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Eurovisão arranca hoje: Ucrânia volta a ganhar? Há canções políticas? Porque há, como na ONU, cinco países com assento permanente na final?

A organização do festival não gosta, mas a política sobe ao palco da Eurovisão, ano após ano. O certame de 2023 em Liverpool não será exceção. Ao estilo de aperitivo para a primeira semifinal, esta terça-feira à noite, na qual a portuguesa Mimicat disputará um lugar na final, seguem-se dez interrogações de caráter político, comentadas por Tiago André Lopes, professor na área das Relações Internacionais e grande fã do concurso musical

1. A Ucrânia repetirá a vitória do ano passado?

Ainvasão russa continua, mas é pouco provável que o triunfo da Ucrânia, obtido com o coração, no evento de 2022 em Turim — realizado menos de três meses após o início da guerra —, se repita em Liverpool.

“A vitória da Ucrânia parece-me muito improvável este ano. Ao nível dos júris, não parece de todo que a Ucrânia esteja na corrida. Julgo que vão privilegiar canções mais previsíveis de serem premiadas”, diz Tiago André Lopes, professor de Comunicação para a Diplomacia, na Universidade Portucalense. “Mas não ficarei surpreso se, na votação do público, o bloco de leste votar de forma expressiva na Ucrânia”. O país invadido concorre com o tema “Heart Of Steel”, dos Tvorchi.

Afinal, no ano passado, foi precisamente a preferência do público europeu o segredo da vitória da Ucrânia. “Stefania”, da banda Kalush Orchestra, foi a canção mais pontuada no televoto, com 28 dos 39 países participantes a dar os 12 pontos à Ucrânia (Portugal foi um deles).

Porém, ao nível dos júris, a Ucrânia só obteve a pontuação máxima de cinco países do bloco de leste: Letónia, Lituânia, Moldávia, Polónia e Roménia. O júri português atribuiu 8 pontos à canção ucraniana (e o ucraniano deu 10 à portuguesa).

2. A Rússia participa nesta edição?

Não, nem a sua aliada Bielorrússia. Foram ambas suspensas pela União Europeia de Radiodifusão (EBU), a entidade que organiza a Eurovisão, mas por razões diferentes.

A 25 de fevereiro de 2022, no dia seguinte ao início da invasão russa da Ucrânia, a EBU emitiu um comunicado excluindo a Rússia do festival de Turim. “A decisão reflete a preocupação de que, à luz da crise sem precedentes na Ucrânia, a inclusão de uma inscrição russa no concurso deste ano trouxesse descrédito à competição”, explicou a organização. Esta posição levou os três canais russos membros da EBU a ameaçarem desfiliar-se, ao que a União respondeu com a suspensão.

Já a emissora estatal de rádio e televisão bielorrussa BTRC está suspensa desde 28 de maio de 2021, como resposta à “supressão da liberdade de imprensa” no país.

A penalização da Rússia, em particular, tem consequências abrangentes. “A Rússia era um país que contribuía muito significativamente para a EBU, e a sua suspensão fez com que a inscrição [no festival] subisse de preço”, explica Tiago Lopes. “Há países que não conseguiram comportar os custos e optaram por não ir este ano.” Bulgária, Macedónia do Norte e Montenegro são exemplos. O mesmo aconteceu com Portugal em 2013, durante o resgate financeiro pela troika.

Por estes dias, a “superlambanana”, uma icónica escultura de Liverpool, ganhou as cores da Ucrânia PAUL ELLIS / AFP / GETTY IMAGES

3. Há mais países ausentes?

A EBU é composta por organizações de radiodifusão oriundas de 56 países (incluindo os dois suspensos). Em Liverpool participarão apenas 37, logo há bastantes que ficam de fora. A última vez em que concorreram 37 canções foi em 2014. Desde então, houve sempre mais.

Na história da Eurovisão, o recorde de participantes está nos 43, registados em três edições: 2008 (Belgrado), 2011 (Dusseldorf) e 2018 (Lisboa).

Este ano, para lá das questões financeiras, há razões de peso a justificar ausências. A conservadora Hungria, por exemplo, está em declarada rota de colisão com a exuberância que a Eurovisão tem vindo a assumir.

“A Hungria participou pela última vez em 2019, na mesma semifinal de Conan Osíris. Joci Pápai, que já era um repetente na Eurovisão, ficou muito perto da final, mas não passou. Depois, a Hungria retirou-se do certame e uma das razões invocadas foi a de que o festival se tornara uma parada LGBT, e o país não compactuaria com isso.”

Tiago André Lopes recua até 2012 para recordar outra manifestação de grande conservadorismo em relação ao festival. “O anfitrião foi o Azerbaijão, país conservador, de maioria islâmica xíita, como o Irão”, onde cerca de 15% da população é de etnia azeri. “O Irão considerou que o Azerbaijão estava a perverter a sua alma ao receber um espetáculo desta natureza. Em protesto, o embaixador retirou-se e a embaixada iraniana em Baku fechou portas durante o mês de maio para não ser contaminada pelo espírito da Eurovisão.”

4. Em Liverpool, haverá temas com letras políticas?

“A canção da Ucrânia não tem nada que ver com guerra, mas alguns países levam canções cujas letras estão, claramente, contaminadas pela guerra”, diz Tiago Lopes. “A Croácia faz uma paródia aos ditadores.”

Em palco, cinco homens apresentam-se ao estilo de um espetáculo de travestismo e cantam sobre uma “mamã” que “comprou um trator” e “beijou um idiota”, numa alusão implícita ao trator oferecido pelo Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, ao homólogo russo, Vladimir Putin, a 7 de outubro de 2022, como presente pelo seu 70.º aniversário.

“Toda a atuação do grupo croata [Let 3] é muito bizarra e é uma crítica direta a esses dois ditadores.” Com um histórico de provocações, a banda confirmou, numa entrevista, tratar-se de “uma canção contra a guerra. O nosso único desejo é que a guerra acabe o quanto antes e que a paz e o amor emerjam.”

Outra música política é a balada da Suíça, “Watergun”. “Remo Forrer canta sobre o modo como passamos de brincar às guerras, em crianças, para de repente estarmos numa guerra, e numa guerra real onde não se brinca com pistolas de água.”

Carlos e Camila, os monarcas britânicos, visitaram o palco da Eurovisão, a M&S Bank Arena de Liverpool PHIL NOBLE / AFP / GETTY IMAGES

5. Grécia e Chipre vão continuar a dar 12 pontos um ao outro?

É um clássico na Eurovisão que até já motiva apupos dos fãs na plateia. Desde que Chipre se estreou no certame, em 1981, cabem nos dedos de uma mão as vezes em que Grécia e este país insular do Mediterrâneo não deram pontuação máxima ao outro. Na origem desta preferência está a invasão turca da ilha de Chipre, em 1974, que dividiu o território numa parte grega (Estado soberano, membro da UE e com direito a participar no festival) e numa zona turca (um país que só a Turquia reconhece).

“Grécia e Chipre não são caso único”, diz Tiago Lopes. “Roménia e Moldávia, tradicionalmente, também partilham votos. Mesmo o bloco nórdico — Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia — tende a trocar a votação máxima entre si. E também acontecia entre a Rússia e Bielorrússia.” Há também solidariedade natural entre países do Báltico ou dos Balcãs.

Há dez anos, a Rússia protagonizou um dos episódios mais indigestos da história da Eurovisão. No festival de Malmö, na Suécia, o júri russo deu 12 pontos à canção do Azerbaijão (que ficaria em segundo lugar), enquanto os azeris não atribuíram pontos à música russa (que ficou em quinto).

A questão escalou a hierarquia e chegou ao primeiro plano da política. Em Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, já então Sergei Lavrov, disse que foram “roubados 10 pontos” à Rússia. “Esta ação ultrajante não ficará sem resposta”, prometeu. Em Baku, o Presidente Ilham Aliyev ordenou uma investigação aos zero pontos dados à Rússia e uma recontagem de votos.

Esta lógica de blocos regionais e o impacto que tem nas votações levaram Ancara a bater com a porta da Eurovisão. “A Turquia está contra o sistema de votação, porque considera que, tal como Portugal, é prejudicada por ter poucos vizinhos.” A última participação turca foi em 2012, pela voz de um cantor judeu.

A cidade que acolhe a Eurovisão viu nascer The Beatles, em 1960 CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES

6. Há países árabes a participar na Eurovisão?

Atualmente não, mas já houve e poderá voltar a haver. Entre os 56 países membros da EBU, há sete árabes: Argélia, Jordânia, Líbia, Egito, Tunísia, Marrocos e Líbano. Apenas uma vez um deles participou na Eurovisão: Marrocos, em 1980, em Haia. Em 19 participantes, a canção de Samira Bensaid ficou em penúltimo lugar.

“Não correu muito bem, mas, curiosamente o espetáculo em Marrocos, e em particular na Argélia, é muito popular”, diz o professor. “A saída de Marrocos teve um efeito negativo para a Turquia. No ano em que participou, Marrocos, obviamente, deu-lhe 12 pontos.” Além da solidariedade islâmica, “as sonoridades marroquina e turca estão muito próximas”.

7. Há um padrão de votação entre Portugal e Espanha?

“Há um padrão enviesado a favor de Espanha. Tradicionalmente, Portugal dá votações altas, sem dar votações máximas.” A última edição da Eurovisão confirmou a desafinação entre os dois países ibéricos: Madrid deu a “Saudade, saudade”, de Maro, 4 votos do público e 0 do júri. Lisboa deu a “SloMo”, de Chanel, 10 votos através do televoto e 12 do júri. “É mais comum Portugal dar votação alta a Espanha do que o contrário.”

É também frequente “Portugal dar votações máximas a países de leste, porque as comunidades de leste em Portugal mobilizam-se para votar. Moldávia, Roménia, Bulgária já tiveram, várias vezes, votações muito significativas”.

Nos últimos anos, Portugal e Espanha não têm beneficiado dos votos de países onde têm comunidades migrantes significativas. “Andorra é um país muito pouco regular no que troca a Eurovisão, o que é pena para Portugal, porque, por norma, Andorra vota significativamente em Portugal e Espanha, que são as comunidades maiores.”

O mesmo se passa com o Luxemburgo, onde a maior comunidade estrangeira é a portuguesa: este país, que já venceu a Eurovisão cinco vezes, participou pela última vez em 1993.

Mimicat, a representante portuguesa, durante um ensaio, em Liverpool ANTHONY DEVLIN / GETTY IMAGES

8. Qual o único Estado que a EBU não pressiona para ir à Eurovisão?

O Vaticano. É membro da EBU através da Radio Vaticana, mas nunca arriscou uma participação no festival. “Seria complicado para o Vaticano escolher uma canção e estar ao lado de vários tipos de atuações que desafiam os limites e que já levaram a várias reclamações”, diz Tiago Lopes.

Um exemplo aconteceu na Eurovisão de Lisboa, em 2018. “Nesse ano, pela primeira vez, foram dados os direitos de transmissão à China, que lhe foram retirados após a primeira semifinal. A canção da Irlanda tinha uma coreografia em palco que retratava um amor homossexual entre dois homens. Houve um corte na emissão chinesa e a canção não passou. Quando a imagem voltou, já estava outra em palco. A EBU não gostou desta discriminação com base na sexualidade e retirou os direitos de emissão à China para a segunda semifinal e para a grande final.”

Outro caso polémico ocorreu no evento de Malmö, em 2013. “A canção da Finlândia terminava com um beijo entre duas mulheres. Houve vários países — Rússia, Arménia, Azerbaijão — que reclamaram contra esse beijo.”

9. Porque há cinco países com entrada direta na final?

São conhecidos como os Big Five (cinco grandes) e estão para a Eurovisão como os cinco membros permanentes estão para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha não disputam as semifinais e têm lugar assegurado na final de cada festival, com o anfitrião de cada ano.

Nenhum dos cinco foi o país que mais vezes ganhou a Eurovisão: França e Reino Unido venceram cinco vezes, Itália três e Alemanha e Espanha duas vezes. A campeã do festival é a Irlanda (7 vezes), seguida da Suécia (6).

“Os Big Five são uma necessidade”, explica Tiago Lopes. “A EBU precisa de ter estados que contribuam mais do que os outros. A Eurovisão é um espetáculo pesado do ponto de vista financeiro e, apesar de parte significativa dos custos ficar para o canal de televisão do país anfitrião, há gastos que ficam do lado da EBU.”

A passagem direta para a final pode não ser uma passadeira para os Big Five. “Uma vez que não atuam nas semifinais, curiosamente, acabam por ficar prejudicados. Como estão automaticamente na final, não passam pelo filtro, não passam pelas discussões que durante várias semanas animam os fãs. Acabam por gerar menos interesse e ter mais dificuldade para atrair a atenção na final. É uma benesse que pode virar-se um bocadinho contra eles.”

Nos últimos anos, Reino Unido e, sobretudo, Alemanha têm marcado presença nos últimos lugares: em 2015, os alemães receberam 0 pontos e em 2021 foi a vez dos britânicos ficarem em branco.

10. Haverá invasões de palco em Liverpool?

Não há análise política que consiga prever essas surpresas. Na edição de Lisboa, a invasão de palco durante a atuação da britânica SuRie (cerca do minuto 1:40) foi o maior percalço que manchou a realização da RTP.

O invasor, que conseguiu arrancar o microfone das mãos da cantora britânica, autodenomina-se Dr ACactivism e tem currículo em matéria de interrupção de grandes eventos de palco. No ano anterior, por exemplo, este “filósofo, ativista e DJ/MC sedeado em Londres”, como se apresenta n rede social Twitter, tinha invadido o palco durante a final do concurso “The Voice”, no Reino Unido.

Em 2010, em Oslo, um intruso que invadiu o palco durante a atuação de Espanha quase se tornou um verdadeiro figurante, tal foi a demora dos seguranças em tirá-lo dali. Jaume Marquet i Cot, catalão nascido em 1976, era já experiente na “arte”, com investidas no palco dos prémios Goya, no court de Roland Garros, numa pista de Fórmula 1 e em vários relvados de futebol.

Uma das mais célebres aconteceu em Lisboa, durante a final do Euro 2004, entre Portugal e a Grécia. “Jimmy Jump”, como é popularmente conhecido, correu pelo relvado do Estádio da Luz com uma bandeira da Catalunha na mão e arremessou-a contra a cara de Luís Figo. O futebolista português protagonizara a maior das traições, na opinião de muitos adeptos, ao trocar o Barcelona pelo Real Madrid.

(FOTO PRINCIPAL Na impossibilidade da Ucrânia organizar a Eurovisão, por vencer em 2022, a edição deste ano fica a cargo do segundo classificado, o Reino Unido PETER KNEFFEL / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui

Os dez momentos políticos nos Jogos de Tóquio

Os XXXII Jogos Olímpicos da era moderna não registaram boicotes políticos. Mas muitos atletas aproveitaram o relaxamento das proibições em matéria de manifestações políticas, religiosas ou raciais para alertarem para as suas causas. Em algumas competições, previsivelmente tensas em virtude dos países em contenda, os atletas deixaram a política fora dos recintos. Mas no judo masculino, subiu mesmo ao tapete…

1. ESTADOS UNIDOS-IRÃO: UMA LIÇÃO DE DECÊNCIA

A equipa olímpica de basquetebol dos Estados Unidos não é mais o Dream Team dos Jogos de Barcelona, de 1992. Mas o talento chega e sobra para colocar qualquer adversário em sentido.

Quis o sorteio do torneio olímpico de basket que, na fase de grupos, os EUA defrontassem o Irão. Fora dos recintos desportivos, as duas nações não se falam. Estão de relações cortadas deste 1979, ano em que triunfou a Revolução Islâmica liderada pelo ayatollah Ruhollah Khomeini, e atualmente só contactam indiretamente.

É o que acontece, desde há meses, em Viena, para tentar relançar o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. As duas delegações diplomáticas estão alojadas em hotéis diferentes, não muito distantes, cabendo aos mediadores andarem entre um e outro a transportar mensagens.

Os norte-americanos encestaram quase o dobro dos pontos dos iranianos ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES

Nos Jogos de Tóquio, os EUA “esmagaram” o Irão por 120-66. No final, o resultado desequilibrado não fez mossa. Basquetebolistas das duas equipas deixaram-se fotografar em saudável convivência. “Não é surpresa que os treinadores iriam gostar de se conhecer, e os jogadores demonstrariam desportivismo”, comentou Gregg Popovich, o treinador dos EUA. “Só gostávamos que isto fosse a vida real.”

Nas bancadas, o repórter do jornal britânico “The Guardian”, Sean Ingle, tudo testemunhou: “Não foi tanto o Grande Satã. Foi mais o Grande Amor. E durante mais de duas horas agradáveis na Saitama Super Arena, as equipas de basquete dos Estados Unidos e da República Islâmica do Irão deram uma lição salutar de harmonia, decência e classe para muitos dos seus líderes políticos dos últimos 42 anos.”

2. A PALESTINA, ACIMA DE TUDO

Fethi Nourine, um judoca argelino, tomou uma decisão radical ainda antes de iniciar a sua participação nos Jogos. Conhecido o resultado do sorteio, que ditou o cruzamento dos atletas na categoria de menos de 73 kg, o atleta de 30 anos retirou-se. Se vencesse o adversário sudanês, na primeira ronda, iria enfrentar o israelita Tohar Butbul, que ficou isento do primeiro combate.

“Não tivemos sorte no sorteio. Trabalhamos duro para nos classificarmos para os Jogos, mas a causa palestiniana é maior do que tudo isso. Nós recusamos a normalização das relações com Israel”, justificou o treinador nacional argelino, Amar Ben Yekhlef.

A reação de Nourine não foi propriamente surpreendente. Já em 2019, ele abandonara o Campeonato do Mundo, realizado exatamente no mesmo pavilhão dos Jogos — o Nippon Budokan — pelas mesmas razões. Então, afirmou: “Não vamos fazer com que a bandeira de Israel seja erguida e não vamos sujar as mãos a lutar com um israelita”.

Tohar Butbul viu dois adversários retirarem-se dos Jogos para não terem de o defrontar, por ser israelita JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

A Argélia tem uma posição sólida em relação à questão da Palestina. Para além da sua tradição revolucionária de oposição ao colonialismo — demonstrada na guerra da independência contra a França (1954-1962) —, foi em Argel que, a 15 de novembro de 1988, foi proclamada a independência do Estado da Palestina, que chegou a ser reconhecido por 138 países.

Em Tóquio, o israelita Tohar Butbul enfrentaria uma segunda deserção. A seguir ao argelino, também o sudanês Mohamed Abdalrasool desistiu da competição para não enfrentar o judoca judeu.

3. TADJIQUISTÃO E QUIRGUISTÃO EM NEGAÇÃO

Da euforia da delegação portuguesa ao exotismo do porta-bandeira do Tonga, um adereço sobressaiu mais do que todos os outros durante o desfile dos atletas, na cerimónia de abertura dos Jogos, no Estádio Olímpico — a máscara anti-covid. Mas pelo menos em duas delegações, a maioria dos seus membros abdicou dessa proteção: Tadjiquistão e Quirguistão.

Nestes países vizinhos da Ásia Central, o combate à pandemia tem-se travado em moldes muito relaxados. No Quirguistão, em abril, o ministro da Saúde defendeu a toma de um tónico feito à base de ervas para tratar a covid-19. O preparado foi proposto pelo Presidente Sadyr Japarov — um nacionalista e populista, comparado a Donald Trump — e é feito com base numa receita que foi dada ao Presidente pelo seu pai.

Apesar de advertências médicas de que a poção continha um veneno potencialmente letal, o próprio ministro Alymkadyr Beishenaliyev dissipou dúvidas, e bebeu o preparado durante um briefing na Internet.

Desfile da delegação do Tadjiquistão, no Estádio Olímpico de Tóquio. A maioria dos membros não usa máscara MARTIN BUREAU / AFP / GETTY IMAGES

No Tadjiquistão, as autoridades tardaram em admitir a existência de casos de SARS-CoV-2 no país. E, mesmo após terem cedido ao impacto da doença, têm sido acusadas de encobrir a verdadeira extensão do problema que, no entanto, parece não poupar os mais poderosos do país. Na véspera do início dos Jogos, foi noticiada a morte de uma irmã do Presidente Emomali Rahmon, por covid-19.

4. KAEPERNICK CONTINUA A INSPIRAR

Cinco anos após Colin Kaepernick ter, de forma inédita, substituído a mão direita sobre o coração por um joelho no chão, durante a execução do hino dos EUA, antes de um jogo da Liga Nacional de Futebol (futebol americano), o gesto continua a ser repetido em estádios de todo o mundo. Então, Kaepernick — filho de mãe branca e pai negro — insurgia-se contra a violência policial dirigida em especial contra afroamericanos.

De joelho no chão, o protesto contagiou as futebolistas norte-americanas e suecas, e também a equipa de arbitragem NORIKO HAYASHI / GETTY IMAGES

Nos Jogos de Tóquio, o gesto multiplicou-se, em especial nos torneios de futebol, sem receios de penalizações por parte do Comité Olímpico Internacional. Uma alteração recente à regra da Carta Olímpica relativa a manifestações de caráter político, religioso e racial passou a admitir gestos que “não sejam dirigidos, direta ou indiretamente, a pessoas, países, organizações e / ou à sua dignidade” e que “não sejam disruptivos”, como, por exemplo, que não se realizem durante a execução do hino nacional de outra equipa.

Para muitos atletas, foi a deixa perfeita para deixaram a sua consciência falar mais alto e expressarem solidariedade com vítimas de racismo, injustiça e discriminação.

5. MATILDAS NÃO ESQUECEM OS ABORÍGENES

A participar nos Jogos Olímpicos pela quarta vez, as Matildas — a alcunha da seleção australiana feminina de futebol — aproveitaram o palco para porem o dedo numa ferida que tarda em sarar no país.

Antes do início do primeiro jogo, contra a vizinha Nova Zelândia, as australianas posaram para a fotografia segurando uma bandeira do povo aborígene, a população nativa da Austrália, alvo de discriminação. Duas jogadoras da equipa — a guarda-redes Lydia Williams e a atacante Kyah Simon — são aborígenes.

Kyah Simon (na frente a olhar para o chão) e Lydia Williams (a guarda-redes) são de ascendência indígena YOSHIKAZU TSUNO / AFP / GETTY IMAGES

O gesto das Matildas não foi recebido de forma unânime na Austrália. “As bandeiras indígenas não representam todos os australianos. Existe apenas uma bandeira que realmente representa todos nós. Os contribuintes não desembolsam milhões de dólares para enviar equipas olímpicas para representar duas nações. Somos uma nação, a Austrália, indígenas e não indígenas”, criticou a senadora Pauline Hanson (direita).

“Muitos australianos estão fartos de atletas e celebridades que sequestram os palcos para fazerem gestos simbólicos que apenas inflamam a divisão. Os australianos estão fartos de os seus desportos favoritos serem arruinados pela política.”

Polémica à parte, a seleção australiana obteve o seu melhor resultado de sempre nuns Jogos: o quarto lugar, após perder a medalha de bronze para os EUA, as campeãs mundiais.

6. RAVEN SAUNDERS, UMA VOZ DOS OPRIMIDOS

Deu nas vistas desde o primeiro momento em que as câmaras televisivas a visaram, no Estádio Olímpico, pela sua aparência excêntrica. Raven Saunders, a norte-americana que haveria de conquistar a medalha de prata no lançamento do peso, sobressaía pelo seu porte avantajado, pela indumentária que envergava — em especial a máscara, que nunca tirou, nem para fazer os lançamentos — e pelos gestos alucinados.

Consagrada vice-campeã, em cima do pódio e de medalha ao pescoço, ela levantou os braços e cruzou-os sobre a sua cabeça. Pouco depois, em declarações à imprensa, explicou que aquele X é “a interceção onde se encontram todas as pessoas oprimidas”.

O protesto de Raven Saunders, acabada de receber a medalha de prata, referente ao lançamento do peso RYAN PIERSE / GETTY IMAGES

Saunders, uma atleta negra e homossexual, tem falado abertamente sobre a sua experiência com a depressão e questões de identidade. Na hora da glória olímpica, aproveitou os holofotes para falar da sua causa: “Grito para todos os meus negros, grito para toda a minha comunidade LGBTQ, grito para todo o meu povo que lida com saúde mental. No fim de contas, entendemos que isso é maior que nós e do que os poderes constituídos, entendemos que há tantas pessoas que olham para nós, que estão à espera para ver se dizemos algo ou se falamos por eles”.

7. GARRAS DE LUKASHENKO CHEGAM A TÓQUIO

A rédea curta com que o regime do Presidente da Bielorrússia Aleksandr Lukashenko aborda a liberdade de expressão dentro de portas chegou a Tóquio. Krystsina Tsimanouskaya, uma velocista de 24 anos, foi levada contra a sua vontade, por membros do comité olímpico bielorrusso, para o aeroporto de Tóquio para ser repatriada, ainda antes de ter concluído o seu programa de provas.

A atleta acusara os treinadores de “negligência” por a terem convocado, à última hora e à sua revelia, para correr a estafeta dos 4×400 metros, em substituição de outra atleta que não tinha realizado os suficientes controlos antidoping. Tsimanouskaya iria disputar essa prova na véspera de correr os 200 metros, a corrida com que se tinha qualificado para Tóquio.

Krystsina Tsimanouskaya dirige-se para a porta de embarque, no aeroporto internacional de Narita, em Tóquio, onde apanhou um avião para a Áustria, de onde seguiu para a Polónia YUICHI YAMAZAKI / GETTY IMAGES

As críticas caíram mal em Minsk — onde um filho de Lukashenko preside ao comité olímpico bielorrusso —, que as considerou “antipatrióticas”. Tsimanouskaya recebeu guia de marcha para casa.

No aeroporto, após falar ao telefone com a avó que a alertou para as más reações, no país, às suas palavras, pediu ajuda à polícia — temendo ser presa no regresso a casa — e pediu asilo à Polónia. Crítico do regime bielorrusso, este país escancarou-lhe as portas.

8. ISRAEL E ARÁBIA SAUDITA CADA VEZ MAIS PRÓXIMOS

Entre os países árabes, deixou de haver unanimidade nos recintos desportivos quando pela frente surge um atleta de Israel. Se, no torneio masculino do judo, dois atletas oriundos de Estados árabes abandonaram a competição para não defrontarem um adversário judeu, no judo feminino fez-se história.

Tahani Alqahtani, da Arábia Saudita, e a israelita Raz Hershko combateram na categoria de mais de 78 kg. No tapete, a israelita levou a melhor sobre a saudita e, no cumprimento do princípio basilar do judo de respeito pelo adversário, no final, ambas se cumprimentaram.

De azul, a israelita Raz Hershko acaba de derrotar a saudita Tahani Alqahtani JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

Não haveria lugar a surpresa não fosse tratar-se de uma situação incomum entre desportistas dos dois países, que não têm relações diplomáticas entre si.

No último ano, dois países árabes da região do Golfo Pérsico (Emirados Árabes Unidos e Bahrain) reconheceram Israel a nível bilateral. A histórica decisão teve o acordo tácito do gigante árabe da região: a Arábia Saudita. Encontros como este, entre as duas judocas, provam que os dois países já estiveram muito mais distantes do que estão.

“A política ficou de fora da competição e no fim o desporto venceu”, afirmou a israelita, em entrevista ao diário saudita em língua inglesa “Arab News”, elogiando a adversária saudita. “Ela teve coragem de vir para a luta e fazer o que ama. Fizemos uma luta justa e no final apertámos as mãos. Correu tudo bem.”

9. SEM BOICOTES, MAS COM UMA AUSÊNCIA

Os Jogos de Tóquio não registaram boicotes políticos, mas nem todos os países marcaram presença. Mais de três meses antes do seu início, e quando soçobravam incertezas sobre a efetiva realização do evento, a Coreia do Norte anunciou que não participaria, para proteger os seus atletas da covid-19.

Pyongyang tem consistentemente negado a existência de casos positivos no país e quando, finalmente, admitiu um caso culpou a Coreia do Sul: o homem infetado era um norte-coreano que tinha desertado para o Sul e retornado clandestinamente, noticiou o Norte.

A decisão da Coreia do Norte — que participava nos Jogos ininterruptamente desde 1988, ano em que boicotou os de Seul — inviabilizou uma estratégia que marcou os Jogos que antecederam os de Tóquio — os Jogos de Inverno em PyongChang (Coreia do Sul), em 2018. Então, as duas Coreias desfilaram juntas na cerimónia de abertura e competiram integradas numa equipa só.

Em Tóquio, os sul-coreanos, como o atleta de taekwondo (à esquerda), competiram com a sua bandeira, e não unificados com a Coreia do Norte, como anteriormente JAVIER SORIANO / AFP / GETTY IMAGES

Essa aproximação conduziu a uma séria de cimeiras de alto nível: três entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos (2018-19) e outras tantas entre as duas Coreias (2018). Na ausência de resultados concretos, desde então, o processo de negociações, que visa, em última instância, a obtenção de um tratado de paz na Península Coreana está estagnado. Desta vez, o desporto não pôde dar uma ajuda para a retoma do diálogo.

10. NÃO É TEMPO DE CELEBRAÇÕES

Manda a tradição olímpica que seja o chefe de Estado do país organizador a declarar o início dos Jogos. Foi assim também no Japão, com o Imperador Naruhito, no trono desde 1 de maio de 2019, que só muito raramente surge em público.

Prevê a Carta Olímpica também, na sua Regra 55, que o monarca profira exatamente a seguinte frase: “Declaro abertos os Jogos de… (nome da cidade organizadora) celebrando… (número da Olimpíada) da era moderna”. Porém, em Tóquio, houve uma nuance. Em vez de “celebrando”, Naruhito disse “comemorando”, retirando carga festiva a um evento que se realizou em plena pandemia.

Naruhito, o discreto Imperador do Japão, assistiu à cerimónia de abertura dos Jogos, e declarou-os abertos ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

Em 1964, o seu avô Hirohito não teve necessidade de adaptar o texto à conjuntura, quando declarou abertos os Jogos de Tóquio. O evento simbolizou a reintegração do Japão no concerto internacional, após a derrota na II Guerra Mundial.

(FOTO PRINCIPAL O iraniano Saeid Davarpanah e o norte-americano Damian Lillard confraternizam após o jogo entre as duas seleções, no torneio de basquetebol dos Jogos de Tóquio GREGORY SHAMUS / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 9 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

O Euro não é só futebol: 10 momentos políticos durante a fase de grupos

Uma claque de ultras nas bancadas de Budapeste, jogadores ajoelhados em protestos contra o racismo, traumas de guerras recentes ou mais longínquas e, inevitavelmente, as dificuldades colocadas pela covid-19… O Euro ainda não vai a meio e já não faltam contendas políticas

1. MUITO MAIS DO QUE UMA CLAQUE

O aviso fora dado três dias antes de arrancar o Euro. Num jogo amigável, em Budapeste, entre a Hungria e a República da Irlanda, as bancadas da Puskás Arena reagiram mal ao protesto contra a discriminação racial realizado pelos jogadores irlandeses. Apuparam-nos todo o tempo que permaneceram de joelho no chão, antes de o jogo começar.

Alguns jogadores húngaros indignaram-se com a tomada de posição dos colegas irlandeses e apontaram para a palavra “Respeito”, impressa na manga dos equipamentos de todas as seleções que disputam o Euro. Ora, essa palavra é parte de uma campanha promovida pela própria UEFA, de combate… ao racismo.

A exceção húngara no Euro 2020 — é o único país organizador a permitir bancadas cheias — contribuiu para dar visibilidade a uma contestação organizada a estas intervenções cívicas nos relvados. Na Puskás Arena (68 mil lugares), onde a seleção da casa recebeu Portugal e a França (e onde estas duas seleções se defrontaram quarta-feira), centenas de pessoas com t-shirts pretas, apinhadas numa das bancadas, deram nas vistas neste papel. São uma espécie de claque oficial da seleção húngara e respondem pelo nome de Brigada dos Cárpatos.

Este grupo de ultras alia o entusiasmo pelo futebol à exaltação do nacionalismo. Engloba grupos radicais, como os Monstros Verdes, que apoiam o Ferencváros nas competições de clubes. Nas bancadas da Groupama Arena, em Budapeste, são frequentes os cânticos visando negros, ciganos, judeus e homossexuais, bem como a saudação nazi.

Criados na década de 1990, os Monstros definem-se como patriotas de extrema-direita e exibem, com orgulho, a sua opção pela violência, envolvem-se em lutas com grupos rivais e espancam ou esfaqueiam quando a sua equipa perde. Numa demonstração de força, muitas vezes, nas bancadas, alguns despem as t-shirts pretas para exibir os troncos musculados.

Membros da Brigada dos Cárpatos, na Puskás Arena, durante o Hungria-França ALEX PANTLING / GETTY IMAGES

Animados pela circunstância de, pela primeira vez, a Hungria acolher um evento da dimensão e com a projeção do Euro, a Brigada surge como grupo de apoio à seleção magiar mas também a Viktor Orbán, o primeiro-ministro conservador da Hungria, que tem no futebol o seu desporto favorito e no combate à homossexualidade uma prioridade política.

No exato dia em que Hungria e Portugal disputaram a sua primeira partida do Euro em Budapeste, o Parlamento húngaro aprovou legislação introduzida pelo partido de Orban (Fidesz — União Cívica Húngara), que proíbe a divulgação de conteúdos alusivos à homossexualidade e à mudança de sexo junto de menores de 18 anos. Algo que a Brigada dos Cárpatos não contesta.

2. A GUERRA DA JUGOSLÁVIA AINDA FERVE

O jogo estava longe de ser dos mais interessantes do Euro, mas a temperatura subiu já muito perto do fim quando, ao minuto 89, a Áustria confirmou a vitória por 3-1 com um derradeiro golo. O marcador, Marko Arnautovic, austríaco de ascendência sérvia, não se conteve nos festejos e provocou Ezgijan Alioski, adversário de ascendência albanesa. “Que a tua mãe albanesa se vá f****”, gritou na direção do macedónio.

Não contente, fez o gesto de OK com a mão, conotado com os movimentos supremacistas brancos. O insulto ressuscitou velhos fantasmas dos tempos da Jugoslávia, onde sérvios, macedónios, albaneses e muitos outros grupos étnicos simulavam coexistência pacífica dentro das mesmas fronteiras.

Após marcar à Macedónia do Norte, o austríaco Marko Arnautovic celebrou com um gesto supremacista, na direção de um rival DANIEL MIHAILESCU / AFP / GETTY IMAGES

No dia seguinte ao jogo, já com a controvérsia no domínio público, o austríaco pediu desculpa pelas suas “palavras a quente” e disse não ser racista. Mas a Federação de Futebol da Macedónia do Norte — que participou pela primeira vez na fase final de um Campeonato da Europa em 30 anos de independência — não o poupou e apelou à UEFA, que puniu Marko Arnautovic com um jogo de suspensão.

3. MODA UCRANIANA NÃO PEGA NA RÚSSIA

Ainda o apito não soara no Europeu e já o torneio estava envolvido numa contenda política. Nas malas para Amesterdão, onde assentou arraiais antes da primeira partida, a seleção da Ucrânia levou camisolas com um pormenor que desencadeou a fúria dos russos.

Discreto, a amarelo, o mesmo tom das camisolas, um mapa da Ucrânia tinha como parte integrante do território a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, bem como as regiões separatistas pró-russas de Donetsk e Lugansk, no leste do país. Os equipamentos tinham também bordados dois slogans nacionalistas: “Glória à Ucrânia!” e “Glória aos heróis!”.

O mapa da Ucrânia, com a Crimeia incluída, bordada num equipamento da seleção ucraniana que a UEFA não autorizou AFP / GETTY IMAGES

Andrii Pavelko, Presidente da federação ucraniana, disse que o equipamento simbolizava “a pátria única e indivisa” e inspiraria os jogadores a “lutarem em nome de toda a Ucrânia”. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia falou de uma medida “desesperada” e os protestos de Moscovo chegaram à UEFA, cujos estatutos proíbem mensagens políticas nos equipamentos dos atletas.

Pesados os prós e contras, o organismo que tutela o futebol europeu autorizou os ucranianos a vestirem a contestada camisola, com uma única exigência: a remoção da inscrição “Glória aos heróis!” da parte interior do colarinho, dada a sua conotação militar.

A sorte quis que as duas seleções não se defrontassem na fase de grupos, o que evitou males maiores. Já o mérito desportivo ditou que a Rússia fosse eliminada e a Ucrânia seguisse em frente, mas sem hipótese de ter que jogar em São Petersburgo…

4. UMA RIVALIDADE CENTENÁRIA QUE NÃO ESMORECE

Um França-Alemanha é daqueles jogos que não escapa a conotações políticas, nem mesmo quando é ‘a feijões’. Mais ainda quando, consumado o ‘Brexit’ — a saída do Reino Unido da União Europeia —, os dois países voltaram a ser os dois grandes polos políticos da comunidade.

Neste Europeu, após os gauleses vencerem os germânicos por 1-0, alguns franceses acenaram com essa rivalidade histórica. No dia seguinte ao jogo, o prestigiado jornal desportivo “L’Équipe” escreveu em manchete: “Como em 18”.

As reações à capa do jornal dividiram-se entre duas interpretações. Por um lado, houve quem pensasse tratar-se de uma referência ao Mundial da Rússia de 2018, que a França venceu e onde a Alemanha foi para casa de forma humilhante após a fase de grupos. Outra leitura socorre-se de uma memória mais longínqua: a da rendição alemã na Grande Guerra, em 1918.

“L’Équipe” foi acusado de mau gosto e de estar a ressuscitar fantasmas nacionalistas. No Twitter, o jornalista francês Samuel Etiene, da televisão pública France 3, desabafou: “A referência à Guerra 14-18 e aos seus milhões de mortos é forçosamente necessária após um França-Alemanha?”

Hans-Dieter Lucas, embaixador alemão em França, não atribuiu (ou não quis atribuir) o mesmo significado à opção editorial do “L’Équipe” e reagiu de forma surpreendente: “A memória do Campeonato do Mundo de 2018 continua dolorosa, mas felizmente os nossos amigos — Les Bleus — ajudaram-nos a sentir grandes emoções naquele ano. Viva a amizade franco-alemã”, escreveu no Twitter.

5. JOELHOS NO CHÃO, APUPOS NAS BANCADAS

Foram uma minoria entre as 24 equipas que disputaram a fase de grupos do Euro. Inglaterra, Escócia, País de Gales, Suíça e Bélgica não abdicaram de usar o palco mundial que é esta competição para afirmarem convicções e manifestarem-se contra o racismo, dobrando um joelho no chão antes do início do jogo.

Este gesto ‘fez escola’ após Colin Kaepernick, então jogador da liga de futebol americano, o ter feito durante a execução do hino norte-americano, em 2016, num protesto contra a violência policial sobre os afroamericanos. Desde então, tornou-se um símbolo do movimento Black Lives Matter.

Neste Euro, antes do Dinamarca-Bélgica, o belga Jason Denayer aliou o joelho no chão ao punho erguido, gesto popularizado nos Jogos Olímpicos da Cidade do México (1968), por dois atletas norte-americanos, num ato de solidariedade para com o movimento Black Power.

No Inglaterra-Escócia, ambas as equipas realizaram o protesto antes do início do jogo MIKE EGERTON / GETTY IMAGES

Amplamente executado na Premier League, primeira divisão inglesa, não causou surpresa que tanto ingleses como escoceses repetissem o protesto no jogo que os opôs. Outra partida onde houve unanimidade envolveu outra equipa britânica: o País de Gales, contra a Suíça.

O gesto não tem sido, porém, totalmente compreendido por todas as nacionalidades em presença neste Europeu. Quando a Bélgica defrontou a Rússia e os belgas se ajoelharem no relvado, as bancadas do Estádio de São Petersburgo vaiaram-nos.

6. PROTESTO SEGUIDO DE PEDIDO DE DESCULPAS

Não correu bem, e a Greenpeace acabou a pedir desculpa pela sua ação. Estava prestes a começar o Alemanha-França, em Munique, e um paraquedista irrompeu, desgovernado, no perímetro da Allianz Arena. Na tela, um apelo: “Abandonem o petróleo!”

Não era suposto que o ativista da Greenpeace aterrasse no relvado do Alemanha-França MARKUS GILLIAR / GETTY IMAGES

No Twitter, a organização ambientalista detalhou o propósito daquela iniciativa: “Ei, Volkswagen, é hora de abandonar o petróleo! Ativistas do Greenpeace protestam contra o patrocinador dos jogos na partida entre a Alemanha e a França e exigem: parem de vender carros a gasóleo e gasolina que prejudicam o ambiente!”.

Ao descer na direção do relvado, o ativista perdeu o controlo do paraquedas, passou rente à bancada e feriu dois adeptos que tiveram de ir para o hospital. Acusada de irresponsabilidade, a ONG esclareceu que o plano inicial era o ativista apenas sobrevoar o estádio e deixar cair uma bola de látex com uma mensagem.

7. BRAÇADEIRA PÕE MANUEL NEUER ‘NO BANCO DOS RÉUS’

Junho é, em todo o mundo, o Mês do Orgulho, a favor da igualdade de direitos para todas as orientações sexuais e identidades de género. Da baliza da seleção alemã, Manuel Neuer associou-se à campanha pela diversidade e contra o ódio, entrando em campo com a braçadeira de capitão tingida com as cores do arco-íris, bandeira da comunidade LGBTQI+.

A UEFA abriu uma investigação ao atleta, que depressa foi arquivada em função das inúmeras críticas que o procedimento desencadeou. Numa carta enviada à federação alemã, a UEFA lavou a face e considerou a braçadeira um símbolo coletivo a favor da diversidade e, portanto, de “uma boa causa”.

Manuel Neuer, após a vitória alemã sobre Portugal, com a faixa arco-íris no braço CHRISTIAN CHARISIUS / GETTY IMAGES

Este episódio teve um segundo capítulo. A autarquia de Munique demonstrou vontade de iluminar a Allianz Arena com as cores do arco-íris, por ocasião do jogo entre a Alemanha e a Hungria. A ação teria o intuito de “enviar um sinal de solidariedade visível” à comunidade gay da Hungria, país que recentemente introduziu legislação anti-LGBT+ e onde, dentro dos estádios, há manifestações racistas e homofóbicas.

Foi o que aconteceu na Puskás Arena, no jogo contra Portugal, onde das bancadas saíram cânticos de “Cristiano homossexual” e depois contra a França, altura em que Kylian Mbappé e Karim Benzema foram alvo de insultos racistas.

A UEFA decidiu investigar os incidentes no estádio de Budapeste, mas não autorizou a iluminação da Allianz Arena dado o seu “contexto político”. Sentindo-se no olho do furacão, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que considerara a ideia de iluminar o estádio “muito nociva e perigosa”, cancelou a sua presença no jogo de Munique, em que a Hungria bateu o pé à poderosa Alemanha (2-2).

8. RUSSOS E FINLANDESES, FRENTE A FRENTE DESTA VEZ NO FUTEBOL

À semelhança da Macedónia do Norte, também a Finlândia participa numa fase final do Euro pela primeira vez na história. Integrados no grupo B, os finlandeses disputaram dois jogos inesquecíveis: o primeiro contra a Dinamarca, tragicamente marcado pela paragem cardíaca de Christian Eriksen; o segundo, contra a Rússia, de quem a Finlândia se tornou grão-ducado no início do século XIX, só ascendendo à independência em 1917.

Para explicar o simbolismo desta partida — marcada para o Estádio de São Petersburgo —, crónicas de antecipação ao jogo recuperaram uma citação dita em 2007 pelo então ministro da Defesa da Finlândia, Jyri Häkämies, que afirmou que as três maiores ameaças à segurança do país eram: “Rússia, Rússia, Rússia”.

Quatro finlandeses para um russo, em São Petersburgo, no primeiro embate de sempre entre as duas seleções, numa fase final do Euro MAKSIM KONSTANTINOV / GETTY IMAGES

Neste Euro, o jogo entre as duas equipas resultou numa vitória da experiente Rússia — vencedora do torneio em 1960 (enquanto União Soviética) — sobre a caloira Finlândia. Mas fechadas as contas, os finlandeses terminaram em terceiro lugar no grupo e os russos em quarto, sem que nenhuma equipa tenha seguido em prova.

9. DRAGHI VS ERDOGAN, UM ITÁLIA-TURQUIA POR OUTROS MEIOS

O jogo que inaugurou o Euro, no Estádio Olímpico de Roma, teve implícito um diferendo político recente. No início de abril, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, foi das vozes mais agressivas para com o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, após o caso Sofagate — a humilhação da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, durante uma visita Ancara, sem lugar onde se sentar num encontro com Erdogan. Então, Draghi chamou “ditador” ao chefe de Estado turco.

Este acusou o italiano de “falta de tato” e “grosseria” e responsabilizou-o por minar a relação entre os dois países. “Ao fazer esta declaração, o homem chamado Draghi infelizmente fez cair o machado sobre o nosso relacionamento exatamente no momento em que esperávamos que as relações turco-italianas chegassem a bom porto.”

“Fair-play” entre os treinadores turco, Senol Gunes, e italiano, Roberto Mancini, um gesto impossível entre Erdogan e Draghi BURAK AKBULUT / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

Apesar de se ter deslocado ao Azerbaijão para ver a sua Turquia perder por 2-0 com o País de Gales, no Estádio Olímpico de Baku, Erdogan primou pela ausência nas duas partidas que a Turquia disputou no Olímpico de Roma, contra a Itália e a Suíça.

Se tivesse ido, no jogo contra a Squadra Azurra, teria à sua espera algo incómodo para digerir, tendo em conta as suas posições políticas: o quarto árbitro do jogo foi uma mulher, a francesa Stéphanie Frappart, a primeira a participar num Europeu masculino.

Em Itália, grupos de ativistas pressionaram para que a equipa de arbitragem fosse integralmente composta por mulheres, em resposta ao tratamento sexista de Ursula von der Leyen em Ancara e, sobretudo, da saída da Turquia da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, assinada em 2011… em Istambul.

10. COVID-19 ENTRA EM CAMPO

A pandemia adiou o Euro 2020 para 2021, mas mesmo assim o campeonato — que decorre em 11 cidades de 11 países — não está livre de sobressaltos. Terminada a fase de grupos, e com a covid-19 a manifestar-se pelo continente a diferentes velocidades, subsistem dúvidas em relação aos próximos locais dos jogos, designadamente os das meias-finais e o da final, agendados para o Estado de Wembley, em Londres.

Para entrar no Estádio de Wembley, para além do bilhete para o jogo, há que verificar também o estado dos espectadores em matéria de covid-19 LEON NEAL / GETTY IMAGES

No Reino Unido, o aumento do número de contágios, que levou o Governo britânico a adiar para 19 de julho a última fase do desconfinamento, e a prevalência da variante Delta (altamente contagiosa) levaram algumas vozes a defender o afastamento das meias-finais e finais de solo britânico.

O primeiro-ministro Boris Johnson já afirmou que “a saúde pública continua a ser a prioridade”. A UEFA preocupa-se em especial com a quarentena obrigatória de dez dias que Londres aplica a quem chega ao país vindo de territórios que não estão na lista verde (como é o caso de Portugal). Já foi isso que travou a realização em Inglaterra da final da Liga dos Campeões, entre duas equipas inglesas. Acabou por ser no Porto.

A regra pode inviabilizar a entrada no Reino Unido de largas centenas de convidados da organização, entre funcionários, patrocinadores e VIP, o que pode levar a UEFA a socorrer-se de um plano B para contornar esse obstáculo. Como cidade alternativa a acolher a final, pelas menores limitações à pandemia, a opção mais falada tem sido… Budapeste, a capital da Hungria.

(FOTO PRINCIPAL Jason Denayer, futebolista belga, alia o joelho no chão ao punho erguido, num protesto antirracista antes do jogo com a Dinamarca, em Copenhaga WOLFGANG RATTAY / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 24 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Coronavírus, um amigo para líderes políticos em apuros

Na Europa, o combate ao coronavírus catapultou alguns líderes políticos para níveis de popularidade impensáveis. Para outros, como no Reino Unido e Japão, a mudança de estratégia de combate à pandemia está a penalizar os índices de aprovação dos governantes. Já para Donald Trump, a pandemia é mais um palco para mostrar o seu lado combativo, a meio ano de tentar a reeleição nas eleições presidenciais marcadas para 3 de novembro

O novo coronavírus veio momentaneamente resolver problemas de popularidade a uns quantos líderes políticos. O caso mais flagrante talvez seja o do primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, que estava sob críticas por ter reagido tarde e de forma desastrada à época dos fogos florestais, que se tornou uma das mais devastadoras da história do país.

Uma sondagem realizada entre 22 e 25 de abril atribuiu ao conservador uma taxa de aprovação junto do eleitorado de 68%, a segunda mais alta para um chefe de Governo australiano desde 2008. E revelou que para 56% dos inquiridos, Morrison é o político certo à frente do Executivo, enquanto apenas 28% preferiam ter no cargo o trabalhista Anthony Albanese, líder da oposição.

No grupo dos líderes cuja popularidade cresceu na casa dos dois dígitos pela forma como estão a reagir ao coronavírus está o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau. Depois de um período de quarentena voluntária — determinado pelo teste positivo à covid-19 da sua mulher, após viagem a Londres —, o governante tem dado a cara todos os dias em briefings realizados em frente a sua casa, em Otava. E tem capitalizado com isso.

Segundo a última atualização do “Trudeau tracker”, do Instituto Angus Reid, o governante canadiano tinha, em abril, uma taxa de aprovação de 54%, quando em fevereiro estava nos 33%. Trudeau já não obtinha tão boa apreciação pública desde meados de 2017.

Há cerca de duas semanas, a revista norte-americana “The Atlantic” defendia que Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, de 39 anos, “pode ser a líder mais eficaz do planeta”. Numa consulta de opinião realizada entre 21 e 27 de abril — quando o país estava ainda em fase de confinamento —, a popularidade da trabalhista atingiu os 65%, contra escassos 7% do líder da oposição conservadora, Simon Bridges.

“O estilo de liderança de Jacinda Ardern, focado na empatia, não tem ressonância apenas junto do seu povo — está a colocar o país na rota do sucesso contra o coronavírus”, lê-se na revista “The Atlantic”.

António Costa entre os mais reconhecidos

Na Europa — que sucedeu à China como epicentro da pandemia —, o combate ao novo coronavírus alterou a perceção pública de muitos governantes, transformando-os em homens de ação, com reflexo nas taxas de popularidade.

Em Itália, o primeiro-ministro Giuseppe Conte chegou aos 71% de aprovação; na Holanda, Mark Rutte tem 75%; na Áustria o chanceler Sebastian Kurz atingiu os 77%; na Dinamarca e na Alemanha, respetivamente, Mette Frederiksen e Angela Merkel ficaram apenas a um ponto dos 80%.

Também em Portugal, a crise pandémica elevou o chefe de Governo ao patamar dos líderes mais reconhecidos. Segundo a sondagem de domingo do “Jornal de Notícias” e da TSF, “António Costa continua a bater recordes de aprovação”, com 74% de apreciações positivas à forma como tem gerido esta crise de saúde pública — um aumento de 14% em relação há um mês.

Ainda que com resultados mais modestos, há dirigentes para quem esta crise ajudou a estancar a queda de popularidade que vinham a sofrer. Com muita contestação nas ruas de França há mais de um ano — centrada no movimento dos coletes amarelos —, Emmanuel Macron tem travado um duplo combate: contra a covid-19 e contra as más sondagens, que não lhe permitem descolar do rótulo de líder impopular.

Em março — foi no dia 11 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia —, o Presidente francês subiu ao verde, com 51% de aprovação. Foi sol de pouca dura, já que em abril a sua popularidade voltou a descer, para os 42%.

Quem também não sai do vermelho é o britânico Boris Johnson, que já viveu o problema da covid-19 na primeira pessoa. Passou três noites nos cuidados intensivos, de um total de sete dias de internamento no hospital St. Thomas, em Londres.

O Reino Unido iniciou o combate à pandemia apostando na imunidade de grupo — permitindo de forma consciente que milhões de pessoas fossem infetadas —, mas os custos humanos que a estratégia teria obrigaram o Governo a uma mudança de rumo. A situação tarda em estabilizar e, hoje, é o quarto país com mais casos positivos e o segundo com mais vítimas mortais, mais de 32 mil. Isso traz custos políticos para Boris Johnson.

Segundo o barómetro YouGov, o primeiro-ministro britânico não vai além dos 34% de aprovação pública. Ainda assim, recorda o jornal “The Daily Express”, “embora o índice geral de aprovação pareça baixo, ainda assim é 9% mais popular do que Theresa May”, sua antecessora, à época em que deixou funções em Downing Street.

Shinzo Abe em dificuldades olímpicas

No Japão, um dos primeiros países a reportar casos de covid-19, que de início, resistiu a aplicar medidas de confinamento, Shinzo Abe tem acumulado dores de cabeça, em especial após o adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio para 2021. Esta segunda-feira, o primeiro-ministro prolongou o estado de emergência decretado para todos os municípios do país até 31 de maio, em virtude das dificuldades em controlar a pandemia.

Uma sondagem realizada para o jornal “Mainichi Shimbun”, em 18 e 19 de abril, revelou que apenas 39% dos inquiridos aprovam a gestão da crise do primeiro-ministro, uma queda de dez pontos comparativamente à auscultação de março.

Nos Estados Unidos, Donald Trump está “indo bem, apesar das notícias falsas!”, escreveu, no domingo passado, o Presidente na rede social Twitter.

Divulgada a 28 de abril, a última sondagem da Gallup — empresa experiente na quantificação da aprovação dos presidentes, desde 1938 — atribui a Trump 49% de aprovação e 47% de reprovação. Na pesquisa anterior, a 14 de abril, as percentagens eram, respetivamente, de 43% e 54%.

Donald Trump começou mal o combate ao coronavírus, tendo mesmo ignorado, ainda em janeiro, alertas feitos por um conselheiro sobre o novo vírus. Mas as acusações que faz à China, responsabilizando-a de não ter ter estancado a pandemia à nascença, bem como à Organização Mundial de Saúde, que diz ser cúmplice de Pequim, contribuem para uma imagem combativa. E que Trump quererá manter a escassos seis meses de tentar a reeleição.

(IMAGEM PXHERE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

A democracia vai sobreviver?

Dos ataques cibernéticos aos locais onde é regime estabelecido, à dificuldade em singrar nas paragens que ainda não a abraçaram, a democracia parece ameaçada neste final de década. Mas será que os reais perigos que enfrenta são aqueles de que mais se fala?

Demagogos, populistas, extremistas. Pós-verdade, factos alternativos, desconfiança dos políticos. Eis as ameaças que pesam sobre a democracia liberal, a tal que num período entre há 30 e 25 anos parecia rumar à conquista do mundo. Certo? Talvez não. “A pós-verdade não é necessariamente má”, afirma ao Expresso o académico americano Steve Fuller. Professor de Ciências Sociais na Universidade de Warwick, autor de “Post-Truth: Knowledge as a Power Game” (Anthem, 2018), compreende os receios de hoje relativos ao efeito da desinformação — mormente via redes sociais — sobre os processos democráticos, mas vê-los como “dores de crescimento” de uma nova forma de democracia.

“Com o aumento da educação e do acesso à internet há mais fontes de informação, e isso ajuda ao processo de democratização. Se queremos mais democracia, é de esperar que aceitemos que se questionem as autoridades estabelecidas. Levanta imensos problemas, mas sobretudo às elites, àqueles que no passado eram fontes de conhecimento reconhecidas”, diz Fuller, durante uma conferência sobre inteligência artificial, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Reconhece que “há muito mais material na internet” e que “pode ser usado para minar a democracia”, mas não crê que as pessoas olhem para ele cegamente e julga que há mais risco de esse material aprofundar crenças já estabelecidas, no efeito conhecido como “bolha de filtro”, do que propriamente para espalhar persuasão geral sobre algo que é falso. “Podemos estar num período de transição, mas à medida que se vai percebendo como a informação é propagada, é possível consumi-la com espírito crítico”, acrescenta. Comenta que os que tiverem más intenções não precisam sequer de grande sofisticação. “Os maiores ataques às democracias têm vindo da Rússia, que não é o país mais avançado do mundo em muitos outros aspetos, e cujos hackers podem causar danos a nível global, sem precisarem sequer de ser diretamente comandados por Vladimir Putin.”

Fuller preocupa-se com a desresponsabilização das redes sociais pelos conteúdos que nelas circulam. “O problema do Facebook é afirmar-se como plataforma neutra. Futuramente terá de decidir o que é ou não apropriado, o que é ou não falso, e não me parece que esteja preparado para isso.” Insiste, porém, que é mais democrático haver “produtores e consumidores de informação em números semelhantes, ao passo que outrora havia poucos emissores para muitos recetores, e estes não tinham possibilidade de dar feedback. Ora, o fluxo de informação deve ser livre”.

Quando o centro se esvazia

“Há um risco para a democracia quando se constroem identidades muito fortes e todo o sistema tende para a polarização”, alerta, em declarações ao Expresso, a politóloga holandesa Catherine De Vries. Impressionada com dados que indicam que “nos Estados Unidos um apoiante do Partido Democrata confia mais num criminoso do que em alguém do Partido Republicano, ou vice-versa”, vê nesta falta de confiança — que as redes sociais alimentam — um obstáculo a qualquer compromisso que permita aos países avançar. Exemplifica com as tensões que o processo de saída da União Europeia (UE) tem criado no Reino Unido, com subsequente degradação do discurso público e falsidades propaladas “de ambos os lados”.

Especialista em euroceticismo, De Vries indica “os vetos cruzados” como impedimento a que os cidadãos consigam perceber o bem que a UE lhes faz. “Isso muitas vezes não se vê”, afirma, citando pesquisas que sugerem que “os partidos nacionais não falam muito do contributo da UE, porque isso seria assumirem que não são tão poderosos”. Recorda que a maioria das forças políticas europeias nasceu a nível nacional, de fricções sociais e económicas não centradas na pertença ou não a um projeto comum. A seu ver, “a única forma de a UE amadurecer é debater-se a si mesma”. Se a maioria dos seus 500 mil cidadãos se sente oriundo do país onde vive ou onde nasceu, e não “cidadão da UE”, tal deve-se à falta de cariz emocional desta última. “Vê-se a UE como algo com quem se tem uma transação, aceita-se se de lá vierem coisas boas, mas a cada coisa má vem logo a tentação de deitar tudo fora”. E aí é preciso refletir: “Queremos mesmo tornar-nos paus-mandados da Rússia, da China ou dos Estados Unidos?”

Aponta como momento crítico para a democracia na UE a crise do euro, os “ralhetes” de Bruxelas às opções democráticas dos países (sobretudo dos intervencionados). Frisa, porém, que desde então vários partidos “do centrão” ganharam eleições — em Portugal, Áustria e Dinamarca, por exemplo — e nota que “os populistas definem-se mais por aquilo a que se opõem, sendo anti-imigração, anticapitalistas ou anti-UE, em vez de serem a favor de algo. “E o povo quer é ver os políticos a fornecerem soluções”, razão pela qual “muitos demagogos, ao chegarem ao poder, caem antes do fim do mandato”.

Direitos dos androides?

Se De Vries fala da democracia representativa, Fuller considera-a em “transição para a democracia direta” e acha que isso é bom: “A democracia representativa é, na melhor das hipóteses, o último nível do paternalismo.” O estudioso americano não sabe dizer como será isso viável à escala de um país ou mais, mas “é para aí que o mundo vai”. “Há visões que se dividem entre, por exemplo, pensar que Trump é uma aberração e que quando ele se for embora volta tudo ao normal, ou pensar que isto é o novo normal. Tendo a acreditar na segunda”, afirma.

Fuller admite que, embora a maioria das pessoas não veja no processamento de dados e na inteligência artificial ameaças à democracia, as diferenças no acesso à informação possam criar novas tensões. “Tal como o marxismo nasceu em reação à revolução industrial, podemos assistir a uma reação ao facto de o capitalismo não ter libertado toda a gente.”

A outra vertente da transformação tecnológica com grande impacto na forma como somos governados, prognostica, será a nível do trabalho. As máquinas já substituem muita gente em empregos administrativos médios, “incluindo tarefas de alguns médicos e advogados”, afirma Fuller, para quem o destino do ser humano é “passar a ser o valor acrescentado à máquina”. “Hoje podemos comprar uma mesa do IKEA, barata e produzida em série, ou uma bonita mesa sem igual que só um artesão sabe fazer”, ilustra.

Mas o docente tem visões mais desafiadoras no que diz respeito à presença da tecnologia nas nossas vidas, a curto e médio prazo. “A questão dos direitos dos androides e máquinas vai colocar-se”, antevê. “Não vão tomar conta do mundo”, descansa os que tiverem visões distópicas de uma Humanidade escrava. “Mas à medida que se integram na nossa vida e confiamos cada vez mais no juízo de robôs e outros aparelhos, os humanos tenderão a vê-los cada vez mais como iguais.” Fala da assistência a pessoas idosas e incapacitadas como campo onde esse avanço vai dar-se mais depressa. “Se calhar um dia acontece com as máquinas o que aconteceu com as raças, torna-se inaceitável discriminar.”

Água mole em pedra dura

Até aqui temos falado de problemas “do primeiro mundo”, isto é, do sentimento de que a democracia não é o “fim da História” que até Francis Fukuyama já renegou. Mas é bom ver, e este ano foi nisso generoso, que essa História não chega a todo o lado ao mesmo tempo nem da mesma forma. Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos.

Indo ao berço da nossa espécie, a maioria dos africanos quer democracia, mas não vive em regimes democráticos. África é um mosaico de 54 países que nem a divisão em sub-regiões — África Oriental, Ocidental, do Norte, Austral — permite homogeneizar. Tem uma história de democratização recente de 30 ou 40 anos, se a entendermos como processo que visa atingir a democracia. Esta deve implicar, em África, muito mais do que a importação do modelo ocidental e a sua análise não pode ignorar os séculos de escravatura e colonialismo de que o Ocidente foi o grande beneficiário.

Em abril de 2019 o mundo viu cair o regime autoritário do Sudão, chefiado por Omar Al-Bashir, seguindo-se o acordo entre o conselho militar de transição e os líderes da contestação, que permitiu pôr em funções um primeiro Governo a 5 de setembro. A sua principal tarefa é abrir caminho ao poder civil e a eleições democráticas no prazo de três anos. Há não muito tempo, o Sudão seria dos países menos prováveis para palco de protestos populares consequentes. A realidade provou, todavia, que não era impossível criar um horizonte político com vista a uma abertura democrática e civil, a reivindicação exigida pelos manifestantes.

Há cada vez mais atos eleitorais no continente africano. A Freedom House conta 21 democracias plenas ou quase entre os 54 países, enquanto uma perspetiva mais conservadora, como a da Economist Intelligence Unit — que avalia o estado da democracia em 167 Estados, classificando-os como “democracias plenas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários” —, considera que apenas nove governos africanos estão no primeiro grupo, o equivalente a 12% da população do continente. Um estudo do Institut for Security Studies conclui que a democracia plena teria um impacto muito positivo no desenvolvimento individual dos países, porém, a maioria dos Estados é pobre, a robustez das instituições fraca e os partidos no poder controlam, em muitos casos, os processos eleitorais, comprometendo os seus resultados.

Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos

Os parâmetros são díspares e as histórias nacionais são únicas. Depois de uma transição presidencial considerada democrática por todos os padrões, a Zâmbia acaba de legalizar a produção de marijuana para exportação para fins medicinais, ao mesmo tempo que pretende expulsar o embaixador dos Estados Unidos no país por defender os direitos de um casal homossexual, condenado a 15 anos de prisão. Yoweri Museveni liderou a libertação do Uganda, mas perpetua-se no poder há décadas com uma mão cada vez mais pesada sobre a oposição e os direitos cívicos dos cidadãos. Porém, é o país de África mais aberto ao acolhimento de migrantes numa região — Grandes Lagos — flagelada por conflitos endémicos.

Mesmo países como a África do Sul, que beneficiam de uma Constituição e de instituições democráticas sólidas e propositadamente projetadas para avançarem para longe do passado de abuso de que foram objeto pelo regime de Apartheid, extinto em 1994, veem-se enredados em situações de captura do Estado por grupos económicos que foram favorecidos pela conivência do ex-Presidente Jacob Zuma, entretanto deposto.

Ao contrário do que é muitas vezes defendido, os países têm os seus mecanismos internos e a capacidade de forjar alianças para o desenvolvimento. A crescente influência da China e, mais recentemente, da Rússia, no continente preocupa parceiros tradicionais, que equivalem, ainda em muitos casos, às zonas de influência pós-coloniais. O desafio do continente é o crescimento da sua população, que terá duplicado em 2050 relativamente ao presente para 2400 milhões de habitantes, metade dos quais com menos de 25 anos, segundo projeções das Nações Unidas. Em 2018, 60% destes jovens estavam desempregados.

O gigante chinês

Na Ásia, a democracia é ainda, na esmagadora maioria dos países, um projeto. No supracitado índice Economist de 2018, a maior parte dos países asiáticos integra o bloco dos regimes autoritários. Um caso extremo é a Coreia do Norte, país hermético, apostado na autossuficiência económica e liderado, desde há 70 anos, por uma mesma família — os Kim — ao estilo de uma república dinástica em que o poder vai passando de pai para filho. No polo oposto estão exceções como o Japão, a Coreia do Sul ou a Índia, com democracias consolidadas e funcionais, ainda que posicionados no grupo das “democracias imperfeitas”, onde está também Portugal (com nota baixa no critério da “participação política”).

Ao longo de 2019, uma importante batalha pela democracia tem-se travado no interior de um dos maiores gigantes asiáticos: a República Popular da China, onde no ano passado o “Pensamento de Xi Jinping”, o atual líder, ganhou estatuto de nova doutrina política oficial, inserida na Constituição. Essa batalha está a acontecer em Hong Kong, região autónoma especial cuja soberania transitou, em 1997, do Reino Unido para a China. Protestos populares de massas, que chegaram a envolver dois milhões de pessoas, estão nas ruas desde 9 de junho, sem indícios de que o fim esteja para breve.

Espoletada inicialmente pela contestação a uma polémica nova lei da extradição — que os locais sentiam como o estender do braço autoritário de Pequim sobre a autonomia de que ainda gozam —, a contestação evoluiu no sentido de reivindicações mais políticas. Entre as exigências que os incansáveis manifestantes querem ver concretizadas a curto prazo, para saírem das ruas, está a eleição do chefe do governo local por sufrágio direto e universal, o que não acontece atualmente.

A longo prazo, está em causa a manutenção das liberdades de que hoje usufruem e que não são possíveis na China continental, na secreta esperança de que, chegados a 2047 — fim do período de transição de 50 anos—– tenha germinado na China a semente democrática que em Hong Kong tanto querem preservar.

Tão ou mais persistentes do que os habitantes de Hong Kong, este ano, só os argelinos que têm saído às ruas todas as sextas-feiras desde 22 de fevereiro. Apesar de a chamada “primavera árabe”, em 2011, ter resultado num rotundo fracassado — a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen não trouxe a democracia —, na Argélia o povo parece apostado em repetir a fórmula. Já conseguiram impedir que o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive preso a uma cadeira de rodas, se recandidatasse a um quinto mandato. Mas insistem numa total substituição do regime, uma verdadeira revolução.

Os pedidos de “fim do regime” fazem-se ouvir noutros países árabes, como o Líbano e a Jordânia, onde queixas relativas à qualidade de vida das populações e à corrupção que domina o aparelho do Estado têm levado milhares às ruas. Noutras latitudes o povo também protesta — Irão, Iraque, Chile, Bolívia, ou Equador —, seja por motivos domésticos seja por causas transversais, como a mudança climática. Se há lição das décadas que vivemos desde o fim da Guerra Fria, é que a História teima em não acabar, seja nos locais onde julgámos a democracia indestrutível, seja onde não imaginávamos que pudesse germinar.

Texto escrito com Cristina Peres e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui