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Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Ben Ali caiu há 10 anos e o que se seguiu foi um caso de sucesso. Ou terá sido uma desilusão?

Há exatamente dez anos, o Presidente tunisino fugia do país, acossado por 28 dias de protestos populares. O investigador Álvaro de Vasconcelos, que acompanhou de perto o processo de transição democrática que se seguiu, celebra a existência de um país democrático no mundo árabe. Mas alerta também para os perigos populistas que brotam na cena política tunisina

“Tunísia: contágio democrático?” DAMIEN GLEZ / TOONPOOL

Dez anos após a Primavera Árabe, movimento de contestação popular que tomou as ruas de vários países árabes, a Tunísia é apontada como o único caso de sucesso, no sentido em que foi o único país que conseguiu pôr em marcha um processo de transição de um regime autocrático para uma democracia. Esta é, pelo menos, a avaliação que se faz fora de portas, porque dentro do país a sensação é outra.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, diz ao Expresso a politóloga Khadija Mohsen-Finan, que acaba de lançar o livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Democratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos, a democracia tornou-se um obstáculo à mudança e não é essencial, dadas as suas dificuldades diárias.”

Aquela que foi designada de “revolução de jasmim” trouxe liberdades várias — o multipartidarismo, uma nova Constituição (em 2014), direitos para as mulheres, liberdade de imprensa —, mas não trouxe mais emprego nem uma melhor qualidade de vida. O país tornou-se mais desigual, o desemprego é maior do que antes da revolução, afetando em especial os jovens, a corrupção aumenta de forma desenfreada e há grandes disparidades regionais. É flagrante o contraste entre a riqueza da costa e a pobreza do interior.

“As zonas do interior do país, fronteiriças à Argélia, são extremamente pobres. Continua a haver revoltas constantes, como as que levaram à revolução. A situação é grave, mas ao mesmo tempo este é um momento que deve ser festejado  há um país democrático no mundo árabe”, comenta ao Expresso Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, dedicado à discussão dos temas da democracia e das transições democráticas.

Faz esta quinta-feira dez anos que o ditador Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país para um exílio dourado na Arábia Saudita, encurralado por 28 dias de manifestações populares. A contestação fora desencadeada pelo ato desesperado de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante que se imolou pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca de frutas e legumes.

Ao derrubarem o muro do medo, os tunisinos incentivaram outros povos à revolta contra poderes autocráticos, em especial no Egito, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain — num movimento a que se convencionou chamar “Primavera Árabe”. Em quatro deles, os ditadores tombaram, mas só na Tunísia a democracia floresceu.

“A Tunísia é o que nos resta em termos de consolidação democrática das revoluções de 2011. É um regime constitucional, com uma Constituição extremamente avançada e um país onde existe uma sociedade civil muito ativa e onde a liberdade de expressão está garantida por lei”, enumera Vasconcelos. “Se compararmos com os regimes autocráticos da região, é um progresso extraordinário.”

Quatro fatores cruciais

País pequeno, com uma população homogénea (de quase 12 milhões) — sem o sectarismo da Síria ou o tribalismo da Líbia —, a Tunísia reuniu um conjunto de condições que possibilitaram que a transição democrática fosse desbravando terreno.

1. A MODERAÇÃO DOS ISLAMITAS. Após a revolução, o partido islamita Ennahda — fundado e liderado por Rached Ghannouchi, crítico de Ben Ali regressado do exílio em Londres após a queda do ditador — foi o vencedor das primeiras eleições democráticas livres, para a Assembleia Constituinte (2011). Ainda assim, aceitou repartir o poder com duas outras forças políticas numa tróica.

“O Ennahda optou por um processo democrático, por fazer pontes para os outros partidos, o que não aconteceu, por exemplo, no Egito, onde a Irmandade Muçulmana não fez pontes com os liberais.” Para realçar esse compromisso, em 2016, o Ennahda anunciou o abandono da sua agenda religiosa. Hoje, é o partido mais representado no Parlamento, presidido pelo seu líder, Ghannouchi. O Ennahda tem 52 deputados, num total de 217.

