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Cinco casos em que a moral levou a melhor sobre a ambição

Assumiram cargos políticos convictos de que podiam contribuir para um mundo à imagem dos seus valores. Mas, de forma mais ou menos sonora, acabaram por dar um murro na mesa alegando razões de consciência. Cinco casos em que a moral levou a melhor sobre a ambição

Zeid Ra’ad al Hussein termina, esta sexta-feira, o seu mandato como alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Será substituído no cargo pela ex-Presidente chilena Michelle Bachelet. O fim da missão foi anunciado em dezembro passado, num email enviado aos seus colaboradores: “Após refletir, decidi não tentar um segundo mandato de quatro anos. Fazê-lo, no atual contexto geopolítico, poderia envolver ter de dobrar um joelho em súplica; silenciar uma declaração de defesa de direitos; diminuir a independência e integridade da minha voz.”

A continuidade no cargo estaria apenas dependente da confiança do secretário-geral da ONU, António Guterres. Mas Hussein, dono de um estilo assertivo em matéria de defesa de direitos humanos — foi capacete azul nos Balcãs, na década de 1990, e ajudou a pôr de pé o Tribunal Penal Internacional —, sentiu que tinha em mãos uma tarefa cada vez mais impossível. Sobretudo, numa era de “políticos demagogos e fantasistas”, como qualificou o líder da extrema-direita holandesa, Geert Wilders, e… Donald Trump.

Na semana anterior ao envio do email aos seus colaboradores, a voz de Hussein ecoou, oficialmente, por três vezes em tom condenatório: após as Forças de Defesa de Israel abaterem um palestiniano numa cadeira de rodas na Faixa de Gaza; após o anúncio de um projeto de construção de uma estrada no Peru que obrigaria à deslocalização de povoações indígenas; e após o regime de Myanmar (antiga Birmânia) impedir a entrada no país de investigadores na área dos direitos humanos, com a perseguição à minoria rohingya em curso.

O jordano levou o seu cargo até ao fim, mas terminou-o emocionalmente desgastado, farto de ser ator num filme negro no qual a nação mais poderosa à face da Terra não era mais um aliado e abdicara de promover valores na sua relação com os outros. Em junho passado, os EUA saíram do Conselho de Direitos Humanos da ONU solidários com Israel.

Três dias antes de Hussein deixar funções, um sentimento de frustração semelhante esteve na origem da demissão de Nicolas Hulot do cargo de ministro do Ambiente de França. Em direto, num programa de rádio, o respeitado ecologista — que foi conselheiro de três Presidentes (Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande) antes de Emmanuel Macron o convencer a assumir um cargo de governação — afirmou-se frustrado com a ineficácia do poder e os “pequenos passos” do seu Goveno em matéria ambiental. “Não quero continuar a mentir a mim próprio. Não quero dar a ilusão de que a minha presença no Governo significa que estamos a avançar”, disse. Esteve no cargo quinze meses.

“As razões morais que levam a uma demissão decorrem de três dimensões morais da integridade”, defende Patrick Dobel, professor na Evans School of Public Policy and Governance, da Universidade de Washington, no estudo “A ética da demissão”. “Os detentores de cargos prometem cumprir a sua obrigação. Isso pressupõe que têm aptidão para fazer e cumprir promessas, competência para realizar as tarefas a que se propõem e capacidade para serem eficazes”, concretiza. “O fracasso em cada uma dessas áreas gera fortes razões morais que leva o indivíduo à renúncia.”

Se Zeid Ra’ad al Hussein perdeu o entusiasmo — e com isso a energia necessária ao desempenho de um cargo pesado — e se Nicolas Hulot se sentiu um homem cada vez mais só dentro do executivo francês, outros casos há em que o choque entre convicções pessoais e opções políticas levam inevitavelmente à rutura.

A 17 de março de 2003, quando o início da guerra no Iraque estava iminente — e o Reino Unido de Tony Blair se perfilava como o braço direito dos EUA de George W. Bush nessa ofensiva —, Robin Cook demitiu-se do Governo em protesto contra essa intervenção militar. “Não posso aceitar a responsabilidade coletiva pela decisão de comprometer a Grã-Bretanha agora numa ação militar no Iraque sem acordo internacional ou apoio interno.” À época, Cook era ministro dos Assuntos Parlamentares e líder da Câmara dos Comuns. Entre 1997 e 2001, fora ministro dos Negócios Estrangeiros.

Mais recentemente, outra baixa em Downing Street tinha por base razões de consciência. Perante o processo negocial com a União Europeia relativo à saída do Reino Unido (‘Brexit’), o então chefe da diplomacia Boris Johnson assumiu a sua discordância em relação ao plano traçado pela chefe de governo, Theresa May: “O governo tem agora uma música para cantar. O problema é que eu ensaiei a letra durante todo o fim de semana e percebi que me engasgo. Temos de ter responsabilidade coletiva. Uma vez que eu, em consciência, não posso defender estas propostas, infelizmente concluí que tenho de ir.”

Mais longínquo na História, o exemplo de George Schultz também fez doutrina. O secretário de Estado norte-americano de Ronald Reagan não hesitou em apresentar a sua demissão ao Presidente quando, na década de 1980, os EUA começaram a facilitar o tráfico de armas para o Irão — sujeito a um embargo internacional — para assegurar a libertação de reféns e financiar os Contras da Nicarágua (caso Irão-Contras). Para Schultz, essa política incentivava à continuidade de raptos e fazia perigar o fim da Guerra Fria com a União Soviética, que se aproximava.

Crítico do seu próprio governo, foi acusado de deslealdade e apresentou a sua demissão, mas Reagan não a aceitou. “A minha credibilidade junto do Presidente apenas sairia reforçada se ele tivesse soubesse que eu era o tipo de Washington mais fácil de ele se livrar.” A carta de renúncia continuou numa gaveta da Casa Branca e Schultz ficou liberto para trabalhar no sentido de uma mudança de política — e com a sua integridade intacta.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 30 de agosto de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

A águia bicéfala, a seleção descalça e o faraó tchetcheno

O Mundial da Rússia termina este domingo e o presidente da FIFA, Gianni Infantino, já veio dizer que “foi o melhor de sempre”. Sem falhas organizativas ou aparatosos alertas de segurança, a competição não foi, porém, imune a provocações políticas

A política foi a jogo no Mundial. Jogadores suíços ‘picaram’ os sérvios, croatas provocaram a anfitriã Rússia e uma das estrelas do firmamento futebolístico internacional foi usada como propaganda na Chechénia. Sempre conservadora em relação a manifestações de cariz político, a FIFA abriu uma exceção que indispôs os “ayatollahs” iranianos…

GOLOS PELO KOSOVO

Decorria a fase de grupos e Suíça e Sérvia mediam forças em Kaliningrado. Granit Xhaka, aos 52 minutos, e Xherdan Shaqiri, aos 90 — suíços de origem kosovar —, marcaram os golos do triunfo helvético por 2-1. Na hora de os celebrar, não se contiveram na euforia e provocaram os sérvios fazendo com as mãos um sinal alusivo à bandeira albanesa que ostenta uma águia bicéfala.

O gesto mais não foi do que uma declaração política solidária para com o Kosovo, a antiga província sérvia de maioria albanesa que ascendeu à independência em 2008 e cuja soberania ainda não é reconhecida, para além da própria Sérvia, por países como Rússia, China e Espanha.

A Federação da Sérvia pediu dois jogos de suspensão para cada atleta por “provocação ao público”, mas a FIFA não foi além de uma multa individual de 10.000 francos suíços (8600 euros) por “comportamento antidesportivo contrário aos princípios do fair play”.

QATAR EM FORÇA, NAS BARBAS DOS SAUDITAS

A 14 de junho, aquando do jogo inaugural da competição entre Rússia e Arábia Saudita, o anfitrião Vladimir Putin teve a seu lado, na tribuna do Estádio Luzhniki (Moscovo), o príncipe herdeiro saudita. Para além da pesada derrota por 5-0, Mohammad bin Salman teve de digerir uma provocação geopolítica: em redor do relvado, destacava-se de forma persistente publicidade à Qatar Airways.

A Arábia Saudita foi a mentora do bloqueio por terra, mar e ar imposto ao Qatar a 5 de junho de 2017, ao qual aderiram também Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito. Desde então, o Qatar passou a gastar dez vezes mais para importar alimentos e medicamentos, mas com o avultado patrocínio da sua transportadora aérea, que se repetiu em todos os jogos do Mundial, o pequeno emirado do Golfo Pérsico mostra a quem o quis asfixiar financeiramente que o bloqueio não está a resultar.

Há, porém, quem avance com outra justificação para esta investida publicitária… A organização do Mundial de 2022, atribuída ao Qatar, continua em perigo, pelo que dar milhões à FIFA pode ser uma forma de a segurar. Após a atribuição do evento ao Qatar se rodear de polémica, e de suspeitas de corrupção, a organização tem vindo a ser bombardeada com fragilidades: as altas temperaturas e índices de humidade inviabilizam a realização do torneio no verão; os adeptos homossexuais não são bem vindos no país; e o consumo de álcool é proibido. Durante a construção dos estádios, morreram pelo menos 520 trabalhadores, oriundos sobretudo de Bangladesh, Índia e Nepal. Tudo isto para além do bloqueio em curso.

Estados Unidos e Inglaterra têm sido os países mais falados no caso de relocalização do evento. Mas esta sexta-feira, a FIFA tranquilizou o Qatar ao anunciar as datas do seu Mundial: decorrerá no inverno, entre 21 de novembro e 18 de dezembro.

NIKE DESCALÇA O IRÃO

Ainda o apito inicial do Mundial estava longe de soar e já o selecionador do Irão, Carlos Queiroz, se queixava das condições de trabalho da sua equipa. Por questões políticas, muitos países recusam-se a disputar amigáveis com a seleção persa, privando os iranianos de um planeamento profissional.

A 2 de junho, o Irão tinha agendado um particular com a Grécia, em Istambul, que foi abruptamente cancelado pelos gregos em virtude de um contencioso entre Atenas e Ancara envolvendo a detenção de dois soldados gregos na fronteira entre os dois países. Neste caso, o Irão foi uma “vítima colateral” de uma guerra que não era sua, mas é o que acontece a um país com uma exposição internacional muito condicionada como a do Irão.

Nas vésperas do arranque do Mundial, o boicote à equipa iraniana assumiu outros contornos. A marca de equipamentos desportivos Nike recusou-se a fornecer chuteiras à “team Melli”, como os iranianos chamam à sua seleção. “Não é uma escolha”, justificou-se a Nike, escudando-se com as sanções impostas pelos Estados Unidos. Em compensação, a alemã Adidas não falhou com o fornecimento das camisolas.

RELAÇÃO ENVENENADA ENTRE INGLESES E RUSSOS

A chegada da seleção inglesa às meias finais do Mundial da Rússia prova que os súbditos de Sua Majestade não se deram mal nas terras dos czares, ainda que a relação diplomática entre Londres e Moscovo já tenha tido melhores dias.

Após o envenenamento do russo Sergei Skripal, ex-espião do britânico M16, e da sua filha Yulia, a 4 de março, na cidade inglesa de Salisbury, o Reino Unido apontou o dedo acusador à Rússia e declarou que não se iria fazer representar ao mais alto nível nas bancadas do Mundial. O então ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, elevou a fasquia da agressividade e comparou a organização russa do Mundial de futebol aos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, que funcionaram como propaganda ao regime nazi.

O caso do espião envenenado, e da tensão política que se lhe seguiu, terá contribuído para a ausência de milhares de apaixonados adeptos ingleses nas ruas russas. Para assistir ao jogo dos oitavos de final, em que a Inglaterra venceu a Suécia por 2-0, apenas 1608 ingleses compraram bilhetes através da federação inglesa — na fase de grupos, o número de bilhetes vendidos oscilou entre os 1510 (para a partida contra a Tunísia) e os 2659 (com a Bélgica). Na mente de muitos adeptos estará também os confrontos entre russos e ingleses registados em Lille, durante o Euro 2016, antes do jogo entre as duas seleções (1-1), na fase de grupos.

No seu Mundial, os russos não permitiram, porém, que este histórico manchasse o evento e, na cerimónia de abertura, escolheram um britânico — Robbie Williams — para protagonizar o momento musical, em parceria com a soprano russa Aida Garifullina.

MO SALAH, O FARAÓ… DA CHECHÉNIA

A intenção terá sido a melhor, mas a escolha de Grozny, por parte da federação egípcia, como sede da sua seleção durante o Mundial da Rússia teve consequências imprevistas. Grozny é a capital da Chechénia, uma região russa maioritariamente muçulmana que, não há muito, travou duas guerras separatistas com Moscovo: 1994-1996 e 1999.

A Chechénia tem agora no poder Ramzan Kadyrov, um muçulmano ultraconservador com pazes feitas com o Kremlin e que tem estado na mira de organizações de defesa dos direitos humanos por repressão a opositores políticos e perseguição aos homossexuais.

Com a presença dos egípcios no território que governa e, em particular, de uma das estrelas maiores do futebol internacional — Mohamed Salah, que joga no Liverpool —, Kadyrov não perdeu oportunidade de tirar vantagens políticas. Atribuiu a Salah o estatuto de cidadão honorário da Chechénia, durante um banquete oferecido à equipa no seu palácio e fez-se passear ao lado do futebolista diante das bancadas do Akhmat Arena, onde locais assistiam a um treino dos egípcios. Salah não fez qualquer comentário público. Talvez não esteja consciente do ‘filme’ propagandístico em que participou.

ELIMINAÇÃO DA RÚSSIA DEDICADA À… UCRÂNIA

Se chegar às meias finais de um Mundial é uma emoção para qualquer futebolista, consegui-lo à custa da seleção da Rússia foi para dois croatas uma alegria incontrolável.

Ognjen Vukojevic, elemento da equipa técnica, e o defesa Domagoj Vida — ambos ex-jogadores do Dínamo de Kiev (Ucrânia) — cederam a uma recôndita paixão e, após o jogo dos quartos de final contra os russos, gravaram uma mensagem polémica: “Glória à Ucrânia! Esta vitória é para o Dínamo de Kiev e para a Ucrânia.” Rússia e Ucrânia estão de relações cortadas em virtude do apoio de Moscovo aos separatistas do leste da Ucrânia e à anexação russa da Crimeia, legitimada por referendo, a 16 de março de 2014.

O vídeo incendiou as redes sociais e levou a FIFA a abrir um processo disciplinar que concluiu com a repreensão dos dois croatas e uma multa de 12 mil euros a cada um. A federação croata foi mais longe: pediu “desculpa ao público russo” e despediu Vukojevic, que tinha publicado o vídeo. Mas o técnico não tardou a ter uma oferta de emprego… Andriy Pavelko, presidente da Federação da Ucrânia, foi ao Parlamento de Kiev envergando a camisola e um cachecol da Croácia e defendeu a contratação do técnico dispensado. Foi ovacionado de pé pelos deputados da nação.

À ATENÇÃO DOS “AYATOLLAHS”

O rendimento da seleção iraniana no Mundial, que por pouco condenava Portugal a não passar da fase de grupos, empolgou a nação persa e levou aos estádios russos iranianas como não é possível ver-se na República Islâmica. Desde 1980 — um ano após a Revolução Islâmica liderada pelo “ayatollah” Khomeini — que é proibido às iranianas a entrada nos estádios de futebol do país. Quem desafia essa proibição pode ser detida, mas muitas iranianas arriscam-no disfarçando-se de homens.

“Sara” (nome fictício para evitar represálias) é uma ativista da causa que viajou até à Rússia para se manifestar por esse direito. Para irritação do regime de Teerão, a FIFA autorizou “Sara” e quem a acompanhava a expor cartazes de protesto no interior dos estádios do Mundial. “A FIFA proíbe as mensagens políticas, mas esta não é uma questão política”, disse a ativista ao diário espanhol “El País”. “É uma questão de direitos humanos.”

Já no decorrer do Mundial, o regime iraniano experimentou uma abertura e autorizou as mulheres a entrarem no Estádio Azadi, em Teerão, para assistirem, ao lado dos homens, à transmissão dos jogos do Irão com Espanha e Portugal em ecrã gigante.

DE RELAÇÕES CORTADAS, MAS SÓ FORA DE CAMPO

Sem grande alarido, Marrocos e Irão cortaram relações diplomáticas há cerca de dois meses. A iniciativa partiu de Rabat que não gostou de descobrir que operacionais do Hezbollah — o movimento xiita libanês próximo do Irão — estão a treinar e a armar combatentes da Frente Polisário, que pugna pela independência do Sara Ocidental.

A ‘zanga’ não se sentiu dentro ou fora de campo quando Marrocos e Irão se defrontaram, a 15 de junho, no primeiro jogo do grupo de Portugal, que os iranianos venceram (1-0). Mas teve consequências desportivas que se manifestaram na véspera do arranque do Mundial.

Em votação que decorreu durante o Congresso da FIFA, em Moscovo, a candidatura tripartida de Canadá, Estados Unidos e México conquistou o direito de organizar o Mundial de 2026. O projeto concorrente foi apresentado por Marrocos, que o tentava pela quinta vez. A candidatura americana recebeu 134 votos (entre os quais o de Portugal) e a de Marrocos 65. Houve ainda três abstenções e a posição única e original do Irão… Perante propostas de Estados Unidos e Marrocos, com quem não tem relações diplomáticas, o Irão optou pela rejeição dos dois projetos votando expressamente “nenhuma das candidaturas”.

(Imagem: Bandeiras dos 32 países que disputaram o Mundial da Rússia MAX PIXEL)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 13 de julho de 2018. Pode ser consultado aqui