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Mohammad Mustafa: a tarefa impossível do novo primeiro-ministro palestiniano

O líder palestiniano Mahmud Abbas encarregou um economista e antigo quadro do Banco Mundial da formação de um novo governo palestiniano. Mahmud Abbas procura, assim, corresponder à pressão internacional para que injete sangue novo na Autoridade Palestiniana

Aos 88 anos, Mahmud Abbas, que sucedeu ao histórico Yasser Arafat, é o presidente da Autoridade Nacional Palestiniana (AP) há 19. Desde as eleições de 9 de janeiro de 2005 — em que foi desafiado pelo independente Mustafa Barghouti —, não mais o povo palestiniano teve uma palavra a dizer em relação à sua liderança política.

Abbas é criticado por se agarrar ao poder, rejeitando indefinidamente a realização de eleições, por ser cúmplice da ocupação israelita, ao participar em ações de coordenação com Israel, e por não revelar efetiva liderança, desde logo no contexto atual em que não é tido nem achado nas negociações internacionais em curso relativas à guerra em Gaza.

Pelo contrário, desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, Abbas tem pautado a sua reação grandemente pelo silêncio.

Economista respeitado

Esta quinta-feira, o Presidente Mahmud Abbas esboçou um movimento no sentido de corresponder aos apelos internacionais — e, concretamente, à pressão dos Estados Unidos — para que injete sangue novo na AP. Mahmud Abbas nomeou um novo primeiro-ministro da AP.

Mohammad Mustafa, o escolhido, é um conselheiro económico presidencial de longa data, com currículo e experiência reconhecidos nos corredores da alta finança mundial.

Nascido a 26 de agosto de 1954, na cidade de Tulkarem (Cisjordânia), Mohammad Mustafa formou-se em Engenharia Elétrica na Universidade de Bagdade (Iraque) e fez um doutoramento em Economia e Administração de Empresas na Universidade George Washington (Washington D.C., EUA).

Sem filiação partidária, já foi vice-primeiro-ministro em vários governos palestinianos e também ministro da Economia entre 2013 e 2015, quando ficou encarregue de tratar da reconstrução de Gaza após a guerra de 2014, que durou sete semanas e provocou mais de 2100 mortos entre os palestinianos.

“Infelizmente, vamos ter de voltar a fazê-lo, espero que com melhores resultados desta vez”, afirmou a 17 de janeiro passado, durante uma intervenção no Fórum Económico Mundial de Davos. “A catástrofe e o impacto humanitário desta guerra é muito maior do que em 2014. Não podemos evitar sentirmo-nos muito mal pelas famílias e pelo povo da Palestina pelas repetidas guerras contra eles. Espero que desta vez seja a última.”

Mustafa foi a Davos na qualidade de presidente do Fundo de Investimento da Palestina (FIP), que tem cerca de 1000 milhões de dólares (mais de 915 milhões de euros) em ativos e financia projetos em todo o território ocupado.

Goza de prestígio nessa qualidade, mas sobretudo em virtude de uma carreira de mais de 15 anos ao serviço do Banco Mundial.

No decreto presidencial em que encarregou Mohammad Mustafa de formar governo, divulgado pela agência noticiosa palestiniana Wafa, na quinta-feira, Mahmud Abbas atribuiu-lhe três frentes prioritárias:

  1. “Liderar, maximizar e coordenar os esforços de ajuda na Faixa de Gaza, e fazer a transição rápida e eficaz da ajuda humanitária necessária para a recuperação económica, e depois organizar a reconstrução do que foi destruído pela máquina de guerra e pela agressão nas províncias do sul e do norte. Estes esforços devem fazer parte de uma visão clara que estabeleça as bases de um Estado da Palestina institucionalmente independente, com infraestruturas e serviços.”
  2. “Desenvolver planos e mecanismos de aplicação para a reunificação das instituições nas regiões do país como uma única unidade geográfica, política, nacional e institucional.”
  3. “Continuar o processo de reforma em todos os domínios institucionais, de segurança, económicos, administrativos e ao nível das finanças públicas, visando um sistema de governação robusto e transparente, sujeito à responsabilização, o combate à corrupção e no garante de uma boa governação.”

Mustafa tem em mãos a formação de um governo tecnocrata na Cisjordânia ocupada que, potencialmente, possa administrar a Faixa de Gaza quando a guerra chegar ao fim. Este é o plano de Mahmud Abbas, que não contempla os obstáculos do lado de Israel, designadamente, a curto prazo, a opção Benjamin Netanyahu pela continuação da guerra e, a longo prazo, a rejeição de um Estado palestiniano.

Afirmou o primeiro-ministro de Israel em janeiro passado: “Não irei comprometer o controlo total da segurança israelita sobre todo o território a oeste da Jordânia”, ou seja, Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. “E isto é contrário a um Estado palestiniano.”

A guerra na Faixa de Gaza e a ocupação israelita da Cisjordânia relegaram a AP para a condição de líder do povo palestiniano mas apenas no papel. Em Gaza, até ao início da guerra, quem controlava o território era o Hamas. E na Cisjordânia, apenas cerca de 40% do território é, em teoria, governado total ou parcialmente pela AP.

Instituída pelos Acordos de Oslo de 1993 — os últimos tratados de paz celebrados entre israelitas e palestinianos —, a AP nasceu com a missão de funcionar como um governo provisório até à proclamação de um Estado palestiniano, a que se seguiria a eleição de órgãos políticos definitivos.

A ocupação da Palestina, a luta fratricida entre várias fações políticas — que acabaram com o islamita Hamas a governar um território e a secular Fatah (maioritária da AP) a controlar o outro —, bem como a própria liderança da AP (envelhecida, corrupta e desacreditada) minaram esse objetivo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

“Os iranianos não têm ilusões: este regime não consegue resolver os problemas que atormentam o país há 40 anos”

Dez meses após a morte da iraniana Mahsa Amini, os grandes protestos antirregime estão ausentes das ruas, mas as razões do descontentamento popular continuam vivas. Em entrevista ao Expresso, um membro da oposição no exílio diz que “o Irão é uma sociedade explosiva” e que “ninguém deve ficar surpreendido se acordar amanhã e testemunhar a erupção de outro levantamento por todo o país”

Logotipo do Conselho Nacional da Resistência do Irão (CNRI) WIKIMEDIA COMMONS

Fora do Irão, Paris é uma espécie de capital da oposição ao regime dos ayatollahs. É na principal cidade francesa que tem sede o Conselho Nacional da Resistência do Irão (CNRI), o maior grupo no exílio de opositores ao regime iraniano, que se assume como “a alternativa democrática viável” à República Islâmica.

Este ano, pela primeira vez, uma manifestação convocada pelo CNRI esteve na iminência de não sair à rua. Agendada para 1 de julho, foi inicialmente proibida pela polícia, que alegou haver risco de perturbação da ordem pública.

A organização recorreu à justiça, que foi célere a deliberar. A 24 horas da iniciativa, o Tribunal Administrativo de Paris fez saber que um protesto previsto para durar três horas e circunscrito à Praça Vauban não implicava riscos.

A proibição foi revertida e o Governo francês foi condenado a pagar €1500 aos organizadores. A manifestação saiu à rua e nela participaram dezenas de milhares de iranianos, vindos dos quatro cantos do mundo.

“A decisão era totalmente injustificada. Que me lembre, pelo menos nos últimos 20 anos, nunca tivemos uma manifestação em Paris proibida. Afinal, tudo é muito consistente com o princípio básico não apenas da lei francesa, mas da lei europeia, de liberdade de expressão e de reunião”, diz ao Expresso, de Paris, Ali Safavi, membro do CNRI.

Pressões ao telefone

Para este iraniano, que integra o CNRI há mais de 40 anos — o conselho foi fundado em 1981 —, a posição inicial das autoridades francesas foi uma capitulação face à pressão exercida a partir de Teerão. A 10 de junho, foi notícia uma conversa telefónica de 90 minutos entre o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o seu homólogo iraniano, Ebrahim Raisi.

“Uma questão levantada por Raisi foram as atividades de — nas palavras do regime iraniano — contrarrevolucionários em solo francês, ou seja, da oposição ao regime, não só do nosso movimento mas também de outros iranianos ativos. Em certo sentido, talvez se possa concluir que, após aquela discussão de 90 minutos, Raisi exigiu alguma concessão.”

Nos últimos anos, o diálogo entre o Irão e países ocidentais tem implícita uma tentativa de atar o regime de Teerão a um compromisso relativo ao seu programa nuclear. Com escritórios em grandes países europeus e nos Estados Unidos, foi a partir do seu gabinete na Avenida da Pensilvânia, a 200 metros da Casa Branca, que o CNRI revelou, em 2002, a existência de duas centrais nucleares secretas (em Natanz e Arak) e detalhou atividades nucleares do regime.

No caso específico de França, há um interesse maior do que o nuclear para que Paris continue a cortejar Teerão: quatro cidadãos franceses detidos em prisões iranianas. Usar estrangeiros detidos arbitrariamente no Irão e acusados de espionagem ou atividades subversivas para pressionar governos ocidentais é prática conhecida da República Islâmica.

Este ano, França já conseguiu libertar três cidadãos de um total de sete. Em fevereiro, saiu em liberdade a antropóloga franco-iraniana Fariba Adelkha, detida em 2019 e condenada a seis anos de prisão.

A dupla nacionalidade de pouco lhe valeu, já que a República Islâmica não reconhece esse estatuto e considera apenas a cidadania iraniana. “É deveras lamentável que a política europeia tenha ficado vítima de sequestro e chantagem”, comenta Ali Safavi.

Em maio, para conseguir fazer regressar a casa um trabalhador humanitário belga, detido em Teerão, Bruxelas libertou Asadollah Assadi, diplomata iraniano condenado a 20 anos de prisão por envolvimento numa tentativa frustrada de atentado à bomba em França.

“Estes governos deviam encarar estas tentativas do regime iraniano como sinal de fraqueza. Isso mostra quanto temem o nosso movimento, não apenas devido às campanhas políticas fora do Irão como pelo seu impacto e influência dentro do Irão“, diz Safavi.

“No final de contas, acreditamos que a mudança deve vir de dentro do Irão. Temos uma enorme rede nacional dentro do país que mantém acesa a chama da resistência, apesar de toda a repressão, execuções e supressão” de direitos e liberdades.

Ciclo bárbaro de violência

A mais recente vaga de repressão no Irão teve como faísca a morte de Mahsa Amini, há quase dez meses, na sequência de ferimentos sofridos às mãos da polícia da moralidade, por não levar o hijab (véu islâmico) corretamente colocado. Os grandes protestos antigovernamentais que se seguiram foram silenciados recorrendo a um ciclo bárbaro de detenções, tortura e execução de manifestantes.

Uma técnica persistente, nos últimos meses, que a oposição atribui ao regime, são envenenamentos deliberados com químicos em escolas femininas, que já contaminaram mais de 1200 estudantes. Teerão assegura que a sua investigação não detetou quaisquer envenenamentos e acusou “inimigos” estrangeiros e dissidentes de fomentarem o medo.

O alvo escolhido é fácil de justificar: foram as mulheres quem teve um papel de liderança nos protestos após a morte de Mahsa Amini, que se tornou um símbolo dentro e fora de portas.

Na semana passada, a equipa brasileira de futebol feminino, que vai disputar o Mundial da FIFA, chegou à Austrália a bordo de um charter pintado com imagens de Mahsa Amini e do futebolista Amir Nasr Azadani, condenado a 26 anos de prisão por um tribunal revolucionário, acusado do assassínio de três elementos das forças de segurança, durante os protestos.

https://twitter.com/AJE_Sport/status/1676289793364221952

“A revolta no Irão durou sete a oito meses. Foram mortos cerca de 750 manifestantes, incluindo 70 crianças, algumas com apenas nove anos, e 61 mulheres. Nos dias seguintes, o regime usou espingardas de chumbo para alvejar os rostos das mulheres, cegando-as ou procurando desfigurá-las. Depois foram os ataques químicos em escolas femininas por todo o Irão”, enumera Ali Safavi. “Tudo isto foram tentativas do regime para intimidar a população.”

Protestos continuam noutro formato

O opositor salienta a resiliência dos iranianos e garante que as ações de protesto não foram completamente silenciadas. “Os protestos continuaram, embora a forma tenha mudado. O regime fez de tudo para evitar a enxurrada de grandes aglomerações dos meses anteriores, mas não conseguiu reprimir por completo os protestos. Quando têm oportunidade, marcham em menor número. À noite, cantam das suas casas e telhados. Alguns jovens tornaram-se mais desafiadores e usam cocktails Molotov ou outros meios para atacar bases dos Guardas da Revolução e dos Basiji [grupo paramilitar]. Há muitos vídeos a sair do país que o mostram. E o regime é muito combativo.”

Segundo a organização Iran Human Rights, com sede na Noruega, no primeiro semestre deste ano, o Irão enforcou 354 pessoas. Esta segunda-feira, o rapper Toomaj Salehi foi condenado a seis anos e três meses de prisão. Detido em outubro passado por apoiar os protestos antigovernamentais, enfrentava acusações que podiam valer-lhe a pena de morte.

“Os problemas económicos, políticos e sociais no Irão, a falta de liberdade, a pressão sobre as mulheres, a inflação descontrolada, o desemprego crescente, a escassez de alimentos, a falta de água, a destruição do ambiente, a imensa corrupção governamental… enquanto estas questões não forem resolvidas, haverá protestos”, vaticina o iraniano, recordando que o Irão tem as quartas maiores reservas de petróleo do mundo e as segundas maiores de gás.

“Ninguém deve ficar surpreendido se acordar amanhã e testemunhar a erupção de outro levantamento por todo o país. Desde 2016, o Irão foi palco de seis grandes protestos — em 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2022. Se não fosse a covid-19, também teria havido protestos em 2021”, conclui Ali Safavi. “O Irão é uma sociedade explosiva. As pessoas não têm ilusões de que este regime consiga resolver os problemas que têm atormentado o país nos últimos 40 anos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui

De crise em crise na direção do abismo

Em 76 anos, nunca um primeiro-ministro concluiu um mandato. Mas o problema do país não é só político

Imran Khan (ao centro) é o politico mais popular do Paquistão GLOBELY NEWS

Há um ditado entre os estudiosos das relações internacionais segundo o qual o Paquistão não é bem um país, mas antes “um exército com um país dentro”. A hipérbole reflete o peso das Forças Armadas naquele Estado de 76 anos que já viveu longos períodos em ditadura militar. Mesmo quando não estão formalmente no poder, os generais são omnipresentes. “São atores de veto”, diz ao Expresso Daniel Pinéu, que viveu três anos e meio no Paquistão e lecionou na Universidade Quaid-i-Azam, em Islamabade.

“Os militares têm um império económico brutal. A quantidade de generais que são gestores de empresas públicas e municipais, reitores de universidades, donos de grandes negócios ou estão presentes nos órgãos diretivos de bancos é muito grande”, continua. “Os militares controlam e retiram daí grandes vantagens económicas. Os únicos sistemas de pensões ou de saúde que funcionam razoavelmente bem no país são os militares. Eles têm uma série de privilégios de que não vão abrir mão.”

Esta preponderância justifica muita da ingovernabilidade que já se tornou uma sina paquistanesa. Desde a independência (1947), o Paquistão já teve 31 primeiros-ministros e nenhum conseguiu levar um mandato de cinco anos até ao fim. “Torna-se praticamente impossível haver uma estratégia de médio ou longo prazo no país, seja do que for”, realça o analista.

A crise política atual opõe os militares a Imran Khan, um herói nacional (ver Perfil) que subiu ao poder em 2018 com a ajuda dos generais, que viram nele a esperança de um líder civil permeável às suas vontades. Não foi assim. “Khan quis autonomizar-se dos militares, ter uma agenda própria e opõe-se-lhes em questões específicas”, diz Pinéu. “Talvez achasse que tinha apoio popular suficiente e não precisasse deles.”

Khan foi afastado a 10 de abril de 2022, após perder uma moção de confiança no Parlamento. Há cerca de um mês, foi detido à chegada a um tribunal de Islamabade onde ia responder num caso de corrupção. Foi levado por dezenas de homens em traje antimotim, membros de um grupo paramilitar, os Punjab Rangers, que invadiram o tribunal para o deter.

Dias depois, o Supremo Tribunal declarou a sua detenção ilegal e libertou-o. Enfrenta ainda mais de 120 processos na justiça. “Todos os partidos políticos e o establishment querem que eu seja afastado em ano eleitoral”, disse recentemente. O Paquistão tem eleições gerais a 14 de outubro próximo. Até lá, este país de 230 milhões, com um arsenal nuclear, tem várias outras crises para esgrimir.

Crise económica: novo mercado para a Rússia

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo de sempre comprado pelo Paquistão à Rússia, tradicional aliada da sua arquirrival Índia. Para Moscovo, é um novo mercado que se abre ao arrepio das sanções internacionais decretadas após a invasão da Ucrânia; já para Islamabade é a oportunidade de comprar petróleo com desconto, em época de grave crise económica.

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo comprado à Rússia

Com uma inflação de 37,97% em maio e um crescimento anémico de 0,29% projetado para 2023, o Paquistão negoceia há meses com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o descongelamento de $1100 milhões (€1000 milhões) de um total de $6500 milhões (€6000 milhões) acordado em 2019.

Desde a década de 1950 que o Paquistão já celebrou 23 acordos de resgate com o FMI. “Nunca cumpriu nenhum”, diz Daniel Pinéu. “O país tem uma carga fiscal extraordinariamente baixa. Há poucas pessoas a pagar impostos e as que pagam, pagam poucos. O encaixe fiscal do Estado é extraordinariamente baixo.”

Crise ambiental: um terço do país submerso

Vulnerável a fortes sismos, o Paquistão tornou-se, no ano passado, uma tragédia a céu aberto após chuvas diluvianas originarem grandes inundações que submergiram cerca de um terço do país.

Esta catástrofe ambiental foi ruinosa para o sector agrícola, nomeadamente para a produção de trigo, um cereal que o Paquistão exportava e passou a importar. Esta escassez fez disparar alertas sobre a iminência de uma crise alimentar no país.

Esta semana, os alarmes soaram a propósito da passagem do ciclone “Biparjoy”, que obrigou à deslocação de milhares de pessoas nos territórios do Paquistão e da Índia.

Crise securitária: talibã bom e talibã mau

Após perder três guerras com a Índia (1947, 1965 e 1999), “os militares paquistaneses têm uma noção muito clara de que não conseguem ter uma vitória convencional contra a Índia”, diz o docente no Colégio Universitário de Amesterdão (Países Baixos). “Há duas coisas ao seu alcance: a política nuclear e a utilização de grupos terroristas que o serviço de informações militares do Estado (ISI) apoia, treina ou financia.”

O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante

Esta estratégia beneficia da prevalência da etnia pashtun (a dos talibãs) no Paquistão e no vizinho Afeganistão. “É talvez o maior grupo tribal do mundo, separado por uma fronteira muito ténue”, diz Pinéu. “O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante atrás de si. Se a Índia tomasse o Paquistão ou ganhasse uma guerra, conseguiria deslocar para dentro do Afeganistão uma parte importante das suas forças e atacar a partir daí.”

Mas a ambiguidade de Islamabade — entre potenciar ‘talibãs bons’, que colaboram com os objetivos do Estado, e reprimir ‘talibãs maus’, que agem por conta própria em função dos seus objetivos — acarreta riscos. O ex-primeiro-ministro Pervez Musharraf, um militar, sofreu dois atentados às mãos de grupos islamitas. “É uma política muito esquizofrénica, até para a política interna.”

Crise geopolítica: EUA cada vez mais distantes

A seguir ao 11 de Setembro, o Paquistão foi dos países que mais ajuda receberam dos Estados Unidos, no âmbito da luta contra o terror, na sua esmagadora maioria canalizada para o sector militar.

Neste momento, consumada a retirada norte-americana do Afeganistão, “o Paquistão é para os EUA essencialmente um país-problema”, conclui Daniel Pinéu. “Não tem nenhum interesse estratégico, exceto conter o poderio da China.”

PERFIL

IMRAN KHAN

Já era popular antes de ser político. Famoso jogador de críquete, capitaneou a equipa que deu ao Paquistão o seu primeiro título mundial, em 1992. Nascido em 1952, em Lahore, fundou o Movimento Paquistanês pela Justiça, em 1996. Foi primeiro-ministro entre 2018 e 2022. Conquistou eleitores fartos dos políticos tradicionais. Mas, como outros populistas, ofereceu poucas soluções para os problemas dos cidadãos.

VULNERABILIDADES

3
golpes militares já levaram o Paquistão a viver períodos em regime militar: 1958–1971, 1977–1988, 1999–2008

13
partidos formam a Aliança Democrática do Paquistão (criada em 2020), que sucedeu a Imran Khan no poder

37,97
por cento é a taxa de inflação registada no mês de maio, um novo máximo no país

23
programas de resgate foram celebrados, desde 1958, entre o Paquistão e o Fundo Monetário Internacional

121
casos na justiça visam Imran Khan, incluem corrupção, traição, blasfémia, sedição, terrorismo e incitamento

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Israel está a ferro e fogo. Oito perguntas e respostas para melhor entender esta crise

Milhares de israelitas estão nas ruas em cumprimento de uma greve geral que tem na origem um polémico processo de reforma judicial. Para esta segunda-feira à tarde está agendado um protesto de cariz contrário. Há receios de violência nas ruas de Israel

Protesto contra a reforma judicial, a 4 de março de 2023, junto ao centro Azrieli, em Telavive AMIR TERKEL / WIKIMEDIA COMMONS 

Que se passa em Israel?

As ruas de várias cidades estão tomadas por milhares de pessoas que cumprem, esta segunda-feira, um dia de greve geral. Decretada pelo Histadrut, o maior sindicato do país, contagiou outros sindicatos sectários e está a paralisar o país a vários níveis. O aeroporto Ben Gurion, em Telavive, foi encerrado, as universidades anunciaram uma greve por tempo indeterminado, a cadeia de supermercados Big e os restaurantes McDonald’s fecharam portas. São apenas alguns exemplos. Escreve o jornal digital “The Times of Israel” que a embaixada israelita em Nova Iorque também aderiu.

Qual é a origem desta greve?

Este protesto é o mais recente recurso a que recorreu a população de Israel para se manifestar contra um polémico processo legislativo que decorre há mais de três meses — a reforma judicial promovida por Benjamin Netanyahu. Os protestos redobraram de intensidade este fim de semana, em virtude de uma decisão política tomada pelo primeiro-ministro.

Que decisão foi essa?

Domingo à noite, Netanyahu demitiu o ministro da Defesa, Yoav Gallant, membro do seu partido (Likud, direita), horas após este ter defendido publicamente a suspensão da reforma. “A segurança do Estado de Israel sempre foi e sempre será a missão da minha vida”, reagiu Gallant nas redes sociais. Não faltam alertas de que esta polémica demissão pode abrir fendas no aparelho de segurança do país, designadamente levar militares ou outros profissionais de sectores sensíveis a recusarem-se a desempenhar as suas funções. Já esta segunda-feira, o Presidente Isaac Herzog apelou a Netanyahu para que ponha fim “de imediato” à reforma que está a dividir o país.

Como reagiram ‘as ruas’ à demissão?

Os protestos intensificaram-se e poderão resultar em violência. Para esta segunda-feira, às 18h locais (17h em Portugal Continental), em Jerusalém, está marcado um protesto de cariz contrário, de apoio ao primeiro-ministro e à reforma judicial. Segundo o diário “Haaretz”, nas redes sociais grupos de extrema-direita estão a apelar ao uso de “explosivos, armas e facas” no protesto de segunda-feira à tarde.

Por que razão a reforma judicial é polémica?

Basicamente, ameaça a separação de poderes, subordinando o poder judicial ao poder executivo. Por exemplo, o Governo passaria a nomear os juízes do Supremo Tribunal, que é, atualmente, o garante do cumprimento das Leis Básicas de Israel (o correspondente a uma Constituição, que o país não tem) e o único contrapeso ao poder executivo.

Netanyahu insiste nessa reforma por alguma razão especial?

Essencialmente por razões pessoais. O chefe do Executivo está a ser julgado por corrupção, em vários processos. Os processos na justiça não impedem que continue a exercer a função de primeiro-ministro. Está no cargo desde dezembro passado, à frente de uma coligação do Likud com a extrema-direita e os partidos de judeus ultraortodoxos.

Que margem de manobra tem o primeiro-ministro?

As últimas notícias dão conta de que deverá ceder às ruas e anunciar a suspensão do processo de reforma judicial. Mas isso poderá ter custos políticos. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, o líder de um partido extremista, cujo resultado nas últimas eleições permitiu que Netanyahu regressasse ao poder, ameaçou demitir-se do Governo. Se Ben-Gvir arrastar com ele o apoio do seu partido a Netanyahu, o Governo pode cair.

Como está a relação de forças no Parlamento?

Netanyahu conta com o apoio de 64 deputados num total de 120. Além do Likud, partido que lidera e que é uma formação histórica desde a fundação de Israel, integram a coligação de governo partidos religiosos ultraortodoxos (Judaísmo Unido da Torá, Shas) e formações de extrema-direita (Sionismo Religioso, Força Judaica e Noam). A atual crise em Israel é também um braço de ferro entre uma população que, dizem as estatísticas, continua a ser maioritariamente laica e um Governo cada vez mais refém do fundamentalismo judaico e sionista.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Netanyahu adiou polémica reforma judicial “para dar uma oportunidade real ao diálogo” e “evitar a guerra civil”

No fim de um dia de greve geral “histórica” em Israel, em protesto contra a proposta de reforma judicial de iniciativa do governo, o primeiro-ministro de Israel adiou a discussão da nova legislação para daqui a um mês, sensivelmente. “Quando há uma opção para evitar a guerra civil por meio do diálogo, eu reservo um tempo para o diálogo”, disse Netanyahu

Manifestação contra os planos do governo de Benjamin Netanyahu padra a Justiça, a 26 de março de 2023, em Telavive OREN ROZEN / WIKIMEDIA COMMONS

No término de um dia de de greve geral “histórica”, como o qualificou o Histadrut, o grande sindicato israelita, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu dirigiu-se ao país para comunicar o adiamento das leituras finais de uma polémica reforma judicial que está em discussão no Parlamento (Knesset), “para dar uma oportunidade real ao diálogo”.

“Quando há uma opção para evitar a guerra civil por meio do diálogo, eu reservo um tempo para o diálogo.”

Num discurso transmitido pela televisão, Netanyahu disse estar “consciente das tensões” e que “está a ouvir o povo”. “Bibi”, como também é conhecido, disse não estar “disposto a aceitar uma minoria de extremistas desejosa de espartilhar o nosso país em pedaços e a guiar-nos para a guerra civil, apelando à recusa do serviço militar, o que é um crime terrível”.

O primeiro-ministro particularizou um assunto sensível para a segurança de Israel: a recusa de alguns reservistas em participar em exercícios militares, como forma de protesto. “O Estado de Israel não pode prosseguir com pessoas que se recusam a servir no exército. Recusar é o fim do nosso país”, disse.

Netanyahu, que é o israelita que mais tempo desempenhou o cargo de primeiro-ministro, disse que vai “revirar todas as pedras até encontrar uma solução”.

Saudações e reservas

A intervenção de Netanyahu gerou consequências imediatas, com o Histadrut a cancelar a greve geral que tinha convocado para esta terça-feira.

No domínio político, o Presidente Isaac Herzog saudou a interrupção da revisão judicial como “a coisa certa a fazer”. “Agora é a hora de um diálogo honesto e que baixe as chamas.”

O líder da oposição, Yair Lapid, disse estar disponível para “entrar em discussões” com a coligação governamental, mas apenas se “a legislação for realmente interrompida”. Sobram muitas reservas em Israel.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2023. Pode ser consultado aqui