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Indígenas são prioridade no plano de vacinação contra a covid-19, mas a maioria fica de fora

O Governo brasileiro incluiu os povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra a covid-19, mas excluiu os que vivem em zonas urbanas. “Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo”, alerta ao Expresso uma ativista brasileira da organização Survival International. A vacinação é apenas o último capítulo de um rol de atitudes negligentes de Jair Bolsonaro em relação aos índios brasileiros. Há quatro dias, dois chefes tribais denunciaram o Presidente junto do Tribunal de Haia por crimes contra a Humanidade

Margaret, Raia, Vanda. Estas três mulheres, a quem, sem as conhecermos, conseguimos com facilidade atribuir vidas contrastantes, foram notícia num passado recente por se terem tornado rostos de esperança da cura para a covid-19.

Margaret Keenan, britânica de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada em todo o mundo. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, foi a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia. Mais recentemente, Vanda Ortega tornou-se a primeira pessoa indígena a ser imunizada no Brasil.

Esta enfermeira de 33 anos, da tribo Witoto, vive no Parque das Tribos, bairro da cidade de Manaus (capital do estado do Amazonas), que enfrenta o colapso do sistema de saúde por conta da pandemia e onde, recentemente, morreram pacientes por falta de oxigénio.

O Parque das Tribos é casa para cerca de 2500 indígenas de mais de 30 etnias. Mas a sorte de Vanda não é extensível ao resto da sua comunidade, que não sabe ainda quando será imunizada. Os povos indígenas foram incluídos no grupo prioritário da primeira fase do plano nacional de vacinação, mas a maioria deles é exceção.

“Não há surpresa quanto à prioridade da vacinação para os indígenas. Em campanhas de vacinação anteriores, de prevenção de outras doenças, os indígenas foram também grupos prioritários. Isso ocorre porque são um grupo que possui uma imunidade mais baixa e são socialmente vulneráveis”, explica ao Expresso Priscilla Schwarzenholz, da organização Survival International Brasil.

Porém, “a prioridade foi dada apenas aos indígenas que vivem em aldeias, excluindo os que vivem nas cidades”, como os moradores do Parque das Tribos. Entre os beneficiários estão milhares de membros da tribo Warao, oriunda da zona do delta do rio Orinoco, na Venezuela, que vive refugiada no Brasil desde o colapso económico do país, em 2018.

A 14 de janeiro, ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que entre os grupos prioritários estão 410.348 “indígenas aldeados”. Isto corresponde a menos de metade da população indígena apurada no censo de 2010.

CENSO DE 2010

896.917
pessoas pertencem a povos indígenas

305
povos indígenas, pelo menos, existem no Brasil

A exclusão de parte significativa da população indígena é incompreensível à luz dos números da pandemia, que comprovam a vulnerabilidade das tribos. “Os dados de infeção e óbitos de indígenas pela covid-19 mostram que ambas as taxas superam a média nacional”, diz a ativista brasileira. “Estima-se que, atualmente, a mortalidade entre os indígenas seja 16% superior à da média da população brasileira.”

Até esta terça-feira, a APIB tinha contabilizados:

  • 936 indígenas mortos pela covid-19. O povo Xavante é o que regista mais óbitos
  • 46.834 casos de infeção entre indígenas
  • 161 tribos atingidas em todo o país

“Os indígenas da região amazónica são cinco vezes mais atingidos pela covid-19 do que o resto do Brasil”, particulariza Priscilla Schwarzenholz. “Isso é muito preocupante, pois significa que [a pandemia] está presente no território com o maior número de povos indígenas isolados do mundo. Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo.”

As tribos indígenas vivem exclusivamente do que a natureza lhes dá. Guardiãs das florestas, são botânicos e zoólogos de excelência. Desenvolvem os seus próprios medicamentos e métodos de cura a partir de plantas e animais, e são autossuficientes para tratar as doenças das florestas — mas não as doenças que decorrem do contacto com o exterior, como sarampo, gripe, malária, febre amarela ou tuberculose.

Para controlar estas maleitas, as vacinas têm sido fundamentais, como agora acontece em relação à covid-19. Mas como em qualquer sociedade desenvolvida, também entre os indígenas há resistência à toma da vacina, pois são vulneráveis à propagação de mentiras e boatos.

Na reserva guarani Te’yikue, no estado de Mato Grosso do Sul, acredita-se que a doença surge de feitiços e “espíritos maus” e que quem for vacinado virará vampiro. Mensagens de WhatsApp dizem que os índios são um grupo prioritário para funcionarem como cobaias e que a vacina provoca cancro e altera o ADN das pessoas.

“Há também denúncias feitas por indígenas de que missionários estão a promover discursos antivacina em aldeias pelo Brasil”, alerta a ativista da Survival International. Relatos de que os religiosos se referem à vacina como a “marca da besta” e ao que está na seringa como “chip líquido”.

Sexta-feira passada, a APIB lançou a campanha “Vacina, Parente!” para exigir ao Governo federal a imunização de toda a população indígena e combater a desinformação. “Parente” é a expressão usada nas tribos para denominar indígenas de todas as etnias e diferenciá-los dos não-índios.

Jair Bolsonaro, que já foi infetado, é um dos principais porta-vozes da atitude antivacinas no Brasil. O Presidente brasileiro já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para efeitos colaterais em termos dignos de um filme de ficção.

“Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

A forma como o Presidente desincentiva à toma da vacina é apenas a última das manifestações negligentes de Bolsonaro em relação aos povos indígenas. “Desde que Bolsonaro ganhou as eleições, o número de invasões e ataques a comunidades indígenas aumentou drasticamente”, refere Priscilla Schwarzenholz. “Isso é resultado do seu discurso racista e das políticas anti-indígenas”, que a ativista enumera:

  1. Promoção de um projeto de lei para abrir territórios indígenas à mineração em grande escala.
  2. Restrição das ações de órgãos governamentais essenciais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsáveis pela proteção e defesa das terras e vidas dos povos indígenas.
  3. Apoio à proposta do “Marco Temporal”, ação no Supremo Tribunal Federal que defende que os indígenas só possam reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 (data da assinatura da Constituição do Brasil). “Se for aprovado, centenas de territórios indígenas podem ser afetados e dezenas de povos isolados estariam em risco”, comenta a ativista.

“O Governo Bolsonaro também está incentivando à disseminação da covid-19 em territórios indígenas, deixando de protegê-los contra invasores e bloqueando planos de proteção para o combate do vírus nas aldeias”, acrescenta.

“Até ao momento, nenhum plano federal de combate ao coronavírus nas comunidades indígenas foi colocado em prática. Não se trata de omissão, mas de uma clara intencionalidade de não combater a epidemia, demonstrando nitidamente o plano genocida desse governo contra os povos indígenas do Brasil.”

Este histórico do Presidente brasileiro, que leva apenas dois anos no poder, levou dois “caciques” (chefes índios) a denunciar Bolsonaro, sexta-feira passada, diante do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a Humanidade.

Raoni Metuktire e Almir Suruí responsabilizam Bolsonaro pelo avanço do desmatamento e das queimadas na região da Amazónia, pela transferência forçada de comunidades, por ataques às populações indígenas (alguns dos quais resultam em mortes) e pelo desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A queixa pretende também que o TPI reconheça o crime de ecocídio — destruição do meio ambiente a um nível tal que comprometa a vida humana — em face das consequências ambientais da política de Bolsonaro.

Em entrevista à Agência Pública, o advogado que defende os caciques, o francês William Bourdon (que já defendeu Julian Assange, Edward Snowden e agora Rui Pinto), disse haver documentação exaustiva que prova que Bolsonaro “anunciou, premeditou e implementou uma política sistemática de destruição” total da Amazónia.

“É muito mais do que assédio, é muito mais do que uma política cínica de desprezo, é uma política de destruição, pela interação de muitos crimes. E é a interação de todos esses crimes que caracterizam os crimes contra a Humanidade.”

(FOTO Jovem indígena do povo Awá, o mais ameaçado do mundo SURVIVAL INTERNATIONAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Bolsonaro levou uma indígena às Nações Unidas. A encenação correu mal

Jair Bolsonaro levou uma apoiante sua indígena à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde discursou esta terça-feira. O Presidente do Brasil quis calar o mundo que o acusa de negligência ambiental provando que os nativos da Amazónia estão com ele. A reação revoltada dos indígenas brasileiros ecoou em Nova Iorque

Ysani Kalapalo ao lado de Jair Bolsonaro, durante a viagem às Nações Unidas INSTAGRAM YSANI KALAPALO

O Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cumpriu esta terça-feira uma tradição com mais de 60 anos e realizou o discurso de abertura da 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. “Obrigado a Deus pela minha vida, pela missão de presidir o Brasil e pela oportunidade de restabelecer a verdade”, assim começou Bolsonaro um discurso de meia hora, grande parte dedicado à questão da Amazónia.

Sentada na plateia, integrada na delegação brasileira, esteve Ysani Kalapalo, uma indígena de 28 anos que Bolsonaro levou na comitiva. Habitante no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, Ysani — que no Twitter se descreve como “a indígena do século 21”, “apresentadora” e “YouTuber” — é uma crítica da retórica catastrofista que se seguiu aos grandes incêndios na Amazónia que, diz ela, decorre de notícias falsas.

Em Nova Iorque, Bolsonaro leu uma carta aberta de apoio à presença da indígena na sua comitiva assinada pelo “Grupo dos Agricultores Indígenas do Brasil”. Com ela, procurou responder a uma carta de repúdio divulgada horas antes onde os caciques (chefes) dos 16 povos do Território Indígena do Xingu dizem: “O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente nas redes sociais com o objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”.

E acrescentam: “O governo brasileiro não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida.”

Para Bolsonaro, a indígena era o melhor trunfo que poderia jogar diante do mundo para responder a quem o acusa de ser um governante negligente em relação ao ‘pulmão da Terra’ — ideia que Bolsonaro, na ONU, disse ser “um equívoco”, tal como dizer que a Amazónia é património da Humanidade é “uma falácia”. Indiferente às polémicas internas, Ysani foi, para Bolsonaro, a prova de que é apoiado pelas vítimas imediatas da destruição da Amazónia.

No Brasil, 14% do território está demarcado como terra indígena, há 225 povos indígenas identificados e referências a 70 tribos isoladas. Vivem do que a floresta lhes dá: alimentos e medicamentos, materiais para construir casas, arcos e flechas, cestas e redes. Essa autossuficiência faz deles botânicos e zoólogos de excelência — os melhores cuidadores que a Amazónia pode ter.

“Nossos nativos são seres humanos”, contrapôs Bolsonaro, que “querem e merecem usufruir dos mesmos direitos que todos nós”. “Infelizmente, algumas pessoas de dentro e fora do Brasil, apoiadas por organizações não governamentais, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.”

Uma das organizações que está na mira de Bolsonaro é a Survival International, considerada o movimento global de defesa dos povos indígenas. “Quando a floresta é destruída, o acesso aos territórios indígenas torna-se mais rápido e mais fácil, o que incentiva invasores ilegais: grileiros, mineiros, agricultores”, explica ao Expresso Fiona Watson, ativista da organização.

“Alguns incêndios começam deliberadamente, ateados por grileiros e colonos que querem roubar terras indígenas para vende-las ou ocupa-las ilegalmente. Muitos sentem-se encorajados pelo discurso de ódio do Presidente Bolsonaro e pelo seu apoio ao sector do agronegócio, interessado na exploração de terras indígenas.”

No estado brasileiro do Maranhão (nordeste), um grupo de Guajajaras — um dos povos indígenas mais numerosos no Brasil — realiza patrulhas na floresta. Conhecidos como “Guardiões”, estão atentos às visitas indesejadas de madeireiros e fazendeiros. “Eles são forçados a defender os seus territórios das máfias madeireiras e dos colonos que as invadem impunemente”, denuncia Fiona Watson. “É um trabalho perigoso, pois esses invasores estão fortemente armados.”

Data de 23 de julho o último assassínio conhecido de um indígena. O sexagenário Emyra Waiãpi, um dos líderes do povo Waiãpi, foi encontrado morto pela mulher junto a um rio, na região do Amapá. O cadáver tinha os olhos perfurados e o órgão genital decepado. Numa posição excecional na cultura waiãpi, os familiares autorizaram a exumação do cadáver para ajudar as investigações. Antecipando-se a conclusões, acusaram garimpeiros da morte de Emyra.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 24 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui