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Dia 1 do novo Egito

Na praça Tahrir, foi dia de limpezas. A multidão não abandonou o local e, aos poucos, começaram a surgir ideias para o novo Egito. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Um dia após a queda de Mubarak, o povo regressou cedo à praça Tahrir. Munidos de vassouras, apanhadores, sacos do lixo, máscaras na cara e de mangas arregaçadas, verdadeiras “brigadas da limpeza” começaram, a limpar o local, às primeiras horas da manhã.

Na praça, não fica beata por apanhar nem superfície por varrer. As pessoas circulam de olhos no chão, em busca do mais pequeno vestígio de lixo. Um jovem distribui sacos pretos: “Já tem?” Quase que não há lixo para todos.

Na superfície verde da praça — na verdade, um lamaçal, de tanto ter sido pisada nos últimos dias —, as tendas que abrigaram os manifestantes durante noites a fio começaram a ser desmontadas. “Ontem, eu era um manifestante. Hoje, construo o Egito”, lê-se numa mensagem que um homem trás ao peito.

Mais pintores do que pincéis

O lixo que se foi amontoando de dia para dia e as pedras usadas para defender a praça desapareceram como que por artes mágicas. Seguiram-se as pinturas. “Queremos que a praça fique bonita”, explicava um jovem de pincel na mão. Todos queriam contribuir, dando uma pincelada.

Dia de festa JORGE SIMÃO

Uma escada era colocada por baixo do poste de semáforos atravessado sobre uma rua para tirar as cordas onde, durante dias, esteve enforcado “um Mubarak” feito de pano.

No chão, por cima de indicações de trânsito gastas, um grupo de voluntários começa a pintar a palavra “Liberdade”. Vestido de fato e gravata e de apanhador na mão, Samir, de 34 anos, explica porque está empenhado na revolução: “Trabalho numa loja de móveis. Queria investir num novo negócio, com um grupo de amigos, uma empresa de publicidade. Mas as burocracias são tantas que se tornou impossível”.

Leões de cara lavada

Fora da praça, várias pessoas limpam as inscrições feitas nas estátuas de dois grandes leões que ladeiam a entrada na ponte Qasr al-Nil. Limpam os slogans anti-Mubarak e os corações desenhados por casais apaixonados — limpeza total. “Veja o que estão a fazer”, diz uma senhora. “Tenho 38 anos e é a primeira vez que vejo alguém limpar aqueles leões. Bem vinda ao novo Egito!”

A praça Tahrir foi mudando de configuração ao longo do dia. Aos poucos, foram surgindo apelos de cidadania e de participação no futuro do país. Um grupo de jovens apela à recolha de ideias numa página do Facebook intitulada “Sonhem connosco”. “Queremos ideias para elaborarmos um plano de ação para o Egito até 2021” , diz um deles.

Noutro ponto da praça, três jovens exibem um cartaz que diz: “Liberdade = Responsabilidade”. “Temos uma página no Facebook chamada Nawaya e estamos a trabalhar em três domínios: caridade, desenvolvimento e sensibilização”, diz um deles. “Se nos mantivermos unidos, vamos vencer; se nos dividirmos, vamos fracassar.”

Livros proibidos à venda

Um homem lê uma folha A4 que alguém lhe entrega. “É um conjunto de princípios que devemos passar a observar. Não atirar lixo para o chão, não usar termos insultuosos até que alguém nos insulte, respeitar os outros, etc.” O documento é assinado pelo “Comité 25 de janeiro”.

Num escaparate num passeio da praça, vendem-se livros até agora só possíveis de adquirir no circuito clandestino: “A república do clã Mubarak”, “Cartão vermelho ao Presidente” ou “Os últimos dias”.

Entretanto, já tinha sido montado um palco, com holofotes e um aparatoso sistema de som. Prepara-se um concerto para a noite. A festa continua!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

Festa da vitória na praça Tahrir

Durante 18 dias, a praça Tahrir foi o coração dos protestos contra o Presidente Hosni Mubarak. Anunciada a sua demissão, rebentaram os festejos. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão. Fotogaleria

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

Manifestantes poderão marchar até ao palácio

Mubarak não se demitiu, como a praça Tahrir exigia. Digerida a desilusão, os manifestantes querem aproveitar a sexta-feira para voltar a desafiar o Presidente. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Ainda Hosni Mubarak não terminara o seu discurso à nação e já a Praça Tahrir gritava a uma só voz: “Fora! Fora! Fora!” A notícia de que Mubarak iria falar ao país surgiu a meio da tarde, fazendo disparar os rumores sobre o conteúdo da mensagem. Na praça, esperava-se que ao 17.º dia de contestação, o “rais” abandonasse o poder.

“Ainda não foi hoje. Amanhã cá estarei”, diz Ahmad Ramadan, um designer gráfico de 31 anos, com a cara pintada com as cores da bandeira do Egito. Às primeiras horas da madrugada, a praça ainda não sabia como reagir à rasteira pregada por Mubarak.

“Ainda estamos a discutir o que fazer. Mas talvez depois da oração do meio-dia vamos em marcha até ao palácio presidencial, em Heliopolis”, disse um jovem manifestante. “Vamos pedir-lhe que se vá. Ele e todo o seu Governo, Suleiman incluído. Todos!”

Manifestantes deverão marchar hoje até ao Palácio Presidencial JORGE SIMÃO

Exército é uma incógnita

A iniciativa dos manifestantes saírem ou não da praça dependerá muito da reação do exército, que tem os seus tanques posicionados nas ruas que dão acesso à praça. Recorde-se que hoje, depois de já ser público que Mubarak iria falar, o Chefe de Estado do Exército, general Sami Eman, dirigiu-se aos manifestantes da praça e disse: “Todas as vossas exigências serão realizadas esta noite.” Não foram.

Sami Eman é um dos membros do Alto Conselho das Forças Armadas para quem se aguardava que Mubarak transferisse os seus poderes, fora da moldura constitucional. Ao abrigo da Lei Fundamental, a demissão de Mubarak obrigaria o Presidente do Parlamento a assegurar as funções do chefe de Estado.

Enquanto continua por esclarecer o papel do exército neste impasse, na praça, nasceu mais um slogan. “Ilegal! Ilegal!” Mubarak está ilegal no poder, porque o povo já não lhe reconhece qualquer autoridade.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

As pirâmides abriram, faltam os turistas

Pirâmides de Gizé reabriram ao público mas não havia interessados em visitá-las. Para protestar contra a falta de turistas, Mohammed invadiu a praça Tahrir a cavalo… Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Encerradas ao público desde o início da contestação popular a Hosni Mubarak, as pirâmides de Gizé reabriram ao público na quarta-feira. Nas entradas do parque arqueológico mais famoso do Egito não havia, porém, turistas para as visitar. “Por causa desta revolução, nove milhões de turistas fugiram do Egito”, diz Ashraf, 34 anos, que trabalha como guia nas pirâmides desde os 18.

Ashraf tem sentimentos mistos em relação ao que se passa na praça Tahrir. “Eu gosto de Hosni Mubarak. Com ele, o Egito era um país seguro. Quiseram fazer esta revolução, tudo bem. Ele já disse que se vai embora. Agora, deixem o governo trabalhar. Se não gostarem, voltam a fazer outra revolução. Agora, o país precisa de trabalhar!”

Ashraf propõe-se guiar o Expresso numa visita ao parque, mas a entrada não se afigura fácil. Nos últimos dias, o Egito começou a recuperar o seu modus operandi quotidiano, inclusive a nível burocrático…

Há dois dias, os jornalistas estrangeiros receberam a informação de que para continuarem a trabalhar no país teriam de se acreditar junto do Ministério da Informação. Mas para visitar as pirâmides essa autorização nada vale. “A autorização que têm apenas visa o vosso trabalho na praça Tahrir. Para entrarem aqui precisam de outra autorização”, diz o agente da Polícia do Turismo, numa das entradas.

Lojas às escuras, cavalos sem clientes

A visita do Expresso às pirâmides fica então reduzida a um passeio de cavalo ao longo da cerca de arame que rodeia o perímetro do sítio. Muito concentrado no seu trabalho, o pequeno Saad puxa os cavalos pelo deserto do Sara adentro. Tem apenas 12 anos, mas já abandonou a escola para trabalhar.

JORGE SIMÃO

Não há turistas a fazer o tour e dentro do parque não se vislumbra vivalma. Nas aldeias em redor do sítio — totalmente dependentes dos turistas – as lojas de artesanato estão às escuras e os cavalos e os camelos acumulam-se nos estábulos sem clientes para transportar.

Mohammed, de 20 anos, não tem o que fazer. Há uma semana, ele foi um dos 30 homens oriúndos da zona das pirâmides que, numa ação de grande espetacularidade, irromperam pela praça Tahrir montados em cavalos e camelos, provocando a ira dos manifestantes anti-Hosni Mubarak.

“Não recebi dinheiro de Mubarak” 

Acusados de terem recebido dinheiro do regime para provocarem desacatos entre os manifestantes, Mohammed desmente: “Não recebi dinheiro de ninguém. Estávamos aqui à conversa, sem nada para fazer, e decidimos ir até lá. Queríamos protestar contra a falta de trabalho nas pirâmides”.

Mohammed diz não ter sentido medo, nem mesmo quando, no meio da confusão, ficou sem o seu cavalo. “Não fiquei ferido. Saí a correr da praça.”

Numa rua estreita, dois miúdos distraem-se à conversa. À passagem dos cavalos, um deles atira: “Bem vindos ao Alasca!” É inverno no Egito, mas o frio não é tão rigoroso que justifique a comparação. Mas, sem gente, a área à volta dos monumentos mais famosos do Egito torna-se (ainda mais) desértica e inóspita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”