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Nassíria longe do paraíso

A cidade que vai acolher os 128 agentes da Guarda Nacional Republicana — Nassíria — era, desde o fim da guerra (1 de Maio) e até quarta-feira, das mais pacíficas do Iraque. «Apenas» um sargento norte-americano tinha lá morrido, em Julho, na sequência de um acidente de viação.

Mas após o atentado suicida contra o quartel-general das tropas italianas, de que resultaram pelo menos 26 mortos (entre os quais 12 «carabinieri» e cinco soldados), Nassíria tornou-se mais uma cidade «infectada» pela resistência terrorista e mais um ponto no mapa de preocupações da coligação.

O ataque contra os «carabinieri» — o maior e mais mortífero contra as forças da coligação estacionadas na região sob comando britânico (que superintende a força italiana e, no futuro, a portuguesa) — veio demonstrar que a reacção terrorista à presença militar estrangeira está a conquistar todo o Iraque. O sul do país, de maioria xiita, vinha sendo poupado aos ataques perpetrados pela guerrilha, mais frequentes no chamado «triângulo sunita» (Bagdade, Tikrit, Falujah).

A instabilidade no terreno é cada vez mais visível e o ataque em Nassíria culminou essa degradação. A Casa Branca demonstrou ter compreendido o aviso e empreendeu já uma viragem na sua estratégia político-militar, com George W. Bush a anunciar estar em curso a aceleração da transferência do poder para os iraquianos.

Mas até que tal se efective, Washington terá de iludir a crescente degradação da situação no terreno, através de demonstrações de força. Na sequência do atentado em Nassíria, foi lançada a operação «Martelo de Ferro», uma contra-ofensiva em larga escala que representa um retrocesso na decisão dos Estados Unidos de limitar ao máximo as acções ofensivas.

Países revêem decisões

A calma aparente que se vivia em Nassíria no pós-guerra faz definitivamente parte do passado e os países chamados a servir com homens no processo de reconstrução reequacionam os seus planos, cada vez mais desajustados à situação no terreno. O Japão adiou o envio de um contingente, a Coreia do Sul vai mandar menos homens do que o previsto e a Dinamarca congelou o envio suplementar de tropas.

Nassíria parece estar de volta aos dias da guerra, quando foi das cidades que maior resistência ofereceu à passagem das forças anglo-americanas a caminho de Bagdade. Situada na margem norte do rio Eufrates, Nassíria, com mais de meio milhão de habitantes, tinha uma grande importância estratégica para o abastecimento, em homens e equipamento, da capital, 375 quilómetros a noroeste.

Ainda durante a guerra, Nassíria foi palco de um dos episódios mais mediáticos e também mais controversos: o aparatoso resgate da soldado norte-americana Jessica Lynch, de 19 anos, feita prisioneira na sequência de uma emboscada, a 23 de Março, de que resultaram nove soldados mortos. Lynch acusa agora o Pentágono de ter encenado a sua libertação com fins propagandísticos.

É, pois, numa cidade confrontada com a ameaça terrorista que os GNR portugueses irão servir. Por enquanto, e até terem condições para se instalarem em Nassíria, ficarão aquartelados em Bassorá, a maior cidade do sul do Iraque, onde está sediado o comando britânico. Setenta quilómetros para norte, situa-se Qurna, onde se unem os rios Tigre e Eufrates e onde, conta a lenda, terá florido o bíblico Jardim do Éden. Hoje, porém, a região está muito longe de ser um paraíso.

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de novembro de 2003

Embaixador do Paquistão: “Nos meus encontros com a comunidade, aconselho a que respeitem sempre a lei do país, para que sejam respeitados”

Portugal e o Paquistão celebram 75 anos de relações diplomáticas. Em entrevista ao Expresso, o embaixador paquistanês, Muhammad Khalid Ejaz, fala sobre o potencial da relação bilateral, dos principais desafios que o seu país enfrenta e da integração da comunidade paquistanesa em Portugal. Após a rusga no Martim Moniz, admite, “houve alguma preocupação entre os membros da comunidade”

o Paquistão levava apenas dois anos de vida, enquanto Estado independente, quando, a 7 de novembro de 1949, Portugal estabeleceu relações diplomáticas bilaterais.

Essa ligação revelou-se preciosa quando a União Indiana invadiu Goa, em dezembro de 1961. Então, o Paquistão prestou apoio logístico e diplomático, possibilitando a saída de muitos portugueses daquela possessão ultramarina.

O episódio foi recordado pelo atual embaixador do Paquistão em Portugal, numa entrevista ao Expresso, como exemplo da cooperação que os dois países têm desde a primeira hora.

Muhammad Khalid Ejaz iniciou a missão diplomática em maio passado. Diz que trabalha “dia e noite” para que “os estereótipos contra o Paquistão sejam eliminados”.

Portugal e o Paquistão estabeleceram relações diplomáticas há 75 anos. O que há para celebrar?

Desde o início, as relações têm sido muito amigáveis e de grande cooperação. Desenvolvemos boas memórias. Cooperámos nas Nações Unidas em diferentes ocasiões. Lenta e progressivamente, o nosso comércio também se desenvolveu. Atualmente, o comércio bilateral ronda os 300 milhões de dólares [287,9 milhões de euros], mas o potencial é muito grande. Paquistão e Portugal têm muito para oferecer um ao outro.

Antes, enfrentávamos dois desafios, que se reduziram nesta era moderna. Por exemplo, a barreira linguística. Agora, temos tradução disponível online, que se pode fazer facilmente a partir do telemóvel. Penso que a comunicação entre os empresários dos dois países pode aumentar.

Em segundo lugar, temos a distância geográfica. Mas com as modernas tecnologias, é muito fácil organizar reuniões online. Desta forma, as pessoas aproximam-se mais umas das outras.

E há uma comunidade paquistanesa considerável no país…

Nos últimos 20 anos, a comunidade paquistanesa em Portugal cresceu de forma constante. Atualmente, somos cerca de 30 mil paquistaneses naturalizados ou com residência permanente. E depois entre 5000 e 7000 estão à espera de regularizar a sua situação. Estas pessoas constituem uma boa ponte entre os dois países, já que permitem que os nossos contactos interpessoais melhorem.

Existe também uma comunidade estudantil. Na Universidade do Minho, onde estive recentemente, há cerca de 25 estudantes paquistaneses a estudar. Nas universidades de Lisboa, de Coimbra e do Algarve, que já visitei, também há um número considerável de estudantes paquistaneses.

Vêm propositadamente para estudar em Portugal?

Sim. Alguns vieram da Ucrânia. Mas enfrentam desafios, como o facto de existirem certos estereótipos contra o Paquistão. Alguns são admitidos nas universidades portuguesas, mas não conseguem obter vistos com facilidade.

O Paquistão foi uma colónia britânica. Por isso, inicialmente, os nossos estudantes iam para os Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, países de língua inglesa. Com o passar do tempo, por várias razões, começaram a ir também para universidades europeias. Acresce que as universidades americanas e australianas são muito caras. Há paquistaneses que gostariam de vir para Portugal para obter formação superior e diversificar a sua formação.

O Paquistão tem cerca de 225 milhões de habitantes e uma diáspora de cerca de 10 milhões. As pessoas querem enviar os seus filhos para países seguros para frequentarem o ensino superior, e encontraram um bom sítio em Portugal. Se os estereótipos contra o Paquistão forem eliminados — trabalho para isso dia e noite —, os paquistaneses, que são muito estudiosos e bons alunos, também acrescentam valor ao ambiente académico.

O que alegam as autoridades portuguesas para não concederem os vistos?

Por vezes, dizem que a pessoa não dispõe de fundos suficientes. Outras vezes, que o seu objetivo não é vir estudar. Destaco o caso das raparigas. No Paquistão, nos últimos 20, 25 anos, as mulheres estudam mais. Estão a obter mais educação superior e a ter mais mérito também. Algumas querem vir para universidades melhores, fazer mestrado e doutoramento. Querem ter uma experiência europeia e gostariam de vir para Portugal. De acordo com os nossos valores culturais, estas raparigas acabam por ter de regressar ao seu país.

Tenho procurado encontrar-me com responsáveis e dizer-lhes que estas estudantes proporcionam muitas oportunidades para as universidades, desde logo ao nível do conhecimento do mundo muçulmano, do Paquistão e dos países orientais. O intercâmbio de conhecimentos seria benéfico para ambas as partes. As relações bilaterais devem assentar no comércio e nos intercâmbios humanos.

Que relatos lhe chegam sobre a integração dos paquistaneses na sociedade portuguesa?

Inicialmente, chegavam jovens solteiros que pensavam em ir imediatamente para outro país. Mas agora há famílias que querem ficar. Conheci famílias em que o pai ainda está a trabalhar no Médio Oriente e a mãe e os filhos estão cá. O pai está a trabalhar e a trazer dinheiro para Portugal e os filhos estão a estudar em universidades e colégios em Portugal. Para estas pessoas, Portugal é a sua casa, querem integrar-se, conhecer pessoas e interagir.

E aprendem a língua?

Eles estão a aprender a língua. Os portugueses são pessoas muito amigáveis, à exceção de algumas pessoas que têm tendências islamofóbicas. Por isso, aqui, os paquistaneses não se sentem ameaçados. Aqui, uma mulher com véu ou com vestidos islâmicos não sente que alguém a possa prejudicar. Sente-se segura.

Após a rusga no Martim Moniz, ouviu queixas relativamente a atos de racismo ou xenofobia contra a comunidade?

Quando aconteceu esse incidente, no Martim Moniz, várias pessoas contactaram-me. A segur, fui pessoalmente visitar aquela zona. Houve alguma preocupação entre os membros da comunidade. Por vezes, as autoridades têm de tomar determinadas medidas porque têm de garantir a lei e manter a área segura. Nos meus encontros com os paquistaneses, aconselho-os a respeitarem sempre a lei do país, para que sejam respeitados. Mas por causa de algumas pessoas que os designam com de uma região que agrega vários países, incluindo o meu [hindustânicos], isso reverbera na sua psique. Eu defendo que se formos boas pessoas, se nos concentramos na nossa educação e respeitarmos o vizinho, as pessoas continuarão a respeitar-nos e não haverá retórica que funcione contra.

Quais são os principais problemas que o Paquistão enfrenta atualmente?

Há muitos problemas que decorrem da nossa vizinhança. Continua a ser uma região conturbada. No território do Paquistão, há mais de dois milhões de refugiados afegãos. Alguns são extremistas, foram doutrinados e algumas pessoas têm, digamos, as suas próprias ideias de tribalismo, que querem impor também no Paquistão.

Por vezes, militantes extremistas atacam as nossas instituições, as nossas forças, por não seguirmos as suas ideias. O Paquistão é uma nação progressista, muito resiliente. Proporcionamos igualdade de oportunidades e as nossas raparigas estão a destacar-se em todos os campos. Do ponto de vista tribal, isso não é bom, mas não podemos ceder às pressões, temos de seguir caminho e, enquanto nação, decidir o nosso próprio destino. Um dos desafios que enfrentamos são os ataques terroristas através da fronteira.

Na nossa fronteira oriental, há um grande conflito entre o Paquistão e a Índia por causa de Caxemira, que é a zona mais militarizada do mundo per capita. No lado ocupado pela Índia, há mais de 800 mil militares, que cometem excessos. As pessoas são assediadas, as mulheres molestadas, idosos e crianças feridos. Existe uma grande pressão sobre os direitos humanos. E isso também se repercute no nosso lado.

Depois, também somos vizinhos do Irão. A posição geográfica do Paquistão coloca muitos desafios, mas queremos convertê-los em oportunidades. Queremos ser uma ponte entre o Oriente e o Ocidente e entre diferentes religiões. E queremos proporcionar corredores comerciais.

Como pode ser resolvida a disputa pela Caxemira?

Este é um conflito reconhecido internacionalmente. A vontade do povo da região da Caxemira deve ser expressa através de um plebiscito sob os auspícios das Nações Unidas, como determinam as resoluções do Conselho de Segurança. Se isso acontecer, qualquer que seja a decisão é aceitável para nós.

Usar a força militar pura e simples não é aceitável. Agora, [os indianos] estão a tentar mudar a demografia da Caxemira. Adotaram novas leis e trazem colonos para a região. Esta política contraria as Convenções de Haia. Condenamo-lo veementemente e pedimos à comunidade internacional que analise o assunto.

Está em causa um país [a Índia] que aspira a ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O seu historial em matéria de direitos humanos é muito mau. Este problema é uma mancha para eles.

Muitas vezes se diz que o conflito entre a Índia e o Paquistão é aquele que com mais facilidade pode evoluir para uma guerra nuclear. Os dois países estão conscientes dessa linha vermelha? Ou o mundo deve preocupar-se?

É verdade que ambos os países têm armas nucleares. E sendo o Paquistão um país muito responsável, defendemos sempre que essas armas não podem ser usadas em nenhuma situação. Desenvolvemo-las apenas por uma questão de dissuasão. A Índia fabricou-as e detonou-as primeiro. Se não tivermos armas nucleares, ficamos sempre ameaçados e sob coação.

Nos anos 1990, o Paquistão foi um dos três países a reconhecer o governo dos talibãs, no Afeganistão. Agora que eles voltaram ao poder, não os reconhece. O que mudou?

O Paquistão tem essa experiência anterior, por isso, desta vez, fomos muito cautelosos e esperamos para ver, juntamente com a comunidade internacional, como se comporta o novo regime. Damos-lhes essa oportunidade. Continuamos a dialogar com eles, a nossa embaixada está a funcionar e, devido à proximidade, as relações comerciais estão a decorrer, bem como o intercâmbio de pessoas. Mas, mesmo assim, juntamo-nos à comunidade internacional para decidir, como um todo, o que fazer.

Donald Trump está de regresso à Casa Branca. No seu primeiro governo, ele cortou a ajuda ao Paquistão. O que espera desta vez?

O Paquistão tem uma relação multifacetada com os Estados Unidos. Somos um grande aliado fora da NATO. A América é o maior parceiro comercial do Paquistão e temos uma grande diáspora nos EUA. Consideramos que as nossas relações vão continuar a crescer. Congratulamo-nos com qualquer que seja a decisão do povo norte-americano.

Desde 1 de janeiro, o Paquistão é membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU. Quais são as prioridades?

É a oitava vez que o Paquistão, por uma maioria esmagadora, é eleito para um assento não permanente. O Paquistão sempre se esforçou e continuará a esforçar-se pela paz, segurança e estabilidade no mundo. E continuaremos a dar voz às nações mais pequenas, que não têm um lugar permanente. Continuaremos também a dizer que as disputas, especialmente as de Caxemira e da Palestina, que há muito se arrastam, devem ser resolvidas de acordo com as resoluções da ONU.

Em segundo lugar, o Paquistão gostaria que os desafios colocados pelas alterações climáticas, que afetam toda a gente, fossem resolvidos de forma equitativa e que fossem encontradas soluções amigáveis e viáveis.

Como tem recuperado o país das grandes cheias de 2022? Um terço do território ficou submerso…

Atualmente, as inundações tornaram-se desproporcionais. Ocorrem quase todos os anos. Estamos a tentar mitigar os problemas, mas os glaciares estão a derreter e há muitas outras alterações climáticas que provocam inundações. Por isso dizemos que não se trata de um problema individual, mas sim de um problema coletivo que a comunidade internacional deve enfrentar. Estamos muito gratos ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que visitou o Paquistão para expressar a sua solidariedade para com as pessoas afetadas pelas cheias. É um bom amigo dos paquistaneses.

Por causa do degelo dos glaciares dos Himalaias, os paquistaneses estão na fila da frente do impacto das alterações climáticas…

Sim, testemunhamo-lo. E não somos poluidores, não produzimos muita pegada de carbono, mas somos muito afetados pelas alterações climáticas.

O Paquistão vê necessidade de reformar o Conselho de Segurança da ONU?

A necessidade de reforma é transversal a tudo. Mas a reforma não deve ser feita de forma a prejudicar ainda mais o sistema. Se acrescentarmos um novo membro permanente com um mau historial em matéria de direitos humanos e desejos hegemónicos, estaremos a acrescentar mais problemas. O Paquistão gostaria de ver algumas reformas mais representativas e equitativas.

O que levou o Paquistão a candidatar-se aos BRICS?

Contivemo-nos durante muito tempo e não nos candidatámos. Queremos fazer parte de organizações e sistemas internacionais onde se procurem instrumentos alternativos, que possam aumentar a cooperação internacional. O grupo dos BRICS aumentou exponencialmente e está a crescer muito rápido. O Paquistão quer fazer parte e contribuir para a sua importância. Os nossos vizinhos [Índia, China e Irão] também aderiram. Vários países muçulmanos aderiram ou querem aderir. Demorámos algum tempo a pensar no assunto, não nos apressámos e decidimos fazê-lo.

(FOTO PRINCIPAL Muhammad Khalid Ejaz é embaixador do Paquistão em Portugal desde maio de 2024 ANTONIO PEDRO FERREIRA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui