Arquivo de etiquetas: Porto

Histórias de imigrantes no Porto. “É muita ingenuidade nossa achar que é um papel que determina o direito a uma vida digna”

No centro do Porto, uma mostra fotográfica a céu aberto alerta para dificuldades na integração sentidas por imigrantes residentes na cidade. “Identidades do Porto”, da documentarista luso-brasileira Sabrina Lima, dá voz a quem anseia por deixar de ser apontado pela sua origem. “Quando é que os portugueses me vão considerar um deles?”, questiona o norte-americano Foster, um dos retratados

Sabrina Lima, junto à exposição “Identidades do Porto”, que está patente até 25 de junho, em frente à estação da Trindade FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Pode passar despercebida a quem passa de forma mais apressada, mas quem nela repara não resiste a observá-la demoradamente. De frente para a estação de metro da Trindade, não muito longe do edifício da Câmara Municipal do Porto, uma exposição composta por oito retratos a preto e branco colados num muro de granito dão cara e voz a outros tantos imigrantes residentes na cidade.

Fotos e mensagens convidam os transeuntes a parar e a colocar-se no lugar de quem aceitou posar e partilhar um pouco da sua história em curtas frases impressas nas fotos.

“O objetivo é levar os portugueses a perceberem que essas pessoas [nascidas na Ucrânia, Bangladesh, Cuba, Síria, Angola, Brasil, Venezuela e Estados Unidos] fazem parte da sociedade onde vivem, independentemente do país de onde vêm”, diz ao Expresso a documentarista Sabrina Lima, autora do projeto a que chamou “Identidades do Porto”.

Com esta iniciativa, a luso-brasileira procura também incentivar outros imigrantes que se revejam naqueles testemunhos a partilharem experiências passadas ao longo do seu percurso de integração.

“Eu sempre sou visto como o americano turista que fala português do Brasil, as pessoas não entendem muito bem o que estou fazendo aqui. Não sei quando vamos ultrapassar estes rótulos. Quando vou poder dizer que faço parte da sociedade portuguesa? Quando os portugueses vão me considerar um deles?”

Foster Hodge,
 31 anos, nasceu nos Estados Unidos, vive em Portugal há 1 ano

“Eu me formei como adulta em Portugal, o meu pensamento intelectual é europeu, mas o meu sentir é venezuelano. Acho que o meu pai compreende isto porque ele próprio viveu 30 anos na Venezuela, mas sentiu-se sempre português.”

Roxana Suárez, 
35 anos, nasceu na Venezuela, vive em Portugal há 20 anos

Os oito retratados são pessoas com quem a autora se cruza nas suas rotinas diárias ou procurou deliberadamente durante passeios pela Invicta. “Eu procurei essa representatividade, gente de todos os cantos. Tem um pouco de tudo”, continua Sabrina. “São pessoas que fazem parte da cidade. Uma cidade não é só um conjunto de prédios e de monumentos, é também as pessoas que a habitam, e que não são só nacionais, são de diversas nacionalidades e tentam fazer parte da sociedade”.

Os oito retratados são oriundos da Ucrânia, Bangladesh, Cuba, Síria, Angola, Brasil, Venezuela e Estados Unidos FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Nascida no Rio de Janeiro, em 1981, Sabrina Lima vive no Porto desde fevereiro de 2017. Ela própria tem uma história de emigração para partilhar. Neta de emigrantes portugueses, oriundos de Gondomar que rumaram para o Brasil no pós-guerra, cresceu com o conceito de migração muito presente na sua vida.

“Eu cresci a ouvir a minha avó a contar histórias de quando trabalhava no mercado do Bolhão. Cresci entre cartas trocadas entre os meus avós e os primos, entre Portugal e o Brasil.”

O privilégio de ser branca, com passaporte europeu

Quando, há 15 anos, se tornou emigrante, começando por viver em Barcelona, a artista começou a inquietar-se. “O meu principal incómodo era perceber os privilégios que eu tinha — e que tenho — por ser branca, ter ascendência europeia e um passaporte que diz União Europeia”, assume.

“É muita ingenuidade nossa achar que é um papel, um documento, uma fronteira física que determina o que sentimos e o direito a uma vida digna. Somos todos humanos.”

“Sou Engenheiro Agrónomo e aqui não consigo trabalho com o meu diploma. No final vim trabalhar num restaurante. Tem que ser mais fácil. Pediram uma declaração do curso que eu fiz na Síria. Se a minha universidade funcionasse, eu conseguiria, mas ela está destruída, é impossível.”

Sherbel Jabro, 
41 anos, nasceu na Síria, vive em Portugal há 9 anos

“Quando vim para Portugal, eu sabia que não iam me reconhecer como brasileira. Acham que sou chinesa, turista ou de Macau. Quando digo que sou descendente de japoneses, parece que valorizam mais, e essa categorização me incomoda muito. É tudo gente, é tudo gente.”

Patrícia Nakamura, 
40 anos, nasceu no Brasil e vive em Portugal há 4 anos

A documentarista luso-brasileira, licenciada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e com estudos desenvolvidos na área do Cinema, Fotografia e Documentário Interativo em Barcelona e Etnografia Urbana na Universidade do Porto, considera o Porto “uma cidade muito acolhedora. Mas essa é a minha experiência, enquanto uma pessoa branca e europeia”, acrescenta.

As pessoas fotografadas são imigrantes residentes na cidade do Porto FERNANDO VELUDO / NFACTOS

“Portugal tem uma coisa muito bonita que é o voluntariado. Há muitas associações que trabalham pelo acolhimento dos imigrantes, isso é muito importante. Mas temos de sair desse olhar da caridade e pensar em políticas públicas de verdade. Entre os países da União Europeia, Portugal é dos mais abertos e que têm mais boa vontade.”

“Eu me sinto próxima a Portugal por causa da língua portuguesa. Mas sou angolana e não espero mudar o meu sotaque.”

Jenice Rogério, 
36 anos, nasceu em Angola e vive em Portugal há 8 anos

“Passei dois meses de férias no meu país. Nas primeiras duas, três semanas, senti falta de Portugal. Depois, quando voltei, senti falta de Bangladesh.”

Fahim Ahmed, 
32 anos, nasceu em Bangladesh e vive em Portugal há 11 anos

“Identidades do Porto” é um projeto iniciado em 2017, com o apoio do Programa de Arte Urbana, da Câmara Municipal do Porto, que agora Sabrina enriqueceu com novos testemunhos. “Uma diferença que sinto de 2017 para cá é que agora as pessoas estão muito mais abertas a falarem sobre essa questão. Ao mesmo tempo que vivemos um momento perigoso com o crescimento da extrema-direita no mundo, alguns assuntos estão a ser mais falados, mais expostos. Eu senti, nos entrevistados, mais vontade de participar e de partilhar.”

A mostra “Identidades do Porto” está instalada em frente à estação de metro da Trindade FERNANDO VELUDO / NFACTOS

Hoje, a imigração tornou-se praticamente o principal tema de trabalho de Sabrina Lima, que integra o coletivo Living City Porto. “Eu acredito que o audiovisual tem um grande potencial de sensibilização da sociedade. Um dos meus objetivos com este projeto é criar novas narrativas que ultrapassem o modelo predominante ‘números-fronteiras-segurança nacional’ quando se fala sobre migração. É humanizar as pessoas e as suas histórias.”

O seu próximo projeto poderá mesmo ter como matéria-prima um episódio que a documentarista viveu no momento em que a pandemia de covid-19 tomava conta do mundo.

Sabrina tinha ido ao Brasil fazer uma formação de dois meses e na véspera de regressar a Portugal, num voo que faria escala em Marrocos, as fronteiras começaram a fechar. Acabou por conseguir embarcar num voo direto entre Portugal e o Brasil, mas, após contactar a embaixada portuguesa em Rabat, ficou a saber que, se tivesse necessitado, haveria um voo de repatriamento para os portugueses retidos em Marrocos.

“É inevitável pensar nos milhares de africanos que se veem obrigados a arriscar a vida em travessias precárias para fazer a mesma rota porque calhou terem nascido em países periféricos. É uma coisa que me dói na alma. Não consigo achar normal que se valorize mais ou menos uma vida em função da nacionalidade.”

Sabrina Lima integra o coletivo Living City Porto FERNANDO VELUDO / NFACTOS

O Expresso desafia Sabrina Lima a colocar-se na pele de um dos seus fotografados e a partilhar a sua mensagem.

“A história da humanidade passa pela migração. A vida toda o ser humano migrou pelos mais diversos motivos. Por que não se quer acolher e integrar? Por que um documento, um pedaço de papel que diz em que país a pessoa nasceu, determina quem tem direito ou não a uma vida digna? Somos todos humanos e temos muito mais semelhanças do que diferenças.”

Sabrina Lima, 39 anos, nasceu no Brasil e vive em Portugal há 4 anos

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Universidade do Porto, muito mais do que uma academia. Até no combate à covid-19

Mais do que um espaço de ensino, a Universidade do Porto é, com os seus vários campus, empresas e startups, um dos principais motores de Ciência e Inovação em Portugal. Em tempos de pandemia, essas valências colocam a instituição na linha da frente desse combate. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

O coronavírus empurrou-nos a todos para dentro de casa. Mas com competência, criatividade, espírito solidário
há todo um novo mundo que ganha forma sem que seja preciso sair à rua.

Nos primeiros dias da pandemia em Portugal, surgiu um projeto tecnológico com soluções criativas para minimizar o impacto da covid-19 nas nossas vidas. É o #tech4COVID19, uma plataforma digital, onde profissionais das mais diversas especialidades angariam fundos para comprar material hospitalar; apoiam professores, alunos e pais ao nível do ensino à distância; prestam assistência médica online; organizam serviços de entregas de bens.

O #tech4COVID19 tem vários projetos ativos e mais de 4000 voluntários, entre eles mais de 200 médicos. Este movimento, que é hoje uma realidade nacional, nasceu no Porto, pela mão de empreendedores e startups da cidade.

Desde 2007 que só na incubadora de empresas da Universidade do Porto já foram aprovadas mais de 550 startups, quase todas criadas por antigos alunos que começaram a concretizar as suas ideias de negócio ainda de capa e batina.

Atualmente, nos três campus da Universidade, funcionam 186 startups e 73 empresas.

Recentemente, a revista “Forbes” destacou três delas e colocou os seus fundadores na lista dos “30 melhores talentos europeus com 30 anos ou menos”.

A nível internacional, o Porto é hoje um dos polos tecnológicos que mais crescem na Europa. E a nível nacional, é mesmo a cidade que mais investimento tem captado para as startups. Recebe 36,71% do total de investimento feito no país, a maioria proveniente do estrangeiro.

Paralelamente ao universo das startups, no ecossistema da Universidade do Porto já foram criadas 91 empresas para explorar produtos ou tecnologias concebidos nos centros de investigação da academia.

A Universidade do Porto é hoje um dos principais motores de Ciência e Inovação em Portugal. E dois outros fatores alimentam essa realidade.
A Universidade tem ativas 335 patentes no país e no estrangeiro. Naquele que foi o melhor ano de Portugal ao nível do registo europeu de patentes, 17 tiveram o selo da Universidade do Porto.

Por outro lado, os seus investigadores são responsáveis por quase 1/4 da produção científica portuguesa. Entre 2013 e 2017, participaram em 23,8% dos artigos científicos produzidos em instituições nacionais. Praticamente metade foram elaborados em parceria com instituições científicas de todo o mundo.

Tudo isto contribui para que a Universidade do Porto seja um centro de estudo atrativo para jovens dos quatro cantos do mundo. Hoje, mais de 6000 alunos são estrangeiros, ou seja, 20% da totalidade dos estudantes. É uma diversidade que dá cor a esse “velho casario que se estende até ao mar…”

Episódio gravado por Pedro cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Já há portugueses a votar. E desta vez com melhor organização

O voto antecipado para as Legislativas está a decorrer em todo o país. O Expresso espreitou as votações na Invicta. A manhã foi tranquila. Há 50 mesas de voto em funcionamento e muito apoio lateral aos quase 10 mil eleitores que se inscreveram para votar

As tradicionais filas para votar primavam pela ausência, este domingo de manhã, durante a votação antecipada para as legislativas no Porto. Em compensação, sobravam comentários elogiosos à organização. “Demorei um minuto a votar. Isto está muitíssimo bem organizado. E então do ponto de vista informático… Recebi email a confirmar a inscrição, alerta no telemóvel, impecável. Fiquei espantado!”

Vasco Gama Ribeiro, de 71 anos, foi um dos 9338 eleitores que se inscreveram para votar antecipadamente no distrito do Porto — em todo o país, fizeram-no 56.287 pessoas. Na Invicta, o número triplicou em relação às eleições europeias de 26 de maio (3014 registados).

Clara Queirós, de 56 anos, gerente empresarial, foi uma das novas inscrições. Estará no estrangeiro, em trabalho, no próximo das legislativas, pelo que votar este domingo é oportuno. “É muito vantajoso. Em maio não tive essa necessidade, mas agora sim.” Está acompanhada pelo marido, que optou por não votar já, mas que se mostra impressionado: “Isto está muito bem organizado”.

Novo local, mais urnas

Em maio, no Porto, a votação decorreu no edifício da Câmara Municipal. Havia apenas quatro urnas em funcionamento, o que provocou longas filas e esgares de grande impaciência. Desta vez, vota-se no Centro Cultural e Desportivo dos Trabalhadores da Câmara Municipal do Porto, um amplo espaço de recreio equipado com campo de futebol e pavilhões multiusos. Em três deles, estão colocadas 50 mesas de voto.

Manuela Barbosa, de 66 anos, repete a experiência de votar antecipadamente. Diz que em maio não teve grandes razões de queixa, mas que “desta vez, está muito mais organizado. Há mais mesas, não há filas, a entrada é imediata”.

O apoio aos eleitores começa na rua. A polícia municipal bloqueou lugares de estacionamento para quem ali acorre de carro. Há sempre um entra e sai de carros na Rua Alves Redol criando a sensação de que há estacionamento para todos.

Ultrapassados os portões da rua da associação, quem não conhece o local não tem hipótese de se perder. Há placas de direção a indicar os locais de voto e funcionários em serviço para esclarecer todas as dúvidas. Junto a um quadro de avisos, onde consta toda a informação necessária à identificação das mesas de voto, uma jovem em serviço não deixa que ninguém se sinta perdido. “Posso ajudar? Qual é o seu distrito de residência? De Viseu. Então vota na mesa 44.”

Carrinhos de golfe em serviço

Cerca do meio-dia, há um fluxo contínuo de gente pelos passeios em empedrado junto ao campo de futebol, a caminho dos pavilhões de voto. O percurso torna-se num passeio de domingo para quem ali vai sem horas marcadas, mas pode ser difícil para quem tem dificuldades de locomoção.

Os eleitores nestas condições não foram esquecidos: dois carrinhos de golfe do Parque da Cidade e uma ambulância dos Bombeiros Sapadores do Porto transportam pessoas com mobilidade reduzida até o mais próximo possível dos locais de voto.

Neste cruzar de gente empenhada em cumprir o seu dever cívico, vão-se ouvindo comentários soltos: “Está muito mais gente do que nas últimas”, comenta-se entre um casal. “Demorei uns dois minutos, não há confusão nenhuma”, diz uma senhora ao telemóvel. Uma jovem questiona o rapaz que a acompanha: “É assim tão importante para ti saberes em que é que eu votei?”

(FOTO Na Invicta, o voto antecipado em mobilidade decorre este domingo no Centro Cultural e desportivo dos Trabalhadores da Câmara Municipal do Porto MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

O dragão e a cidade do Porto: uma história de bravura e gratidão

A figura do dragão está conotada com o Futebol Clube do Porto, mas ainda o clube não tinha nascido e já esse animal mitológico era um símbolo da cidade. Na origem da história, está uma demonstração de valentia das gentes do Porto

Invencibilidade, força, espírito de luta. Para um portista, é tudo quanto o dragão simboliza e, por arrasto, é esse também o ADN do Futebol Clube do Porto (FCP). Nos últimos anos, o protagonismo do clube e os feitos desportivos alcançados dentro e fora de portas levaram a uma conotação entre a criatura e a principal instituição desportiva do Porto. Mas um passeio pela cidade revela que o dragão já era um símbolo do Porto antes mesmo da fundação do clube.

“Podemos datar a associação do dragão à cidade do Porto de 14 de janeiro de 1837, quando D. Maria II promulgou o novo brasão da cidade, que trouxe novidades”, explica ao Expresso o arqueólogo Joel Cleto, autor e apresentador da série “Caminhos da História”, emitida no Porto Canal. “Essas novidades tinham a ver com algo que acontecera na cidade poucos anos antes, um acontecimento injustamente esquecido e que, no entanto, foi crucial para a História do Portugal Contemporâneo — o Cerco do Porto”. Ou, como a ele se referiu o escritor portuense Almeida Garrett, ele próprio um dos “cercados”, o momento em que “o Portugal velho acaba e o novo começa”.

Com D. Miguel no trono, é instaurado o absolutismo em Portugal. O descontentamento popular generalizou-se e o país mergulhou numa guerra civil (1832-1834). D. Pedro IV (primeiro imperador do Brasil), irmão do monarca e anti-absolutista, regressa a Portugal, organiza um exército nos Açores, desembarca na praia de Pampelido (hoje, praia da Memória, concelho de Matosinhos) e avança para o Porto. Tinha com ele 7500 homens.

De Lisboa, partem 40 mil homens fiéis a D. Miguel que, chegados ao Porto, montam um cerco à cidade. Frente a frente, muito mais do que dois irmãos em luta pelo poder, estavam conceções opostas de sociedade e de organização do Estado: absolutismo (D. Miguel) e liberalismo (D. Pedro).

“D. Pedro resiste porque não tem ao seu lado apenas 7500 homens… Muito rapidamente, a eles se juntam uma boa parte da população do Porto”, diz Joel Cleto. “É isso que explica que ele resista um ano e, depois, consiga romper o Cerco, que constitui o início do fim do absolutismo.”

Entre 8 de julho de 1832 e 18 de agosto de 1833, o Porto é diariamente bombardeado, há dificuldades de abastecimento, morre-se à fome e proliferam doenças (cólera, tifo). Após vencer a guerra, D. Pedro proclama rainha D. Maria II, sua filha, e toma uma série de medidas para recompensar as gentes do Porto pelo seu heroísmo e apoio inesgotável à luta pelo liberalismo e pela liberdade.

Estátua de D. Pedro IV, na Praça da Liberdade MARGARIDA MOTA

“D. Pedro tem consciência de que se não fosse o Porto não teria triunfado”, diz o historiador portuense. “Durante um ano, ele e a sua filha, D. Maria II, vão fazer imensas coisas para agradecer ao Porto.”

Manda que se crie uma grande biblioteca (Biblioteca Pública Municipal do Porto), um grande museu (o atual Museu Nacional Soares dos Reis, para onde manda que se transfira a espada de D. Afonso Henriques que estava no seu túmulo, em Coimbra) e um jardim para as mulheres da cidade (Jardim de são Lázaro).

Atribui à cidade o título que ainda hoje a define — Invicta —, acrescentado aos outros que o Porto já detinha: “Antiga, Muy Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto”. Confere-lhe a mais alta condecoração do país: a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Decreta que o segundo filho do Rei de Portugal passe a ostentar o título de Duque do Porto, de cuja coroa sobressai “um dragão negro das antigas armas dos senhores reis d’estes reinos”. E doa o seu coração à cidade –— atualmente guardado numa urna de prata na Igreja da Lapa, que D. Pedro frequentou durante o Cerco.

A 14 de janeiro de 1837, por carta régia redigida por Almeida Garrett, D. Maria II outorga à cidade um novo brasão (que incluía a coroa ducal, e portanto a figura do dragão), onde estão representados os agradecimentos de D. Pedro.

Brasão da cidade do Porto conforme foi outorgado por D. Maria II, em 1837, na estátua de D. Pedro IV MARGARIDA MOTA

Símbolo das armas da Casa Real Portuguesa e personificação dos valores que sobressaíram durante o Cerco do Porto, o dragão passa a figurar, como elemento decorativo, em dezenas de locais por toda a cidade.

Pode-se vê-lo na fachada da Câmara Municipal (Avenida dos Aliados), no Palácio da Justiça (Cordoaria), na estátua equestre de D. Pedro IV (Praça da Liberdade), na estátua do Infante D. Henrique (Jardim do Infante D. Henrique), na Casa dos 24 (junto à Sé Catedral), no Palácio da Bolsa, e no altar onde está depositado o coração de D. Pedro IV.

Estes dragões, sintetiza Joel Cleto, têm a ver “com o Duque do Porto e, acima de tudo, com o Cerco do Porto e com o caráter invencível, resistente, heroico, imortal, indomável da cidade do Porto.” Tudo o que um portista reconhece no “seu Porto”.

Desde 2015 que, numa iniciativa do Museu do Dragão, Joel Cleto é o guia da “Rota do Dragão”, um passeio a pé pelas ruas do Porto com paragens junto a fontanários, estátuas e monumentos decorados com dragões. A 18 de maio arranca a primeira visita de 2018, outras três se seguirão a 24 de junho, 14 de julho e 29 de setembro.

A origem da relação entre o dragão e o FCP data de 1922, quando o clube, fundado 29 anos antes, adota aquele que é o seu emblema atual, e que mais não é do que a sobreposição das armas da cidade promulgadas por D. Maria II (onde um dragão encima a coroa ducal) ao emblema original do clube (uma bola de futebol antiga azul com as letras FCP a branco).

Símbolo do FCP, no “cogumelo” que funciona como bilheteira, junto ao Estádio do Dragão MARGARIDA MOTA

O dragão passa, então, a fazer parte do património do FCP. E assim continuará mesmo após o Estado Novo ordenar uma reforma heráldica e “declarar guerra” à imagem do dragão.

Através de uma portaria com data de 25 de abril de 1940, é aprovada uma nova constituição heráldica das armas, selo e bandeira dos municípios portugueses, onde ficou evidente a vontade de apagar dos brasões de concelhos e freguesias todos os resquícios liberais e monárquicos. Das armas da cidade do Porto, desapareceu — até aos dias de hoje — a coroa ducal com o dragão, substituída por uma coroa encimada por cinco castelos.

Mas na cidade, nem todas as instituições acataram a ordem do Estado Novo. “Algumas mantiveram a coroa e o dragão nos seus emblemas, que lá continuam nas suas sedes e nas fachadas dos seus edifícios”, diz o historiador. “É o caso do Orfeão do Porto, dos Bombeiros Portuenses, da Associação de Futebol do Porto e de duas instituições poderosas da cidade: a Associação Comercial do Porto e o FCP.”

Ao recusar adotar as novas armas da cidade impostas pelo Estado Novo, o FCP teve na manutenção da coroa e do dragão uma manifestação de resistência em relação ao poder central. “Desde muito cedo que o clube tem orgulho na presença do emblema da cidade no seu lema. O próprio hino do FCP diz isso: ‘Teu pendão leva o escudo da cidade, Que na história deu o nome a Portugal’”, recorda Joel Cleto.

Hino do Futebol Clube do Porto, exposto no Museu do Dragão MARGARIDA MOTA

Já com Pinto da Costa na presidência, o dragão toma o clube “de assalto”. O dragão dá nome ao estádio, ao museu e ao pavilhão das modalidades (Dragão Caixa). O projeto de formação desportiva chama-se Dragon Force, organizado em torno do lema “Tu tens o poder do Dragão”. O clube publica a revista “Dragões” e premeia atletas e funcionários com um Dragãos de Ouro. No estádio, em dias de jogos, a mascote Draco partilha o palco com “a equipa dos dragões”.

“Julgo que foi uma reação aos clubes da capital, que começaram a ser identificados como ‘o clube da águia’ e ‘o clube do leão’”, conclui Joel Cleto. “Mas pegou com grande sucesso.”

(Foto principal: O dragão, na parede exterior do estádio do Futebol Clube do Porto MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

“Mexeu com Marielle, atiçou o formigueiro”

Brasileiros e portugueses a uma só voz, em frente ao Consulado do Brasil no Porto. Mais do que uma manifestação de solidariedade para com Marielle Franco, a vereadora recentemente assassinada, foram apontadas soluções para o Brasil: “Não tem saída, só a educação salva”

“Alguém tem fita cola?” Terminada a manifestação “Marielle, Presente!”, em frente ao Consulado-Geral do Brasil, no Porto, houve quem sugerisse deixar os cartazes no local do protesto para que as mensagens chegassem a Brasília. Eram cerca das oito da noite de segunda-feira e a porta de entrada do edifício já estava encerrada. Colar os cartazes ao vidro parecia uma opção razoável, até se perceber que, por baixo da porta, havia uma ranhura suficiente larga para enfiar os cartazes. O chão da entrada do prédio rapidamente ficou coberto com algumas inquietações que assolam os brasileiros da Invicta: “Quem matou Marielle?” “Até quando vamos perguntar ‘até quando’?”

Para trás, ficava hora e meia de palavras de ordem, das quais a mais repetida foi “Marielle”, a vereadora do município do Rio de Janeiro assassinada a tiro, na semana passada, quando seguia de carro após um encontro com mulheres negras.

“Este caso diz-nos que, no Brasil atual, muito se faz mas nada se faz”, desabafa Sílvia Aline Ribeiro, uma baiana de 32 anos, a viver no Porto há dois anos e meio. “Ao invés de se investir em educação, e outras prioridades sociais, está-se a colocar o exército nas ruas para atacar os bandidos, só que eles não sabem quem é e quem não é bandido. Então, se você é negro ou pobre, você é bandido.”

Sílvia vai interrompendo a conversa para unir a sua voz às palavras de ordem que se vão sucedendo. “Há muitos assassínios, muita gente a morrer injustamente e a Marielle estava a investigar essas situações.”

Mulher, negra, lésbica e favelada

Marielle Franco, de 38 anos, investigava a violência policial nas ruas do Rio de Janeiro. A sua execução “revela o preconceito, o racismo e a dificuldade que o povo tem na luta pelos direitos humanos”, defende Pedro Valle, de 23 anos, estudante de Gestão de Património, no Porto.

“Há muita coisa que precisa de ser mudada, principalmente em relação à mulher: colocar a mulher no poder, aceitar a palavra da mulher, das pessoas negras, das pessoas faveladas. Essas pessoas precisam de ser ouvidas. Essa é a maioria dos brasileiros.”

Essa era também a realidade de Marielle – mulher, negra, lésbica, nascida na favela da Maré. A pulso, a ativista fintou um destino que parecia traçado à nascença, aproveitando as políticas de integração. Estudou Sociologia e Ciência Política e conquistou a confiança do povo para desempenhar um cargo público.

“A maioria dos brasileiros não é como os que vivem em Portugal, que têm opções e oportunidades”, continua Pedro. “Essa maioria não está a ser ouvida, precisa de ‘lugar de fala’”, conceito que surgiu, no debate público, como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados. “O povo negro precisa de ser ouvido, inclusive fora do Brasil.”

É o caso de Raísa Cabral, fisioterapeuta a trabalhar em Portugal há oito meses. “Nós somos a maioria da população”, recorda esta carioca de 26 anos. “Somos os que mais morrem de forma violenta, porque a maioria de nós é marginalizada, desde a escravatura. E isso não evoluiu ao ponto de, hoje, podermos ter uma vida equiparada à de uma pessoa branca. Somos a maioria que está nas favelas, a maioria que estão nas escolas públicas, a maioria que não tem acesso a educação, a saúde e aos direitos básicos…”

O frio que pontuou a chegada da noite na Invicta não desmobilizou as centenas de pessoas que se concentraram em frente ao n.º 20 da Avenida de França, próximo da Rotunda da Boavista. Nas mãos, muitas erguiam pequenos papéis onde, no verso do rosto de Marielle, estava transcrita a letra do “Canto das Três Raças”, de Clara Nunes, tema que fala do povo indígena, dos negros e da luta pela liberdade.

Ao ritmo de um grupo de percussão, que ia marcando o compasso, as mensagens foram ganhando criatividade – “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro”.

“Os brasileiros não estão a viver num estado de direito, mas num estado de exceção”, continua Raísa. “Mais do que uma execução, foi deixado um recado: se a gente continuar a falar, eles vão continuar a matar quem se levantar contra o que está a acontecer no nosso governo. Eu acredito que o Brasil tem um governo golpista, o Presidente não foi eleito pelo povo. Isso eles deixaram bem claro.”

A intervenção militar decretada por Michel Temer, que fez o Rio regressar aos tempos da ditadura e colocar o exército nas ruas, até ao fim do ano, para controlar a violência, mereceu muitas vaias. “Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da polícia militar”, gritou-se.

“Eu vivi no Rio de Janeiro a minha vida inteira”, diz Pedro. “Nunca vi tal coisa, é um absurdo, para mim, imaginar que a cidade está a ser tomada por militares. Acredito que isso aconteça por interesses políticos e financeiros, já que antes de isso acontecer nenhuma medida foi tomada. Falaram que não tinha mais jeito, que era preciso ajuda federal, mas não tomaram nenhuma medida antes disso.”

A carioca Raísa concorda. “A priori, os militares nas ruas do Rio não é útil. Eles têm ordem para entrar nas comunidades e agem com violência. Essa não é a melhor medida. A principal medida devia ser a descriminalização das drogas, retirar esse poder aos traficantes.”

“O povo não é bobo!”

Paralelamente à violência gratuita da polícia, os manifestantes criticaram alguma cobertura noticiosa do caso – “Abaixo a Rede Globo! O povo não é bobo!” “A Globo filtra as notícias que são dadas ao povo”, explica Sílvia. “É do interesse só de uma classe branca, que está no poder. Na primeira notícia, a Globo disse que Marielle tinha sido executada. Depois corrigiu a notícia e disse que se tinha tratado de um assalto.”

Mais do que uma demonstração de solidariedade para com Marielle Franco, os brasileiros a viver no norte de Portugal procuraram apontar soluções para alguns dos problemas do Brasil.

“Deveria ser dada mais atenção à classe pobre”, defende Sílvia. “Não tratá-la como bandidos, mas tentar melhorar a desigualdade social para que os negros percebam que podem ter voz e podem ser mais ativos politicamente.”

“Não tem saída, só a educação salva”, concorda Raísa. “Seria positivo um maior investimento na educação, uma diminuição dessa militarização da polícia, uma consciencialização do povo em relação aos seus direitos e deveres.”

Todos esperam que a morte de Marielle não tenha sido em vão e que os protestos que ela inspira continuem e que deles frutifique uma maior consciência cívica. Como se lia num dos cartazes erguidos à porta do Consulado brasileiro: “Não sabiam que eras semente!”

(Foto: Marielle Franco, em agosto de 2016 MÍDIA NINJA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 20 de março de 2018. Pode ser consultado aqui