“Saímos do islão político para entrar na democracia muçulmana”
Rached Ghannouchi
fundador e líder do partido islamita Ennahda

A integração do Ennahda na cena política tunisina decorre muito da aprendizagem que os tunisinos fizeram do caso português. Ao longo da transição democrática, a experiência pós-revolucionária portuguesa foi um caso de estudo na Tunísia.

“Houve muitos seminários sobre a transição portuguesa, eu próprio organizei vários quando era diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia [2007-2012] e levei variadíssimos políticos portugueses, o Presidente Jorge Sampaio esteve muito presente”, recorda Álvaro de Vasconcelos.

“Discutiam muito que atitude tomar em relação aos partidos que alguns consideravam fora do sistema. A experiência portuguesa de integração de todas as forças políticas era muito referida, bem como o princípio de que a participação no processo democrático tornava os partidos mais respeitadores da Constituição, menos antissistema.”

2. O DINAMISMO DA SOCIEDADE CIVIL. O protagonismo da sociedade civil em todo o processo foi coroado com a atribuição do prémio Nobel da Paz 2015 ao Quarteto para o Diálogo Nacional, composto por quatro organizações da sociedade civil: uma central sindical, a Confederação da Indústria, a Liga dos Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados.

“A sociedade civil é muito forte, teve um papel motor na revolução e impôs os acordos aos partidos”, diz Vasconcelos, autor do livro “As Vozes da Diferença — A Vaga Democrática Árabe” (2012). “Teve um papel extremamente ativo para impedir que acontecesse na Tunísia aquilo que aconteceu no Egito — a criação de uma frente islamita tal que levasse ao poder uma coligação autoritária.”

3. A NÃO-INTERFERÊNCIA DOS MILITARES. Desde a primeira hora “os militares tunisinos recusaram-se totalmente a apoiar Ben Ali. Foram eles que lhe disseram para se ir embora. E nunca mais intervieram na vida política. Na Tunísia, eu falava com muitos sectores e nunca ninguém me disse: ‘Os militares pensam isto ou aquilo’, como se ouvia constantemente no Egito. Isso é um garante de que eventualmente os militares não apoiarão um golpe”.

4. A POUCA IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA. Contrariamente ao que aconteceu no Egito — peso-pesado da geopolítica do Médio Oriente —, o processo de transição tunisino decorreu sem interferências externas. Mas essa discrição teve um senão: “Fez com que, por exemplo, a Administração Obama, que começou por apoiar as transições democráticas nos países árabes, nunca desse muita atenção à Tunísia”, diz o investigador.

“E a União Europeia também parece mais preocupada com as questões da imigração, da luta contra o terrorismo, do que na consolidação da democracia na Tunísia, apesar de ter sido bastante importante ao não tomar partido contra os islamitas.”

Estes quatro fatores foram cruciais para tornar a revolução possível e concretizar um virar de página no país. Dez anos depois, todavia, o sistema político — descredibilizado por pelo menos dez grandes mudanças a nível governamental — enfrenta novos desafios, como o do populismo, entre islamitas e anti-islamitas, que se manifesta de múltiplas formas.

  • Desde 23 de outubro de 2019, a Tunísia tem um Presidente — Kais Saied — sem partido político. “Foi eleito como um homem só e gostaria de concentrar poderes a partir de um apelo ao povo”, comenta Álvaro de Vasconcelos.
  • Paralelamente, existe um partido salafita, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos e pela Arábia Saudita, que contesta o islamismo democrático do Ennahda. “Faz uma campanha identitária e extremamente violenta contra os direitos das mulheres, contra a laicidade, contra a França e contra o Ennahda.”
  • Restam antigos membros do regime, que reclamam o legado de Habib Bourghiba (Presidente entre 1957 e 1987) mas estão associados a Ben Ali (falecido em 2019). Estes saudosistas de tempos passados alimentam a tentação por um Presidente forte.

“Neste momento, as sondagens na Tunísia são lideradas pelo Partido Destoriano Livre, que defende o regresso ao presidencialismo e a concentração do poder numa figura, que depois pode, por referendos diversos, ir acabando com a democracia”, analisa Vasconcelos.

“O problema agora não são os golpes militares, é aquilo a que podemos chamar golpes constitucionais. É pela via eleitoral que os iliberais chegam ao poder e é a partir do poder que vão desconstruindo o regime democrático. Esse é que é o risco na Tunísia.”

Descrentes nas instituições políticas, frustrados pelas dificuldades económicas e fatigados por dez anos de uma esperança que tarda em concretizar-se, os tunisinos revelam, porém, grande resiliência. Mesmo em tempos de pandemia, os protestos não param, como o revelam as fotos que acompanham este texto, todas referentes a manifestações realizadas no mês passado.

Uma guerra ali ao lado

Há porém um fator mais difícil de contrariar nas ruas: a guerra na vizinha Líbia, que divide a classe política tunisina. O Presidente do país apoia o general Haftar e a sua rebelião a partir do leste da Líbia (apoiada por Arábia Saudita, Egito e Emirados, que são ferozmente anti-islamismo democrático, pela ameaça que constitui ao poder nos seus países). Já o Ennahda coloca-se ao lado do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia, Qatar e comunidade internacional (ainda que não pela França, que apoia o general rebelde).

“O contexto da guerra líbia é também um fator de divisão profunda e perigosa na Tunísia”, conclui Vasconcelos. “Costumo dizer que a fronteira da Líbia com a Tunísia devia ser a nossa fronteira da União Europeia.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

 

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

A segunda vaga da Primavera Árabe

Na Argélia, no Sudão e na Líbia, os povos estão nas ruas em ações de protesto, numa espécie de reedição da Primavera Árabe que, há oito anos, varreu vários países do Norte de África e do Médio Oriente. Argelinos e sudaneses manifestam-se contra regimes que levam décadas de poder. Já os líbios, alertam para o fantasma da guerra que volta a assustar um país que, após a queda do ditador, ainda não encontrou o seu rumo

Em menos de duas semanas, os dois líderes árabes há mais tempo no poder — se retirarmos da equação os monarcas — foram empurrados para fora de cena.

Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika renunciou à presidência a 2 de abril, a menos de um mês de completar 20 anos no cargo (tomou posse pela primeira vez a 27 de abril de 1999) e a menos tempo ainda de tentar ser reeleito para um quinto mandato nas presidenciais inicialmente agendadas para 18 de abril — e agora previstas para 4 de julho.

Fisicamente muito debilitado, confinado ao conforto privado e quase sem aparecer em público, Bouteflika não resistiu a quase cinco semanas de oposição popular nas ruas. Afastado da presidência, o poder transitou para as mãos de um triunvirato a que os argelinos apelidam de “3B”: Abdelkader Bensalah (presidente interino), Tayeb Belaiz (ministro do Interior) e Noureddine Bedoui (primeiro-ministro).

São eles agora o rosto do odiado regime que o povo continua a contestar, em especial às sextas-feiras, quando gozam o fim de semana e algumas prédicas nas mesquitas têm grande poder mobilizador. No vídeo abaixo, captado em Argel na última sexta-feira, milhares de pessoas entoam o hino nacional.

No Sudão, Omar al-Bashir também saiu de cena a pouco mais de dois meses de completar 30 anos na liderança do país. Entronizado a 30 de junho de 1989, foi deposto a 11 de abril, após protestos populares contra o custo de vida, iniciados em várias cidades em meados de dezembro, se terem transformado em contestação política.

Indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a humanidade praticados na região do Darfur, Al-Bashir ficou sob custódia dos militares. Nas ruas, os sudaneses temem que os generais tomem também as rédeas do país e não desarmam, exigindo um governo liderado por civis.

