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Perfil de Itamar Ben-Gvir, o extremista que devolveu o poder a Netanyahu

Nasceu numa família secular, mas a Intifada radicalizou-o. O ódio aos árabes tornou o seu partido a terceira força de Israel

Itamar Ben-Gvir WIKIMEDIA COMMONS

Há que recuar uns bons 30 anos para se vislumbrar um raio de esperança no conflito entre israelitas e palestinianos. Em 1993, os Acordos de Oslo prometeram a paz, mas esse desejo não foi unânime. Dois anos depois do histórico aperto de mão entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, um jovem israelita era a voz da oposição e surgia, numa reportagem televisiva, a mostrar o símbolo de um Cadillac arrancado à respetiva viatura: “Chegámos ao carro dele, vamos chegar a ele também.”

“Ele” era o primeiro-ministro de Israel. Semanas depois, Rabin seria assassinado por um judeu radical, dentro do carro, após participar num comício pela paz em Telavive. Já o jovem que vaticinara o massacre de Rabin era Itamar Ben-Gvir, que na passada terça-feira foi o grande vencedor das eleições legislativas.

Líder do Poder Judaico, formação de extrema-direita que concorreu integrada na lista do Partido Sionista Religioso, Ben-Gvir foi o motor do forte crescimento deste último, que passou de seis para 14 deputados, tornando-se a terceira maior bancada do Parlamento (Knesset). “Ainda não sou primeiro-ministro”, afirmou na noite eleitoral, em reação à votação histórica na sua aliança. “Mas trabalharei para todo o Israel, até para aqueles que me odeiam.”

No poder e no tribunal

Ben-Gvir é deputado desde 2021, quando Israel levava já dois anos de instabilidade política, com sucessivas eleições a ditarem frágeis Governos. O crescimento do Partido Sionista Religioso permitiu desbloquear o impasse a favor da direita e consagrou o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu (Likud, partido mais votado), que está a ser julgado por corrupção. Juntam-se-lhe os partidos ultraortodoxos Shas e Judaísmo Unido da Torá.

A ascensão do partido extremista de Ben-Gvir, que advoga a supremacia judaica num país onde 20% da população é árabe, desencadeou alertas de que um ‘Israel judaico’ está a superiorizar-se ao ‘Israel democrático’. Para esta perceção muito contribui o percurso pessoal e político do chefe.

Nascido a 6 de maio de 1976 em Mevasseret Zion, subúrbio de Jerusalém, numa família secular com origem no Curdistão iraquiano, Ben-Gvir radicalizou-se em tenra idade, com a eclosão da primeira Intifada palestiniana, em 1987. “Houve um assassínio, depois outro, e depois outro, e isso fez-me começar a pensar sobre como resolver a situação”, contou.

“Morte aos árabes”

Aderiu a um movimento associado ao partido ultranacionalista Moledet, que encorajava a “transferência” dos árabes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para outros países da região. O caráter voluntário do processo não agradou a Ben-Gvir, que desertou e aderiu ao Kach, um partido racista fundado pelo rabino norte-americano Meir Kahane, que viria a ser rotulado de organização terrorista em Israel.

Hoje, o Poder Judaico, de Ben-Gvir, define-se como partido kahanista e antiárabe. Pugna pela “expulsão” dos israelitas árabes que não demonstrem lealdade ao país. Terça-feira, apoiantes eufóricos com os votos recebidos fizeram a festa gritando “morte aos árabes” e “morte aos terroristas”, que na sua mundividência são sinónimos.

Em defesa de terroristas

A militância extremista fez com que Ben-Gvir fosse dispensado do serviço militar aos 18 anos. Levou-o também ao banco dos réus dezenas de vezes. Em 2007 foi condenado por incitamento ao racismo. O contacto com a justiça despertou-lhe o interesse por estudar Direito. Como advogado, notabilizou-se na defesa de judeus acusados de terrorismo e crimes de ódio.

Na prática, Ben-Gvir é um ‘soldado’ ao serviço da ocupação israelita da Palestina. Vive no colonato de Kiryat Arba, na sempre tensa Hebron (Cisjordânia), com a mulher e cinco filhos. Pendurada em casa chegou a existir uma foto de Baruch Goldstein, o colono que, em 1994, matou a tiro 29 muçulmanos que oravam no Túmulo dos Patriarcas, em Hebron.

Em 2020 Ben-Gvir retirou a foto para facilitar o diálogo com partidos da direita, renitentes em normalizar a participação política de um homem que glorificava a matança de inocentes. “Tirei a foto de Goldstein para impedir um Governo de esquerda”, diria.

No início deste ano passou a andar com segurança reforçada. Alvo de ameaças de morte, nunca se privou de provocar, como quando visitou o bairro árabe de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, em contexto de violência entre árabes e judeus. E passeou-se na Esplanada das Mesquitas enquanto Israel atacava a Faixa de Gaza.

A eleição desta semana revelou que o ódio que Ben-Gvir irradia lhe vale muita popularidade.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Muqtada al-Sadr anunciou a sua retirada da política. Facto ou ficção?

Quase onze meses depois das legislativas, o Iraque continua sem Governo. Um dos principais protagonistas políticos defendia, até agora, a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições. Esta segunda-feira, anunciou que sai da política. Já há apoiantes revoltados e multiplicam-se receios do regresso aos dias da violência

Vencedor das últimas eleições legislativas no Iraque, mas sem apoios parlamentares suficientes para fazer passar a sua solução de Governo, o poderoso líder xiita Muqtada al-Sadr anunciou, esta segunda-feira, que vai abandonar a política.

“Decidi não me intrometer nos assuntos políticos. Portanto, anuncio agora a minha reforma definitiva”, escreveu, no Twitter, o clérigo que chefia uma poderosa fação xiita, a sensibilidade islâmica maioritária entre a população do Iraque.

De Bagdade, a agência Reuters escreveu que a decisão “provocou protestos dos seus seguidores”, muitos deles envolvidos, desde há semanas, num protesto permanente (sit-in) nos jardins do Parlamento, e que “levantou receios de mais instabilidade”.

Também presente na capital iraquiana, a cadeia televisiva Al-Jazeera testemunhou, esta segunda-feira, que “mais apoiantes de Al-Sadr juntaram-se aos que têm participado no sit-in junto ao Parlamento, originando receios de uma escalada que possa desestabilizar o país ainda mais”.

Um grupo de sadristas invadiu mesmo o Palácio Republicano e afirmou o seu poder lançando-se à piscina. À semelhança do Parlamento, este edifício cerimonial situa-se na chamada Zona Verde, a área com mais segurança de Bagdade.

Respondendo à agitação e aos alertas de violência iminente, o Exército iraquiano declarou um recolher obrigatório a partir das 15h30 desta segunda-feira.

A decisão de Muqtada al-Sadr tem como cenário uma grave crise política que tem paralisado o Iraque há quase um ano. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro de 2021. O Movimento Sadrista (de Muqtada) foi a formação mais votada, mas no Parlamento os diferentes partidos políticos não conseguiram acordar a formação de um novo Executivo.

Após ordenar aos seus deputados que se demitissem e incitar os seus seguidores a invadirem o Parlamento — a 30 de julho ocuparam-no e posteriormente montaram tendas nos jardins —, Al-Sadr apelou à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas.

Sábado passado, refez a estratégia. Defendeu que, para se resolver a crise, “mais importante” do que dissolver o Parlamento e ir de novo a votos é que “todos os partidos e personalidades que têm integrado o processo político” desde a invasão norte-americana do Iraque e a queda de Saddam Hussein, em 2003, “deixem de participar”. E esclareceu, para que não restassem dúvidas: “Isso inclui o Movimento Sadrista”.

Esta segunda-feira, paralelamente à sua retirada da política, o clérigo anunciou que “todas as instituições” ligadas ao Movimento Sadrista serão encerradas. Haverá uma exceção: o mausoléu do pai, o Grande Ayatollah Muhammad Sadiq al-Sadr, importante líder religioso xiita, assassinado a tiro em 1999, mandava ainda no país o sunita Saddam Hussein.

Muqtada al-Sadr integra uma linhagem política importante no Iraque. Aos 48 anos de vida, é já um líder experiente, com provas dadas à frente de uma milícia numerosa na luta contra as tropas dos Estados Unidos e as forças iraquianas que pactuaram com a ocupação estrangeira.

Nos corredores políticos, o clérigo é tido como figura camaleónica, que toma decisões e depois reverte-as. Os próximos dias permitirão perceber se o tweet de Al-Sadr é para valer ou se é uma forma de fazer pressão sobre as formações políticas rivais.

(FOTO Muqtada al-Sadr e o Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Iraque sem governo há dez meses porque os xiitas não se entendem com… os xiitas

Depois de invadirem o Parlamento, centenas de iraquianos estão agora acampados na praça em frente ao edifício, sem prazo para dali saírem. É a imagem mais ilustrativa do caos que tomou conta da política iraquiana. O país não consegue formar governo e, nos corredores, trava-se um braço de ferro entre duas formações xiitas. Um posicionamento demarca-as de forma clara: a relação com o Irão

A data da celebração é variável já que as festividades islâmicas regem-se pelo calendário lunar. Este ano, a festa religiosa mais importante para os muçulmanos de credo xiita celebrou-se na segunda-feira. A Ashura assinala o martírio de Hussein, neto do profeta Maomé, no ano de 680 a.C., na batalha de Kerbala, hoje território iraquiano.

Esta solenidade, que não é observada pelo ramo maioritário entre os muçulmanos, os sunitas, inclui um ritual público em que homens de todas as idades batem com espadas e punhais contra o couro cabeludo. Tomados por um sentimento de culpa, outros açoitam-se com correntes. Em minutos, ficam com os corpos cobertos de sangue, num ato de autoflagelação com que procuram reviver o sofrimento do imã Hussein.

No Iraque, este ano, o rito foi cumprido com o mesmo fervor de sempre, ainda que, a nível político, a união entre os xiitas — a maior fatia da população — não seja presentemente uma realidade. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro, os xiitas venceram de forma inequívoca, mas não conseguem formar governo.

O escrutínio ditou que os 329 assentos do Conselho dos Representantes (como se chama o Parlamento iraquiano) fossem repartidos por 33 formações políticas (43 lugares ficaram para independentes). O Movimento Sadrista, um partido xiita, foi o mais votado, com 10% dos votos e 73 deputados eleitos.

Apesar de terem a bancada mais numerosa, os sadristas não angariaram apoio para fazer aprovar um governo. Optaram então por uma demonstração de força e, a 12 de junho, demitiram-se da assembleia, abrindo caminho a uma aliança xiita rival, o bloco maioritário seguinte. O Quadro de Coordenação, como se chama, avançou com o seu nome para a chefia do governo: Mohammed al-Sudani, um antigo ministro dos Direitos Humanos. No dia em que ia ser votado (30 de julho), centenas de sadristas irromperam pelo Parlamento e tomaram as cadeiras dos deputados.

A facilidade com que tudo aconteceu não deixa de ser surpreendente e indicia infiltrações em ministérios sensíveis como o da Defesa e do Interior. O Parlamento situa-se na Zona Verde de Bagdade, um perímetro com segurança reforçada, delimitado à época da presença das tropas internacionais. Ali ficam também os edifícios do Governo e as embaixadas.

A intenção dos sadristas ficou clara desde a primeira hora: ali ficar num protesto permanente (sit-in, em inglês) até serem atendidas as suas exigências. “Eles querem fazer uma grande pressão sobre os seus opositores (do Quadro de Coordenação) para obterem ganhos. Querem manter o seu primeiro-ministro (Mustafa Al-Kadhimi), a comissão de eleições e a lei eleitoral”, diz ao Expresso o analista político iraquiano Ahmad Rushdi. “Querem ir para eleições antecipadas e ganhar mais de 100 lugares desta vez.”

Por ordem da liderança, os sadristas acabaram por evacuar o hemiciclo e transferiram o protesto para a praça em frente ao Parlamento, onde continuam, com tendas montadas. “Não é a primeira vez que eles invadem o prédio do Parlamento, e certamente não é a primeira vez que testemunhamos um movimento político a contornar os postos de segurança governamentais em direção às instalações governamentais para enviar uma mensagem”, acrescentou ao Expresso Zeidon Alkinani, do Centro Árabe de Washington DC.

Para este analista, a tomada do Parlamento por apoiantes de Muqtada al-Sadr motiva dois tipos de especulações. Por um lado, uma oposição ao candidato a primeiro-ministro do Quadro de Coordenação. Por outro, “pode ser que o Movimento Sadrista esteja a orquestrar uma exibição de poder e de rebeldia, a pensar no previsível papel de oposição parlamentar se o Quadro de Coordenação conseguir aprovar Al-Sudani”. Para Alkinani, este parece ser o cenário com mais força para vingar.

Neste braço de ferro entre fações xiitas, há um posicionamento que as demarca de forma clara: a relação com o Irão, o gigante xiita do Médio Oriente.

Muqtada al-Sadr, um clérigo de 48 anos, sempre se distinguiu por se opor à interferência estrangeira no Iraque. Primeiro, enquanto jovem líder rebelde, combateu a ocupação norte-americana do país (2003-2011) à frente de uma poderosa milícia, o Exército de Mahdi. Hoje, defende um governo que não seja “nem ocidental, nem oriental” e opõe-se frontalmente à influência do Irão no país. Como surgiu?

A guerra no Iraque e a morte de Saddam Hussein (que pertencia à minoria sunita e governava de forma ditatorial, reprimindo a maioria xiita) escancararam as portas iraquianas aos ayatollahs iranianos. Os dois países têm uma população maioritariamente xiita — 60% no Iraque e mais de 90% no Irão — e partilham cerca de 1600 quilómetros de fronteira. Para muitos iraquianos, Al-Sadr é a esperança de que o seu país seja expurgado dessa ascendência.

No espectro oposto, o Quadro de Coordenação integra partidos alinhados com os interesses da República Islâmica. A principal figura desta formação é o antigo primeiro-ministro Nouri al-Maliki (xiita), um rival pessoal de Al-Sadr.

Iraquianos nas ruas

Este xadrez torna o Iraque um país vulnerável às disputas geopolíticas na região. “A rede por procuração da influência iraniana no Iraque não é segredo. No entanto, não podemos negar que essa influência tem diminuído significativamente”, diz Zeidon Alkinani.

“Teerão já chegou a promover a unidade do campo político xiita (desde que alinhado com a sua agenda). Hoje, não pode sequer garantir a influência contínua sobre os seus aliados xiitas remanescentes. Ser totalmente dependente da influência iraniana não atrai muitos políticos xiitas pró-Irão, especialmente após a eclosão do movimento de protesto de outubro de 2019, que teve uma forte retórica contra a intervenção iraniana nas províncias iraquianas de maioria xiita.”

A mais recente crise política no Iraque vem culminar um período de contestação popular que explodiu a 1 de outubro de 2019 com manifestações, marchas, protestos permanentes e ações de desobediência civil, muitas vezes combinado nas redes sociais, contra a corrupção, o desemprego, a ineficácia dos serviços públicos, o sectarismo na política e também o intervencionismo iraniano.

Muqtada Al-Sadr tem repetido o seu compromisso com um “governo nacional maioritário” representativo também de sunitas e curdos, as outras duas grandes fações étnico-religiosas, mas marginalizando os rivais xiitas do Quadro de Coordenação.

Contudo, arrastar sunitas e curdos para uma possível solução de governo poderá ter consequências indesejadas. “Existem divisões intra-elitistas dentro desses grupos também”, explica Zeidon Alkinani. “Nos primeiros momentos das divergências entre o Movimento Sadrista e o Quadro de Coordenação, que levaram a este impasse político que dura há dez meses, o Partido Democrático do Curdistão ficou do lado dos sadristas, enquanto a União Patriótica do Curdistão alinhou pelo Quadro.”

Entre os sunitas, também há simpatias pelos dois campos políticos xiitas, que, neste contexto, mais parecem transformados em duas frentes. “As formações pró-sadristas [entre os curdos e os sunitas] também querem eleições antecipadas”, acrescenta Ahmed Rushdi.

“Agora que os sadristas se demitiram do Parlamento e o Quadro tenta formar governo — para além do sit-in e dos distúrbios à ordem pública —, observamos uma intensa rivalidade política intra-xiita que está muito próxima do conflito. Os líderes políticos sunitas e curdos terão apenas de sugerir o diálogo e a mediação para que sobrevivam aos seus próprios estatutos frágeis no sistema político.”

Num país marcadamente confessional — onde está estabelecido que o primeiro-ministro é um xiita, o Presidente do país um curdo e o presidente do Parlamento um sunita —, a identidade parece estar em perda no terreno da política.

(IMAGEM Bandeira do Iraque. Lê-se, em árabe: “Allah é o maior” WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Israel vai a votos pela quinta vez em menos de quatro anos. Porquê tanta instabilidade?

A estabilidade política e governativa tornou-se um grande desafio em Israel. O país vai para as quintas eleições legislativas em menos de quatro anos e as sondagens dizem que ainda não será desta que um partido conseguirá formar uma coligação governativa estável. “Temos de alterar o grau de facilidade com que o Parlamento se dissolve”, diz um investigador israelita

Sete líderes partidários a votos nas eleições legislativas de 1 de novembro de 2022 ISRAEL POLICY FORUM

Nas últimas semanas, as autoridades de Israel têm multiplicado alertas de perigo destinados aos seus nacionais que planeiem viajar ou já estejam em território da Turquia. Na origem dos avisos estão informações que dão conta de operacionais iranianos envolvidos no planeamento de ataques contra cidadãos israelitas na cidade de Istambul.

Numa altura em que o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano — ao qual Israel se opõe — era objeto de intensas negociações em Viena com vista à sua reativação, Telavive e Teerão voltam a protagonizar tensão. É, pois, surpreendente que haja, em Israel, quem considere que a ameaça iraniana está longe de ser atualmente a maior dor de cabeça do país.

“O principal problema que Israel enfrenta é a estabilização do sistema político para sustentar a democracia”, diz ao Expresso o investigador Gideon Rahat, do Instituto de Democracia de Israel. “Em segundo lugar, temos de encontrar algum tipo de solução visionária para o conflito com os palestinianos e de lidar com a ameaça iraniana. Depois, há muitos problemas internos ao nível dos sistemas de saúde e educativo e dos transportes públicos, que em Israel são um grande problema. Temos muito para resolver e já perdemos muitos anos com eleições, uma após outra, com a pandemia de coronavírus a complicar ainda mais.”

Desde 1996, quando Benjamin Netanyahu foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez — o israelita que, desde sempre, mais anos chefiou o Governo do país —, Israel realiza eleições legislativas, em média, a cada dois anos e meio.

Essa média encurtou drasticamente nos últimos quatro anos. Os israelitas foram a votos em abril e setembro de 2019, março de 2020 e março de 2021. Irão às urnas de novo a 1 de novembro próximo, depois de, na semana passada, o Parlamento (Knesset) ter aprovado a sua própria dissolução.

“Temos de alterar o grau de facilidade com que o Knesset se dissolve”, comenta o académico israelita. Os partidos “deviam ter mais incentivos para procurar outras soluções políticas para produzir um Governo estável”, continua. “As eleições em Israel ocorrem numa única circunscrição nacional. Se adotarmos círculos eleitorais como em Portugal ou Espanha, por exemplo, podemos mudar a paisagem política para que os partidos sejam mais propensos a unir-se e a concorrer juntos. Se alguns partidos pequenos se fundirem, podem ser criados blocos maiores, ainda que não seja possível saber se isso levaria à estabilidade. Agora a divisão é real. Israel está quase dividido ao meio.”

No Knesset dissolvido, estavam representados 13 partidos ou coligações. O Executivo em funções era apoiado por oito formações com agendas irreconciliáveis, da extrema-direita judaica aos islamitas árabes.

“Em Israel, o voto é, antes de tudo, identitário. As pessoas identificadas como religiosas estão mais à direita, as mais seculares votam mais à esquerda, os árabes votam nos partidos árabes e comunista, os judeus nos partidos sionistas”, explica o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. “Votar tem que ver, primeiro, com identidade, e essas identidades estão ligadas a ideologias e políticas, além de durante décadas ficarem ligadas a personalidades concretas, como Netanyahu. Não é possível dizer que as pessoas votam apenas por assuntos.”

Que dizem as sondagens?

As sondagens realizadas após o anúncio da dissolução do Knesset confirmam o cenário de fragmentação, prevendo que, nas eleições de 1 de novembro, nem o bloco de partidos que apoia Netanyahu, nem o bloco que se lhe opõe obtenham votos suficientes para garantir o apoio de 61 dos 120 deputados e formar um Governo estável.

As sondagens indincam também que Netanyahu é o candidato favorito dos eleitores. “Sempre foi muito popular, mas nunca teve maioria. É esse o seu problema”, comenta Rahat. “É um líder populista, pelo que tem o apoio de algumas pessoas e é detestado por outras. O segredo da sua popularidade é o populismo. Vai contra a chamada velha elite, os media e os tribunais, em nome da maioria e da tradição judaicas, e às vezes até da religião.”

Após 15 anos na cadeira do poder, Netanyahu está com a justiça à perna. É réu em três processos por corrupção, fraude e abuso de confiança, num julgamento que começou a 24 de maio de 2020 e que, segundo Rahat, “pode demorar uma eternidade, não terminará em meses, vai demorar anos”. Segundo a lei, só na eventualidade de ser condenado e de serem esgotados os recursos é que se poderá colocar um cenário de afastamento de Netanyahu da vida política.

“Há interpretações à lei segundo as quais ele já devia estar impedido. Se se seguir estritamente a lei, terá de decorrer muito tempo até que seja impedido. É sempre possível que alguém recorra ao tribunal e este decida que Netanyahu não pode recandidatar-se a primeiro-ministro, mas não é muito provável.”

A mais recente crise política em Israel foi acelerada pela rejeição, no Knesset, de uma lei que, nas últimas décadas, não tem encontrado obstáculo para ser prorrogada: a chamada Lei dos Colonos, de 1967, que tem de ser renovada de cinco em cinco anos e que prevê a aplicação da lei civil israelita aos cerca de 500 mil colonos judeus que vivem de forma fortificada no território palestiniano ocupado da Cisjordânia (aos três milhões de palestinianos, Israel aplica a lei militar).

Naquela que vários órgãos de informação israelitas qualificaram de “uma das votações mais surreais da história” do país, alguns partidos que, ideologicamente, sempre apoiaram a lei desta vez rejeitaram a sua renovação. Foi o caso do Likud, o partido de direita liderado por Netanyahu. “Fizeram-no para abalar a coligação. A tática da oposição é votar contra qualquer coisa que a coligação proponha, mesmo que a apoie.”

A estratégia não só levou à dissolução do Knesset como salvou a Lei dos Colonos, que, graças à marcação de novas eleições, foi automaticamente renovada.

Biden a caminho do Médio Oriente

Outra consequência do abalo político foi a substituição de primeiro-ministro. Naftali Bennett (Yamina, direita sionista) abandonou o cargo, anunciou que não será candidato às próximas eleições e cedeu o lugar ao seu parceiro de coligação, Yair Lapid (do partido centrista Yesh Atid), com quem acordara alternar na chefia do Governo a meio do mandato e que era, até agora, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Será, pois, Lapid que irá receber o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com chegada prevista a Israel a 13 de julho. “A visita é, em primeiro lugar, uma expressão da estreita relação entre Israel e os Estados Unidos. Em segundo lugar, é indício de que o atual Governo dos Estados Unidos provavelmente prefere ter Lapid como primeiro-ministro, ou Bennett antes dele, do que Netanyahu, um claro defensor do Partido Republicano, mais conotado com essa formação do que seria recomendável a um primeiro-ministro israelita, dado tratar-se de política interna norte-americana.”

De Israel, Biden irá para a Arábia Saudita, um trajeto carregado de simbolismo, já que os dois países não têm relações diplomáticas. “Julgo que há uma tentativa para melhorar a relação que existe, de alguma forma, nos bastidores entre Israel e a Arábia Saudita. Mas Biden também tem um interesse próprio na Arábia Saudita, já que necessita de garantir gasolina suficiente para o seu povo, para que apoie os democratas nas eleições [para o Congresso] de metade de mandato”, de 8 de novembro próximo.

Não é líquido que eventuais êxitos internacionais de Israel angariem votos para 1 de novembro. “Na última década, o peso eleitoral das relações exteriores e da segurança diminuiu um pouco. Em relação aos palestinianos, há um impasse, porque os palestinianos estão divididos entre o Hamas na Faixa de Gaza e a Organização de Libertação da Palestina [de que a Fatah é a principal fação] na Cisjordânia. Em relação à ameaça iraniana, ou a outras ameaças, há consenso”, conclui Rahat.

Inversamente, explica: “O peso eleitoral das questões internas está a aumentar, incluindo junto dos cidadãos israelitas árabes. E das questões internas faz parte a democracia e perceber-se se a democracia é o Governo da maioria ou uma democracia mais liberal.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Israel vai para as quintas eleições em três anos. Será o regresso de Netanyahu?

Apoiada em oito partidos, a coligação governamental implodiu após um ano no poder

ILUSTRAÇÃO CHAIM V’CHESSED

1 Porque caiu o Governo?

Porque era formado por um conjunto de partidos com interesses conflituantes e, atualmente, era minoritário no Parlamento (Knesset). A 13 de junho de 2021, este Executivo foi aprovado por 61 deputados (em 120), mas hoje tinha o suporte de apenas 59, oriundos de oito forças políticas com agendas irreconciliáveis, da extrema-direita judaica aos árabes islamitas. O cimento que os uniu foi, tão somente, a vontade de correrem do poder o então primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Segunda-feira, ao anunciarem o início do processo de dissolução do Knesset, o atual chefe do Governo, Naftali Bennett (nacionalista), e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Yair Lapid (centrista, que deveria suceder-lhe no cargo, em regime de rotação), disseram ter “esgotado todos os esforços para estabilizar a coligação”.

2 Que assuntos originaram divisões?

Vários, como a questão do Estado palestiniano ou a relação entre religião e Estado. O último abalo foi provocado pela chamada Lei dos Colonos, rejeitada no Knesset a 6 de junho. Nos últimos 50 anos, esta lei, que decreta a aplicação da lei civil aos colonos judeus que vivem no território ocupado da Cisjordânia (aos palestinianos é aplicada a lei militar), tem sido renovada por ampla maioria. A rejeição de uma lei desta importância põe em evidência o mal-estar entre Governo e oposição. Com a dissolução do Knesset, a lei é automaticamente prorrogada por seis meses.

3 O que se segue à dissolução?

Confirmado o fim da legislatura, previsto para o início da próxima semana, Israel segue para novas eleições legislativas, as quintas desde abril de 2019. Em três dos quatro últimos escrutínios, o partido mais votado foi o Likud (direita), liderado por Netanyahu, o israelita que mais tempo exerceu o cargo de primeiro-ministro. ‘Bibi’, como é conhecido, liderou o país entre 1996 e 1999 e entre 2009 e 2021.

4 Netanyahu pode voltar ao poder?

Sim. No dia em que foi anunciada a dissolução do Knesset, o líder da oposição prometeu formar “um Governo nacional amplo, forte e estável”, que “traga de volta o orgulho nacional”. Três sondagens divulgadas no dia seguinte confirmaram a preferência dos israelitas por Netanyahu, ainda que nenhuma lhe atribua votos suficientes para formar uma coligação maioritária com os seus aliados tradicionais: a da televisão pública Kan dá-lhe 60 deputados e as dos Channel 12 e 13, 59. No Knesset, a maioria é de 61 deputados, uma fasquia inalcançável nos últimos anos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui