documentos forjados que “provavam” que Saddam Hussein dispunha de um arsenal de armas de destruição maciça. A deposição do ditador — que governava apoiado na minoria sunita, a sua, e reprimia com mão dura a maioria xiita — e a experiência democrática que se seguiu catapultaram os xiitas para o poder e escancararam as portas de Bagdade aos iranianos.

A influência do Irão sobre o Iraque não é porém ilimitada, como ficou demonstrado na guerra que os dois países travaram entre 1980 e 1988. Os iraquianos xiitas cerraram fileiras em torno de Saddam Hussein e não do ayatollah Khomeini, o “irmão” xiita iraniano. Neste caso, a rivalidade ancestral entre árabes e persas falou mais alto do que a sensibilidade religiosa.

À semelhança do que aconteceu no Iraque, Teerão também beneficiou largamente da guerra no Afeganistão, desencadeada pela mesma Administração Bush, em 2001, para retaliar os atentados de 11 de setembro. A queda do regime dos talibãs (estudantes de teologia), que dava guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden, eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão.

Remetidos novamente às hostes da resistência contra o poder central em Cabul, os talibãs não descuram os seus ódios de sempre, continuando a visar em atentados ou efetuando raptos afegãos xiitas, como é o caso dos de etnia hazara. Descendentes dos mongóis enviados por Gengis Khan no século XIII, praticam sobretudo o xiismo do ramo duodecimano (o do Irão) e o ismaelismo, cujo líder é Aga Khan.

No Iraque ou no Afeganistão, o desgaste provocado nas autoridades nacionais pela ocupação estrangeira do país combinado com o crescente desprestígio dos norte-americanos tornam o Irão mais difícil de conter. Já no Bahrein, a única petromonarquia ribeirinha ao Golfo Pérsico maioritariamente xiita, o assédio iraniano é seguido à lupa pela Arábia Saudita. Foi o que aconteceu em 2011 quando sopravam os ventos da primavera árabe na região e manifestações populares desafiaram o poder dos Al-Khalifa (sunita), exigindo direitos políticos para os xiitas, marginalizados de cargos governativos. Em socorro da família real, os sauditas invadiram o território com tanques e tropas, matando à nascença uma velada tentativa de o Irão colocar um pé na Península Arábica — como hoje acontece no Iémen.

Vulnerabilidade saudita

Estrategicamente localizado junto ao Estreito de Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no sudoeste da bota a que se assemelha a Península Arábica, o Iémen é o “calcanhar de Aquiles” da Arábia Saudita, o ponto de vulnerabilidade que o Irão quer explorar. Em 2015, os huthis, um grupo iemenita que professa um ramo antigo do xiismo, rebelaram-se contra o Presidente reconhecido internacionalmente, com apoio logístico e financeiro do Irão. A Arábia Saudita respondeu com uma intervenção militar (que ainda dura) naquele que é um dos países mais pobres do mundo, contando também com o desgaste provocado pela Al-Qaeda na Península Arábica (sunita), que tem a sua base no Iémen e é o braço mais ativo da organização terrorista (reivindicou, por exemplo, o ataque ao jornal satírico francês “Charlie Hebdo”).

Tal como aconteceu no Iraque, o Irão beneficiou largamente com a guerra do Afeganistão. A queda do regime talibã eliminou outro baluarte sunita contra a avançada regional do Irão

Há cinco meses, um ataque com drones e mísseis balísticos contra duas importantes refinarias sauditas suspendeu metade da produção petrolífera do país e afetou 6 por cento do abastecimento global. Sofisticado e preciso, o ataque foi reivindicado pelos huthis, embora os sauditas tenham disparado acusações na direção dos iranianos. A ser verdade, fica provada a eficácia de um dos vetores da estratégia militar do Irão para a região — atingir inimigos através de terceiros.

Israel, o “pequeno satã”

A Síria é outro ponto de apoio do “arco xiita” iraniano. Oriundo da minoria alauita (uma derivação do xiismo), o Presidente Bashar al-Assad tem resistido à guerra que leva quase nove anos graças, em grande parte, ao apoio no terreno de milhares de combatentes do seu peão libanês, o Hezbollah. O “Partido de Deus” — um misto de força paramilitar, partido político (com representação parlamentar e ministros no governo) e organização de beneficência social — é para o Irão uma força de vanguarda na luta contra a “entidade sionista”, como os de Teerão se referem a Israel.

O Irão alberga desde tempos longínquos a comunidade de judeus mais numerosa do Médio Oriente a viver fora de Israel e do território palestiniano ocupado da Cisjordânia — hoje a rondar as 8500 pessoas. Para o ayatollah Khomeini, o problema não eram os judeus mas antes o Estado de Israel, “o pequeno satã”, que considerava fruto de uma conspiração desenhada para consolidar o neocolonialismo ocidental no Médio Oriente e humilhar os muçulmanos. A ocupação de Jerusalém — durante o conflito israelo-árabe de 1967 (Guerra dos Seis Dias) — era a expressão visível desse projeto.

No Irão, a partir de finais da década de 90, o cérebro por trás desta rede de proxies permeáveis aos interesses iranianos passou a ser o general Qasem Soleimani, comandante das Brigadas al-Quds, uma força de elite dos Guardas da Revolução. Esse protagonismo, bem como as suas frequentes deslocações ao terreno para visitar, orientar ou comandar fações amigas, colocou-o na linha de mira. A 3 de janeiro passado, foi alvejado mortalmente por um drone dos EUA junto ao aeroporto internacional de Bagdade.

Um brinde que caiu mal

Popular e respeitado no Irão, o seu martírio — a forma mais nobre de se morrer entre os xiitas mais fervorosos — originou gigantescas manifestações de pesar só comparáveis, em dimensão e lágrimas derramadas, às exéquias fúnebres do fundador da República, em 1989. Os gritos de “Morte à América” e as exigências de “vingança” recuperam todo um guião de hostilidade aos Estados Unidos tão antigo quanto a própria República Islâmica. Para o ayatollah Khomeini, o Ocidente era fonte de todos os males. O seu ódio à monarquia refletia, acima de tudo, a rejeição da ocidentalização com que o Xá pretendia enterrar a identidade islâmica da sociedade iraniana — com a cumplicidade do “grande satã”.

Prestes a cumprir o seu primeiro ano na Casa Branca, Jimmy Carter realizou um périplo pelo estrangeiro que o levou também ao Irão, onde chegou mesmo no fim do ano. A 31 de dezembro de 1977, o Xá presenteou-o com um banquete em Teerão e Carter desfez-se em elogios. Realçou a “ilha de estabilidade” que era o Irão “numa das áreas mais problemáticas do mundo” e atribui esse feito à “grande liderança” do Xá. E no momento do brinde, colocou-se na pele do mais rendido dos súbditos: “Este é um grande tributo a sua majestade e à liderança, ao respeito, à admiração e ao amor do seu povo.”

Inimigos compatíveis

Se Jimmy Carter não viu ou não quis ver, a verdade é que a monarquia vivia os últimos dias no Irão. Regressado o ayatollah Khomeini do seu exílio em Paris a 1 de fevereiro de 1979, a Revolução não demorou a consolidar-se. A 4 de novembro seguinte, estudantes rumaram à Avenida Taleqani, invadiram a embaixada dos EUA e mantiveram 52 norte-americanos cativos durante 444 dias. A crise contribui decisivamente para a não reeleição de Carter e terminou no exato dia em que Ronald Reagan entrou na Casa Branca, a 20 de janeiro de 1981. Os dois países continuaram de relações cortadas. Hoje, os murais hostis a Washington que continuam a ser pintados nas paredes do edifício da antiga embaixada dos EUA em Teerão são a prova que os iranianos não esquecem.

Insuspeito “falcão” da diplomacia americana, o antigo secretário de Estado, Henry Kissinger, escreveu no livro “Does America Need a Foreign Policy?” (2002): “Existem poucas nações no mundo com as quais os EUA têm menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão.” As últimas quatro décadas têm sido, no entanto, a antítese dessa realidade, apesar de circunstancialmente iranianos e americanos estarem do mesmo lado da barricada combatendo inimigos comuns. Foi assim com a União Soviética, com Saddam Hussein e mais recentemente com a Al-Qaeda e o Daesh — ainda que no subconsciente de ambos o inimigo fosse quem estava do seu lado.

(IMAGEM Relevo nas ruínas do templo de Apadana, na cidade iraniana de Persépolis)

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 22 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Contrastes persas

Aos 39 anos de vida, a República Islâmica do Irão vive cada vez mais tomada por debates em torno do que é permitido e proibido. A sociedade exige, o regime cede

Já lá vai exatamente um mês e o paradeiro daquela jovem iraniana de longos cabelos negros continua desconhecido. Zahra — chamemos-lhe assim, já que a sua identidade não foi divulgada — foi detida em Teerão após protagonizar um protesto solitário que se tornou viral nas redes sociais. A 27 de dezembro, véspera de começarem as manifestações antigovernamentais que haveriam de colocar o Irão nas manchetes internacionais, Zahra subiu a um bloco de cimento na Avenida Enqelab — uma das grandes e movimentadas artérias que rasgam a capital —, tirou o seu hijab branco da cabeça, amarrou-o à extremidade de uma vara e começou a ondulá-lo, indiferente a quem passava a pé ou de carro.

No Irão, o uso do lenço é obrigatório para as mulheres na via pública. Já os homens devem evitar calções ou T-shirts cavadas. Este código de indumentária é tão antigo quanto a própria República Islâmica, fundada em 1979. Quem se atrever a desrespeitá-lo sofre, no mínimo, uma advertência e arrisca-se a ser levado para a esquadra por um dos muitos agentes da polícia moral que passam as ruas a pente fino. Fardados ou à paisana, encaram cada transeunte como um potencial prevaricador em matéria de vestuário.

A coincidência entre o ato de coragem de Zahra e as mediáticas manifestações populares contra o custo de vida, que contagiaram pelo menos 75 cidades iranianas, tornaram a jovem um ícone involuntário daqueles protestos — que não eram os dela. E terão contribuído para um castigo severo. “Não temos notícias de que tenha sido libertada”, diz ao Expresso a ativista iraniana Masih Alinejad. “As forças de segurança estão a dizer às famílias dos detidos para não falarem para a imprensa ou com ativistas” sob pena de retaliações. “Cinco pessoas já morreram enquanto estavam detidas, é compreensível que haja uma relutância” das famílias em dar informações.

Masih, 41 anos, jornalista, é a fundadora da campanha que levou Zahra a afrontar as leis dos ayatollahs. Todas as quartas-feiras, as iranianas são desafiadas a destapar a cabeça em público ou a usar um xaile branco em protesto contra o uso obrigatório do lenço. Nas redes sociais, imagens desses gestos de resistência são identificadas com a hashtag #WhiteWednesdays (quartas-feiras brancas), num incentivo à adesão de cada vez mais mulheres.

“Em 2014, comecei a campanha My Stealthy Freedom [Minha Liberdade Furtiva] para tornar pública a vontade das iranianas em poderem escolher e a sua oposição ao hijab obrigatório. Durante três anos, a campanha decorreu essencialmente nas redes sociais”, explica a sua criadora. Então, selfies de iranianas sem hijab ou chador [véu integral que deixa à mostra apenas rosto e mãos], em poses a céu aberto, e muitas vezes na companhia dos namorados ou maridos, inundaram as páginas da campanha na internet expondo um real desejo de liberdade. “Ao fim de três anos, senti que havia mulheres suficientemente corajosas para darmos mais um passo e mostrarmos quão fortes nos sentimos”, continua Masih. “Até agora, não lhes pedi que se juntassem num sítio em concreto. Seriam atacadas por rufias e paramilitares, e seriam presas. Quero ser cuidadosa e não colocá-las em perigo.”

Vítima dos ayatollahs… e de Trump

Masih orienta tudo à distância, a partir da cidade norte-americana de Nova Iorque, onde vive exilada desde 2014 e se desdobra em aparições televisivas denunciando os entraves às liberdades no seu país. A sua profissão e o seu ativismo tornaram-na persona non grata no Irão desde 2009, quando saíram à rua os protestos contra a reeleição do Presidente conservador Mahmoud Ahmadinejad que ficaram conhecidos como Movimento Verde. A repressão das forças da ordem condenou os líderes que o encabeçaram — o ex-primeiro-ministro Mir Hussein Mussavi e o ex-presidente do Parlamento Mehdi Karroubi — a prisão domiciliária, até hoje. E forçou Masih a fugir do país.

Antes do exílio nos Estados Unidos, a ativista viveu cinco anos no Reino Unido com o estatuto de refugiada política. Hoje, a sua nacionalidade torna-a um alvo da política de proibição de vistos de Donald Trump, que visa também os detentores de passaporte iraniano. “Sou afetada de uma forma muito dolorosa. O meu filho [Pouyan, que estuda no Reino Unido] não pode viajar para me ver e eu não posso viajar para o ver”, lamenta. “Mas é claro que os maiores entraves são colocados pela República Islâmica contra o seu próprio povo. Eu não posso viajar para o Irão, tal como muitos outros jornalistas que fugiram do país, e por razões de segurança a minha família também não pode deixar o Irão.”

Masih e, em especial, as mulheres que a seguem estão, hoje, na vanguarda de uma atitude de insubordinação face às autoridades de Teerão que, aos poucos, vai corroendo os pilares teocráticos da República Islâmica e obrigando o regime a cedências no sentido da modernidade. Em julho passado, Farzaneh Sharafbafi, 44 anos, doutorada em engenharia aeroespacial, tornou-se a primeira mulher a ser nomeada CEO da Iran Air, a transportadora aérea iraniana.

Contrariamente àquilo que o estereótipo possa sugerir, a obrigatoriedade do lenço não condena as iranianas a uma vida de clausura entre as paredes do lar. Elas podem estudar, trabalhar, viajar sozinhas — ainda que para tirarem passaporte necessitem de autorização do marido (as casadas) ou do pai (as solteiras) —, escolher que caminhos trilhar, por muito que isso indisponha clérigos conservadores como Hadi Sadeqi. No ano passado, quando estalou o debate no Irão sobre se o interior dos automóveis era espaço público ou privado, o vice-chefe do sistema judicial defendeu: “Espaço privado é a parte invisível do carro, como o porta-bagagens”… A discussão surgiu após cada vez mais mulheres se recusarem a cobrir a cabeça dentro dos seus carros. Muitas, deliberadamente, deixam cair o lenço sobre os ombros quando vão ao volante.

Os ayatollahs vão respondendo aos desafios colocados por uma sociedade cada vez mais jovem, permeável às tecnologias e intolerante em relação aos privilégios dos clérigos com medidas ardilosas que resultam num estilo de governação bizarro

A caminho do seu 39º aniversário — que se celebra a 11 de fevereiro —, a República Islâmica do Irão está cada vez mais tomada por debates em torno do que é permitido e proibido. Segundo o último censo, realizado em 2016, dos cerca de 80 milhões de habitantes, 49,1% têm menos de 30 anos. Nunca conheceram outros líderes que não os ayatollahs, mas, à semelhança de qualquer pessoa da sua idade em qualquer parte do mundo, aspiram a ser donos da sua vida, estão de olho na internet atentos ao que se passa no mundo e sentem-se cada vez mais inconformados com os limites impostos por um regime que, na longa e gloriosa História da Pérsia — como se chamou o país até 1935 —, ocupa um período cronológico muito curto.

“Os iranianos, principalmente os da etnia persa dominante, cultivam a certeza de pertencer a uma das mais antigas e gloriosas civilizações. Alimentam com orgulho a memória de um povo que dominou boa parte do mundo graças a sucessivos impérios e cuja ciência um dia iluminou a humanidade”, escreve o jornalista Samy Adghirni, no livro “Os Iranianos” (Editora Contexto, 2014). O autor foi correspondente da “Folha de São Paulo” em Teerão, entre 2011 e 2014, tendo colaborado com o “Expresso”.

No milenar idioma sânscrito, “Irão” significa “terra dos arianos”. A noção de pertença a uma linhagem pura e, principalmente, a rivalidade com os árabes — que os persas consideram bárbaros, apesar de serem o berço cultural do Islão — impõem condicionamentos à República Islâmica. “Muitos iranianos acreditam que a sua civilização entrou em decadência a partir da invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada em árabe e disseminada por árabes, em detrimento da cultura persa”, continua o jornalista brasileiro. “Mesmo sob o atual sistema de governo teocrático xiita, a herança ancestral do Irão pulsa no dia a dia do país. A ligação com o passado pré-islâmico continua tão forte que o Irão funciona até hoje com base no calendário persa.”

A passagem de ano, por exemplo, celebra-se a 21 de março no calendário gregoriano, coincidindo com a chegada da primavera. Designada “Nowruz”, é uma tradição mística do zoroastrismo, a fé da antiga Pérsia, pioneira na ideia de um deus único e todo-poderoso. Nas casas iranianas, a mudança de ano é tradicionalmente assinalada por uma série de rituais que para os muçulmanos sunitas mais não são do que aberrações pagãs.

Leis bizarras

Por natureza e, sobretudo, por força de uma população cada vez mais esclarecida — segundo o censo de 2016, 74% da população vive em áreas urbanas e a taxa de literacia é de 87,6% (na capital sobe aos 92,9%) —, a República Islâmica está cada vez mais exposta às suas próprias contradições. Em teoria, o consumo de álcool é proibido, punível com vergastadas e, em caso de reincidência, com a pena de morte. A prática é muito diferente. Em junho de 2014, o regime foi obrigado a reconhecer a existência de um problema de alcoolismo no país ao anunciar a abertura de mais de 150 centros de reabilitação ao estilo dos Alcoólicos Anónimos.

Dos escritos do fundador à prática, há muito que os ayatollahs perceberam que a República não é perfeita. Vão respondendo aos desafios colocados por uma sociedade cada vez mais jovem, permeável às tecnologias e intolerante em relação aos privilégios dos clérigos com medidas ardilosas que resultam num sistema de governação bizarro.

A homossexualidade, por exemplo, é um crime punível com a pena de morte, para os homens, e vergastadas, para as mulheres. Em 2007, num discurso na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, o então Presidente Mahmoud Ahmadinejad expôs-se ao ridículo ao afirmar: “No Irão, não temos homossexuais como no vosso país. Não temos esse fenómeno”. Foi brindado com vaias e gargalhadas. Mas o mesmo Estado que castiga severamente a homossexualidade autoriza, incentiva e subsidia operações de mudança de sexo, com base numa fatwa (decreto) do ayatollah Khomeini, de 1986, que considera as cirurgias de redesignação sexual e os tratamentos hormonais procedimentos médicos compatíveis com os princípios religiosos. A República Islâmica considera que transexuais são heterossexuais com uma doença curável. Provando às autoridades, através de exames médicos e psicológicos, que nasceram em “corpo errado”, os iranianos transgénero têm a porta aberta para mudarem de sexo e ganharem uma nova identidade.

Igualmente, a prostituição é estritamente proibida. Porém, a figura jurídica do “casamento temporário” (sigheh) permite a celebração de contratos de matrimónio com duração de semanas, dias, horas ou… minutos. Aceite em termos religiosos, é uma forma camuflada, e legal, de prostituição.

Se o Irão é um Estado com características únicas no mundo, tal deve-se ao pensamento de um líder carismático chamado Ruhollah Khomeini e à sua revolta interior contra a monarquia do Xá Mohammad Reza Pahlavi. Vivia Khomeini num santuário xiita na cidade iraquiana de Najaf — ali escreveu “Velayat-e-Faqih” (Governo do Jurisconsulto), onde explana o seu Estado Islâmico ideal, liderado por um “jurista justo e capaz” (“Faqih”) — quando, em 1971, uma festa luxuosa nas ruínas de Persépolis (sul) chocou os iranianos pela sua extravagância e opulência. Organizada pelo Xá para comemorar os 2500 anos da fundação do Império persa, durou cinco dias, contou com a presença de centenas de convidados dos quatros cantos do mundo, transportados desde o aeroporto por uma frota de 250 limusinas vermelhas Mercedes-Benz. Ao lado das ruínas, o Xá mandou erguer uma “cidade de tendas” sumptuosas, decoradas por um designer de interiores francês e com materiais vindos de Paris. O serviço de louça do banquete era Limoges e os empregados vestiam Lanvin. O povo foi mantido longe de todo aquele glamour, à mesma distância a que o monarca estava dos seus súbditos. Para Khomeini, tudo aquilo foi “o festival do Diabo” e mais uma demonstração da corrupção moral do regime e um incentivo a uma revolução contra o ditador ocidentalizado.

No livro “Shiismo iraniano” (ISCSP, 2000), Helder Costa Santos descreve como, ao estabelecer um sistema secular, o Xá Reza Khan lançou sementes de revolta. “Procurou ressuscitar a Antiga Pérsia e passou a empregar símbolos reveladores de uma identidade ariana; construiu novas indústrias, dotou o país com uma rede de caminhos de ferro e de linhas para o telégrafo; aboliu o véu para todas as mulheres; uma lei de 1936 vedou o acesso das mulheres com chador às salas de cinema e aos banhos públicos. Proibiu os condutores de autocarros e os taxistas de as aceitarem como utentes (…). Mais, a polícia do Xá chegou a atacar, em plena rua, as mulheres portadoras da sua indumentária tradicional. (…) ordenou que os homens usassem chapéus europeus e tornou compulsório, para ambos os sexos, o uso do vestuário europeu.”

O sistema político é híbrido, simultaneamente democrático, com cargos eleitos por voto direto e universal (como o Presidente), e absolutista, apoiado na infalibilidade do guia espiritual

Mas se a ostentação do Xá — e o terror espalhado pela sua polícia secreta, a impiedosa Savak — contribuiu decisivamente para a popularidade do movimento de Khomeini, hoje a opulência dos meios religiosos é razão de revolta popular. Este ano, e pela primeira vez, o Governo tornou públicas as verbas alocadas às fundações religiosas bem como os fundos destinados às forças militares e paramilitares — “por uma questão de transparência”, defendeu o Presidente Hassan Rohani.

A mais rica dessas fundações, a Astan-e Quds-e Razavi — que administra o santuário do Imã Reza (o oitavo dos doze imãs do xiismo iraniano), maior do que a Cidade do Vaticano e visitado, anualmente, por milhões de peregrinos iranianos e estrangeiros —, fica em Mashhad (nordeste). O turismo religioso enriqueceu a cidade, mas não os seus habitantes. Os protestos iniciados a 28 de dezembro tiveram o seu tiro de partida precisamente nessa localidade. Foram, acima de tudo, gritos de excluídos, pobres e marginalizados que vivem longe das oportunidades e do cosmopolitismo da capital — e da vida fácil dos clérigos, que a Revolução transformou em dirigentes políticos.

À espera de Mahdi

As contradições do Irão começam no próprio modelo político, assente em raízes republicanas, inspiradas na tradição revolucionária e antimonárquica europeia, e teocráticas, convictas da infalibilidade do Líder Supremo. No topo da pirâmide do poder está, hoje, o ayatollah Ali Khamenei, de 78 anos, de quem se espera que guie os muçulmanos até ao regresso de Mahdi, o imã oculto que voltará à Terra para salvar a humanidade da tirania e da barbárie. (O xiismo iraniano assenta na crença de que os ensinamentos de Maomé foram perpetuados por uma linhagem de doze imãs, descendentes do Profeta. Mahdi é o último; Ali, genro de Maomé, é o primeiro.)

O carácter híbrido deste sistema contribui para a coexistência de instituições democráticas, eleitas por sufrágio direto e universal (como a Presidência e o Parlamento), e órgãos nomeados pelo poder religioso. Os partidos políticos têm pouca relevância, tudo girando em torno de dicotomias que colocam os iranianos em lados opostos da barricada em momentos de tensão política e social: conservadores versus reformistas, ortodoxos versus moderados, teóricos versus pragmáticos.

A divisão sente-se também nos corredores do poder religioso. O visual típico de um clérigo inclui um turbante, cuja cor faz toda a diferença. O turbante-padrão é branco, mas quem possui o título de seyyed (que distingue os descendentes do Profeta Maomé) usa o modelo preto. É o caso do líder espiritual, Ali Khamenei, mas não do Presidente Hassan Rohani, que usa turbante branco.

Há quase 40 anos, a chegada ao poder dos ayatollahs colocou no Irão o rótulo de Estado fanático e intolerante, imagem acentuada após o 11 de Setembro, quando os Estados Unidos inscreveram a República Islâmica no “eixo do mal” dos países que apoiavam o terrorismo. Em épocas de cerco internacional, o fantasma da ingerência estrangeira nos assuntos internos, com que as autoridades de Teerão gostam de acenar, é um argumento ao qual os iranianos são sensíveis. Em 1979, a Revolução surgiu como o culminar de décadas de descontentamento popular face à permeabilidade do regime do Xá em relação ao Ocidente. O episódio mais revoltante, para os iranianos, foi a deposição do primeiro-ministro nacionalista e democraticamente eleito Mohammed Mossadegh, em 1953, às mãos de uma operação com a assinatura da CIA. O governante atrevera-se a nacionalizar a indústria do petróleo, em prejuízo dos interesses ocidentais.

Durante os mais recentes protestos, o príncipe herdeiro do trono iraniano, Reza Pahlavi, de 57 anos, que vive exilado nos EUA, defendeu, em entrevista à agência Reuters, que a Administração Trump devia encorajar as empresas de tecnologia a providenciarem serviços de comunicações facilitadores das manifestações antirregime no Irão. No Twitter, o escritor brasileiro Paulo Coelho trocou o português pelo inglês para se socorrer da História e recordar ao príncipe herdeiro algo determinante na ascensão dos clérigos ao poder: “Cala-te! A Savak está morta, e o povo iraniano irá manifestar-se em defesa do seu país se tu, alguma vez, apelares a outro golpe de Estado como aquele orquestrado pela CIA em 1953”, twitou a 4 de janeiro.

Mais distante no tempo, no século XIX, a Revolta do Tabaco também contribuiu para uma certa desconfiança coletiva crónica dos iranianos em relação às intenções externas. Em 1890, o Xá Nasir al-Din concedeu aos ingleses o monopólio total sobre a produção, venda e exportação do tabaco por um período de 50 anos. Essa concessão originou uma rebelião popular liderada pelo clero e que contou com o apoio dos comerciantes de Teerão.

Há escassos oito meses, a reeleição do Presidente Hassan Rohani demonstrou que as reservas dos iranianos em relação aos estrangeiros não são cegas. Nas presidenciais de 19 de maio, o candidato moderado, apologista do diálogo com o Ocidente, tinha como principal trunfo o acordo internacional sobre o nuclear iraniano (2015), pelo qual Teerão aceitou colocar o seu programa atómico sob supervisão internacional em troca do levantamento de sanções. Rohani venceu à primeira volta, com 57,1% dos votos, contra 38,3% de Ebrahim Raisi, o candidato favorito do Líder Supremo e zelador da milionária Astan-e Quds-e Razavi.

O escrutínio teve uma taxa de afluência às urnas de 73,3%, reveladora do compromisso dos iranianos para com o sistema que os governa desde 1979. É verdade que, no quotidiano, os iranianos têm de lidar com as rusgas da polícia moral e dos basiji — uma força paramilitar voluntária leal à Revolução —, mas o regime só mostra os músculos quando se sente ameaçado, e não se mete dentro das casas das pessoas, onde de tudo acontece às escondidas.

À semelhança do que aconteceu em 2009 e no mês passado, sempre que há protestos no Irão é mais tentador pensar-se que talvez sejam o embrião de uma revolução que irá derrubar o regime do que encará-los como algo que acontece em muitos outros países: há insatisfação, as pessoas saem à rua, há violência e repressão e a situação acalma. Foi este o guião da última jornada de protestos, como já tinha sido nas manifestações de há oito anos. Talvez Estado e sociedade se tenham acomodado um ao outro.

(Foto: Jeans por baixo de roupa negra, à passagem de um funeral FARHAD BABAEI)

Artigo publicado na revista E” do “Expresso”, a 27 de janeiro de 2018, e  republicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2018. Pode ser lido aqui