Alaa Salah, uma estudante de arquitetura na Universidade Internacional de Cartum, de 22 anos, tornou-se um símbolo destes protestos, após ser fotografada em cima de um carro a discursar para uma multidão. Em declarações à alemã Deutsche Welle, aquela a quem chamam “Kendaka” (que na cultura núbia significa uma mulher forte e revolucionária) ignorou as ameaças de morte que recebeu após o mediático momento e afirmou-se feliz por ver acontecer uma “revolução” no seu país.

Os protestos na Argélia e no Sudão surgem oito anos após o movimento da Primavera Árabe ter varrido vários países do Norte de África e do Médio Oriente e originado a queda de vários autocratas. Na Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita; no Egito, Hosni Mubarak foi deposto pelos militares; e na Líbia, Muammar Kadhafi foi executado numa rua da cidade de Sirte, a 20 de outubro de 2011.

Desde o desaparecimento do coronel líbio, o país mergulhou no caos, dividido em dois poderes que não se entendem: um governo instalado na capital, Trípoli (ocidente), liderado pelo primeiro-ministro Fayiz Al-Sarraaj e reconhecido pela comunidade internacional; um outro com sede na cidade de Tobruk (leste), alinhado com Khalifa Haftar, um general que controla a região e que tem atualmente em curso uma ofensiva militar para tomar a capital.

Na semana passada, por pressão da França, a União Europeia falhou a adoção de uma posição condenatória das movimentações do general líbio. Numa posição que contraria a sensibilidade maioritária na comunidade internacional, Paris colocou-se ao lado de Haftar, que beneficia também de equipamento militar fornecido por Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Este posicionamento francês não será alheio ao facto de a Líbia ser um grande produtor de petróleo e de ter as maiores reservas localizadas precisamente nos “domínios” do general Haftar, no leste do país. Até agora, é a petrolífera italiana ENI que tem tido um acesso privilegiado às jazidas líbias, mas a francesa Total já deu mostras de não querer ficar atrás.

(IMAGEM AK ROCKEFELLER)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 17 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui

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Argélia, Sudão, Líbia: os árabes não se calam

Nas ruas da Argélia, do Sudão e da Líbia, manifestações populares anti-regime fazem lembrar os protestos da Primavera Árabe que, há oito anos, derrubaram vários ditadores

No centro de Argel, este homem pede a “reciclagem” dos governantes do seu país
 Ramzi Boudina / Reuters
Não contentes com o afastamento do ex-Presidente Abdelaziz Bouteflika, os argelinos querem também a saída do poder de toda a elite próxima do regime
 Ramzi Boudina / Reuters
A designação de Abdelkader Bensalah como presidente interino da Argélia não agradou ao povo que continua nas ruas
 Ramzi Boudina / Reuters
Polícia antimotim nas ruas de Argel
 Ramzi Boudina / Reuters
Jovem argelino em dificuldades após inalar gás lacrimogéneo disparado pela polícia
 Ramzi Boudina / Reuters
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 Ramzi Boudina / Reuters
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Afastado o homem que os governou nos últimos 30 anos, os sudaneses querem garantias de que os militares não ficarão a mandar em Cartum
 Reuters
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 Reuters
As mulheres têm sido um importante motor dos protestos no Sudão
 Reuters
Protestos dia e noite, em frente ao Ministério sudanês da Defesa, em Cartum
 Reuters
Em 2011, os líbios saíram às ruas contra Muammar Kadhafi. Agora voltam a sair pela unidade do país
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 Hazem Turkia / Anadolu Agency / Getty Images
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Protestos contra a “interferência francesa” na Líbia. Paris apoia a investida do general sobre a capital
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Como na Argélia e no Sudão, muitas mulheres participam nas manifestações na Líbia
 Ahmed Jadallah / Reuters
Na Praça dos Mártires, no centro de Trípoli, uma líbia pede ajuda divina para os desafios terrenos
 Ahmed Jadallah / Reuters

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui