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Iranianas preparam nova revolta contra o regime dos ‘ayatollahs’: “Vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas”

A um mês do primeiro aniversário da morte da jovem iraniana Mahsa Amini às mãos da polícia da moralidade, por usar o lenço islâmico de forma “imprópria”, há cada vez mais iranianas a sair à rua sem o hijab na cabeça. Ao Expresso, uma jovem envolvida em ações clandestinas de resistência ao regime religioso partilha as motivações das mulheres e levanta o véu sobre a jornada de contestação que se projeta para o próximo mês. “De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites”, desafia

O Irão está em contagem decrescente para aquilo que se perfila como uma nova vaga de protestos contra as autoridades teocráticas. Dentro de exatamente um mês, passará um ano desde a violenta morte da iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos por agentes da polícia da moralidade. A jovem fora detida por levar o lenço islâmico na cabeça (hijab) de forma “imprópria”.

Nas ruas do país, uma presença crescentemente indiscreta é reveladora do nervosismo do regime quanto a esse cenário. Dez meses após os grandes protestos antirregime que se seguiram à morte da jovem curda, a polícia da moralidade regressou em força, com “patrulhas de orientação” a percorrer os espaços públicos com o foco nas mulheres.

“Eles colocaram a polícia da moralidade em todas as ruas principais. Há carros grandes com agentes do sexo feminino que mandam parar as mulheres e meninas que não usam o véu e levam-nas para as esquadras. Recentemente, o município de Teerão contratou 400 agentes para controlar as estações de metro e impedir que mulheres sem véu usem esse transporte”, diz ao Expresso Niloufar (nome fictício), uma iraniana de 26 anos, residente na cidade de Shiraz, no sul do país.

No Irão, a quantidade de mulheres que recusa cobrir a cabeça quando sai de casa aumentou muitíssimo, num claro gesto de desafio ao regime dos ayatollahs. “Apesar das patrulhas, muitas mulheres não colocam o véu nas ruas”, continua a jovem. “É uma forma de protesto. As mulheres falam sobre a próxima revolta que será ainda maior e mais forte” do que a do ano passado.

Para além do boicote ao hijab, cujo uso é obrigatório pela lei da República Islâmica, as mulheres têm recorrido a “formas mais profundas de mostrar oposição”, diz Niloufar. “Apesar da repressão, há cada vez mais palavras de ordem contra o regime escritas nas paredes. Os grandes cartazes com fotos dos líderes do regime, em particular [o Líder Supremo, o ayatollah] Ali Khamenei, são destruídos e às vezes queimados. Isto é muito percetível.”

Também nas redes sociais, as mulheres desdobram-se em incentivos à mobilização no primeiro aniversário da morte de Mahsa Amini. “É hora de nos erguemos”, “não há outra forma”, “vamo-nos vingar”, lê-se nos cartazes em farsi, exibidos por iranianas que ocultam a identidade, mas não os cabelos sem véu.

“Eu vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas. Estão unidas, querem liberdade e direitos básicos. Sabem que podem ser presas, mas estão determinadas”, diz Niloufar. “Os mullahs têm todas as razões para temer uma nova revolta no aniversário da morte de Mahsa Amini. De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites. Tenho a certeza que as jovens e as mulheres não enjeitarão nenhuma possibilidade de ir para as ruas e o regime sabe disso.”

“Este é o preço pela nossa liberdade. Algo mudou para sempre no Irão desde o ano passado.”

Muitas já o fazem, arriscando serem enxovalhadas e agredidas na via pública, como aconteceu à mulher que seguia sem véu, no vídeo abaixo, registado na cidade de Amol, no norte do país.

Niloufar leva uma autêntica vida dupla na região onde vive. Sem que a família tenha conhecimento, ela põe a sua segurança em risco e colabora ativamente, na clandestinidade, com a Organização dos Mujahidin [Combatentes] do Povo do Irão [MEK, na sigla persa], um grupo opositor ao regime dos ayatollahs, formado por dissidentes no exílio.

“Todos os dias, vemos cada vez mais ações realizadas em várias cidades por células de resistência ligadas ao MEK. Muitas destas unidades são compostas por mulheres valentes, cientes dos riscos de vida que correm quando escrevem slogans nas paredes contra o regime, distribuem folhetos do MEK ou colocam fotografias da líder do grupo, Maryam Rajavi” na via pública, penduradas em pontes e viadutos. “Há alguns protocolos como, por exemplo, vigiar que não há polícia por perto. Parece uma operação de uma guerra.”

A organização é um alvo especial do regime. Durante os protestos após o caso Mahsa Amini, 3626 apoiantes e simpatizantes do MEK foram presos. No mês passado, um dos seus membros, Javad Vafaei, de 27 anos, natural de Mashhad, a segunda maior cidade do Irão, foi condenado à morte pelas suas atividades ao serviço do MEK, designadamente participação em protestos.

A execução por enforcamento de manifestantes tem sido uma das armas do regime para calar a contestação. Niloufar descreve mais brutalidade das forças governamentais. “Muitos manifestantes ficaram cegos após serem usadas espingardas contra eles. Quando prendem pessoas, pulverizam-lhes os olhos para não verem quem os está a prender ou para onde são levados. É uma espécie de tortura branca, não atacam o corpo, mas a alma.

“Impor medo e terror ao povo é a maneira dos mullahs manterem o seu poder.”

Hoje, como sempre desde a Revolução Islâmica no Irão (1979), a polícia da moralidade e a imposição do hijab são as estratégias favoritas do regime para controlar as mulheres. Mas diante de cada vez mais atos de desobediência na via pública, o Governo tem intensificado e diversificado medidas para as intimidar.

Nas últimas semanas, um projeto de lei destinado a endurecer as penalizações para as iranianas que recusem usar o hijab começou a produzir resultados ainda antes de ser aprovado pelos legisladores. O novo diploma visa introduzir formas de obrigar ao uso do hijab sem passar por confrontos entre polícia e cidadãos.

Reservado a mulheres com hijab

Isso passa por penalizar as mulheres nos empregos, universidades, espaços comerciais, aeroportos, restaurantes, no interior de carros ou nas redes sociais. E também punir quem quer que o regime entenda ser cúmplice dos atos de rebeldia femininos.

Em nome da decência da República Islâmica, um restaurante que abra as portas a uma cliente sem hijab, por exemplo, pode ser multado. Um caso recente exposto nas redes sociais tem no centro a startup iraniana Digikala que, no mês passado, viu a sua sede ser fechada pelas autoridades até que fosse feito um pedido de desculpas público pelo “comportamento não islâmico” de funcionárias que não usavam o hijab. E também que a empresa adotasse um código de vestuário.

Muita da controvérsia em torno deste projeto de lei prende-se com o facto de estar a ser discutido à margem das sessões regulares do Parlamento, mas antes numa comissão parlamentar e à porta fechada, para não suscitar debate público.

Niloufar, que à semelhança de muitas conterrâneas arrisca sair à rua sem o hijab, diz que as forças de segurança “temem” as mulheres iranianas, uma vez que elas, especialmente as jovens, “estão na linha da frente da revolta e motivam outras pessoas a protestar”, diz. “Os mullahs pensam que, visando as mulheres, podem controlar as ruas e manter a população descontente dentro de casa. Mas como é possível assustar metade da população do Irão dessa maneira?”

O véu islâmico é um poderoso símbolo político no Irão. A seguir à morte de Mahsa Amini, muitas mulheres queimaram os seus lenços em fogueiras na via pública. No atual contexto, não usá-lo de todo ou de forma relaxada, deixando à mostra fartas mechas de cabelo, é uma forma inequívoca de rejeitar o regime.

“Este regime é misógino, quer limitar as mulheres. Eles não contemplam direitos para as mulheres, pensam que são cidadãos de segunda. Os mullahs são muito antiquados e agressivos. Dizem que são muçulmanos, mas não são. Mostram o Islão como uma religião agressiva no mundo. E executam pessoas”, conclui Niloufar, que não se considera uma pessoa religiosa, mas diz observar algumas regras.

“Os fundamentalistas são contra as mulheres em qualquer lado, e os mullahs que mandam no Irão são o regime mais fundamentalista de todos. Por isso, por definição, eles são contra as mulheres. Mas a repressão sobre as mulheres é apenas uma parte da repressão sobre toda a sociedade que se virou contra eles.”

(FOTO A imagem de Mahsa Amini, numa manifestação solidária com os protestos anti-regime no Irão, na cidade australiana de Melbourne MATT HRKAC / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2023, e no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Ainda há protestos nas ruas do Irão?

O enforcamento de quatro manifestantes espalhou o medo. Há pelo menos mais 20 no corredor da morte

Milhares de pessoas dirigem-se ao cemitério onde está enterrada Mahsa Amini, em Saqez, no Curdistão, em outubro de 2022 UGC / AFP / GETTY IMAGES

1 Continua a haver manifestações?

Não, pelo menos com a dimensão de há semanas. As razões para protestar não esmoreceram e o ressentimento pode até ter aumentado perante a repressão do regime à maior vaga de contestação desde a Revolução Islâmica. Mas o enforcamento de manifestantes e a exibição dos cadáveres em guindastes na praça pública incutiram medo. Para a teocracia, é prova de que a violência é uma arma eficaz para silenciar a dissidência.

2 Quantas pessoas já foram executadas?

Há notícia de quatro enforcamentos, um dos quais de um karateca com títulos de campeão nacional. Há mais 20 no corredor da morte e pelo menos 42 enfrentam acusações puníveis com a pena capital.

3 Que outros meios usa o regime para reprimir?

Penas de prisão pesadas, por exemplo. Segundo a Agência Noticiosa de Ativistas de Direitos Humanos (HRANA), durante os protestos foram detidas quase 20 mil pessoas, entre as quais 164 menores. Entre os detidos há figuras públicas, como o futebolista Amir Nasr-Azadani, que esta semana viu a sua condenação à morte ser substituída por 26 anos de prisão. Taraneh Alidoosti, atriz, foi libertada sob fiança.

4 A repressão visa estrangeiros?

Sim. Um trabalhador humanitário belga foi condenado a 40 anos de prisão e 74 chicotadas e um ex-vice-ministro da Defesa iraniano-britânico à morte, acusados de espionagem. Outros casos, porém, são um embaraço para os ayatollahs: uma sobrinha do Líder Supremo foi presa após apelar à comunidade internacional que expulse os representantes do Irão e uma filha do ex-Presidente Akbar Hashemi Rafsanjani foi condenada a cinco anos de prisão por incitar aos protestos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Nas ruas do Irão há dois meses, protestos soam cada vez mais a revolução

Não é a primeira vez que os iranianos contestam o regime em público. Mas um conjunto de características distingue os protestos atuais de jornadas anteriores. Emmanuel Macron já defendeu estar em curso uma “revolução”. E com futebolistas iranianos solidários com os protestos, o Mundial do Catar pode provocar ondas no país, com os jogos da Team Melli a darem pretexto para ajuntamentos populares, que é tudo o que o regime dos ayatollas quer evitar

Há exatamente dois meses, o Irão começava a revelar sintomas do desconforto que as regras apertadas da teocracia em vigor desde 1979 provocam numa fatia da população cada vez mais sonora. Em dezenas de cidades, milhares de pessoas começaram a sair às ruas em protesto contra a violência do regime, que acabara de ceifar mais uma vida — Mahsa Amini, curda de 22 anos, morreu a 16 de setembro, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos pela polícia da moralidade.

No Irão, protestar em público implica riscos acrescidos, dada a omnipresença nas ruas de forças zelosas da Revolução Islâmica, que investem sobre os transeuntes ao mínimo indício de desobediência — no caso de Mahsa, por não ter colocado corretamente o véu islâmico (hijab), de uso obrigatório para as mulheres.

Em 43 anos de vida que leva o regime dos ayatollahs, não é a primeira vez que os iranianos o questionam frontalmente. Quem observou jornadas de contestação anteriores — nomeadamente em 2009 (de cariz político) e 2019 (com reivindicações económicas) diz, porém, que os protestos atuais diferem de todos os outros.

Encabeçados por mulheres

“São os protestos contínuos mais amplos e duradouros do período pós-revolucionário”, diz ao Expresso Ali Vaez, diretor do programa do Irão do International Crisis Group. “Também são únicos em dois outros aspetos: são liderados por mulheres e têm o objetivo unificado de exigir o fim da República Islâmica”, não apenas de pedir reformas.

O protagonismo das mulheres decorre do caso concreto que incendiou as ruas e da forma como as iranianas se põem no lugar de Mahsa Amini. Na sequência da divulgação do caso, duas outras mulheres — jornalistas — foram levadas pelas forças do regime: Nilufar Hamedi, que investigou o caso no hospital onde Mahsa foi internada; e Elahe Mohammadi, que cobriu o seu funeral, na cidade de Saqqez, no Curdistão iraniano.

Estima-se que cerca de 15 mil pessoas já tenham sido presas nos últimos dois meses de protestos. Segundo a organização Iran Human Rights, com sede em Oslo, na Noruega, a repressão aos protestos provocou pelo menos 326 mortos, incluindo 25 mulheres e 43 menores.

Moharebeh, um crime polivalente

Para muitos detidos, acusados de moharebeh, o futuro é sombrio. Ao Expresso, o iraniano Mohammed Eslami, investigador na Universidade do Minho, explica o significado da palavra: “Moharebeh quer dizer ‘lutar contra Deus’ ou contra valores divinos. Diferentes países islâmicos interpretaram moharebeh de forma diferente. Mas no Irão, todos os ataques terroristas, danos causados ao património público, atividades armadas e roubos à mão armada, tráfico de estupefacientes e violação são classificados moharebeh. Todos esses crimes são punidos com pena de morte”.

Domingo passado, as autoridades emitiram a primeira sentença de morte, no contexto dos protestos — que Teerão rotula de “motins” —, contra um indivíduo não identificado, acusado de “incendiar um edifício do Governo, perturbar a ordem pública e conluio para realizar crimes contra a segurança nacional”, além de moharebeh e “corrupção na Terra”.

Deputados pedem execuções em massa

A sentença seguiu-se a uma posição, no Parlamento iraniano (Majlis), de 227 dos 290 deputados. A 6 de novembro, apelaram ao sistema judiciário para acelerar processos em que estejam implicados “inimigos de Deus” (como qualificam os manifestantes) e equacionem a possibilidade de execuções em massa, como forma de punir, intimidar e silenciar a oposição.

“O regime ainda é capaz de muito mais brutalidade e repressão”, alerta Ali Vaez. “No entanto, preocupa-se com o opróbrio internacional. Portanto, é importante que a comunidade internacional deixe claro às autoridades iranianas que pagarão um preço alto se recorrerem à execução em massa de manifestantes como meio de acabar com o movimento.”

Um dos iranianos acusados de moharebeh é o rapper curdo Saman Yasin, intérprete de temas sobre a pobreza, a desigualdade, a injustiça e, implicitamente, a negligência das autoridades que governam o país.

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Acordo nuclear estagnado

Sem que a repressão aos protestos tenha atingido essa barbárie, o Irão enfrenta já a frontal oposição de países que, ainda há meses, se esforçavam para entabular um diálogo e alcançar um entendimento com Teerão. É o caso da França e da Alemanha, signatários do tratado internacional sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla inglesa).

Sábado, o chanceler da Alemanha enfureceu Teerão ao divulgar um vídeo na rede social Twitter. “Só posso dizer isto à liderança em Teerão: que tipo de governo são vocês se disparam contra os próprios cidadãos?”, questionou Olaf Scholz. “Queremos continuar a aumentar a pressão sobre os Guardas da Revolução e a liderança política.”

Dois dias depois, foi a vez do Presidente francês fazer análise política. “Algo sem precedentes está a acontecer. Os netos da Revolução [Islâmica, de 1979] estão a fazer uma revolução, e estão a devorá-la”, afirmou Emmanuel Macron. “Esta revolução muda muitas coisas. Não creio que haja novas propostas que possam ser feitas agora [para salvar o acordo nuclear].”

Os protestos no Irão irromperam numa altura em que a diplomacia internacional investia no sentido de dar uma nova vida ao JCPOA — assinado em 2015 e ferido três anos depois quando Donald Trump desvinculou os Estados Unidos desse compromisso.

“A questão dos protestos no Irão e as suas amplas dimensões internacionais fizeram com que os países ocidentais tomassem uma posição. A pressão da opinião pública, por um lado, e uma oportunidade para marcar pontos, por outro, fizeram com que os países ocidentais que são partes do JCPOA levantassem questões sobre os direitos humanos no Irão”, diz ao Expresso Javad Heirannia, investigador no Centro do Médio Oriente, da Universidade Shahid Beheshti, de Teerão.

“Com base nisso, os Estados Unidos anunciaram que a questão dos protestos e o apoio aos manifestantes iranianos é prioritária sobre o renascimento do JCPOA.”

Eleição israelita complica cenário

O espaço para negociações tornou-se ainda mais exíguo depois de as legislativas de 1 de novembro em Israel ditarem o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu.

No início de 2018, o então primeiro-ministro revelou estar em posse de “meia tonelada” de documentos sobre o programa nuclear iraniano, usurpados de forma clandestina por agentes da Mossad. Segundo Netanyahu, o material recolhido prova que a liderança iraniana mentiu durante o processo negocial que levou à assinatura do acordo internacional.

Hoje, os países ocidentais que assinaram o JCPOA “tentam retomar a questão nuclear relacionando-a com os documentos de Netanyahu e encontrar apoio para levar a questão nuclear do Irão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas”, opina Heirannia. “Os Estados Unidos não estão muito preocupados em reativar o JCPOA. E o Irão tenta impedir que o assunto chegue ao Conselho de Segurança com base nos documentos de Netanyahu.”

Festa da bola pode ser amarga

Dentro de quatro dias, o Mundial de futebol no Catar pode transformar-se em mais uma dor de cabeça para o regime de Teerão. A seleção iraniana — conhecida como Team Melli e treinada pelo português Carlos Queiroz — está apurada e tem vindo a dar mostras de solidariedade em relação aos manifestantes.

Recentemente, num jogo amigável, em Viena, contra o Senegal, Mehdi Taremi e companhia escutaram o hino nacional sem o cantar, de cara fechada e com um casaco preto desprovido de símbolos por cima do equipamento.

https://twitter.com/TheGlobalOrder/status/1575694941300588544?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1575694941300588544%7Ctwgr%5E990495649438fa1bb94740d68ba0265775db3a08%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2022-11-16-Nas-ruas-do-Irao-ha-dois-meses-protestos-soam-cada-vez-mais-a-revolucao-bdef2a8c

Entre os jogadores iranianos mais inconformados com a violência com que o regime reprime os protestos está Sardar Azmoun, atleta do Bayer Leverkusen. A 25 de setembro, escreveu no Instagram: “Por causa das leis restritivas que nos foram impostas, na seleção, não devo falar… corro o risco de ser mandado para casa, mas não aguento mais! Vocês nunca serão capazes de apagar isto da vossa consciência. Que vergonha! Vocês matam tão facilmente. Viva as mulheres do Irão!”

A publicação foi apagada pouco depois e a sua conta eliminada. Quando voltou às redes, Azmoun pediu desculpa. “Tenho de me desculpar com os jogadores da seleção, porque a minha ação precipitada deixou os meus queridos amigos irritados, e alguns jogadores da seleção foram insultados pelos seguidores, o que não é justo de forma alguma. O erro foi meu.”

Boicotar ou incitar à rebelião?

Entre a pressão do regime para que os atletas obedeçam às regras e a consciência que os leva a defender os conterrâneos em luta por liberdade, exemplos como o de Azmoun diante da grande montra que é o Mundial, esvaziam o argumento de quem defende que o Irão devia ser impedido de competir como forma de penalizar o regime.

“Privar a nação de uma fonte de potencial alegria nestes tempos sombrios não serviria à causa do movimento [de contestação] e, na verdade, facilitaria a vida do regime, que está preocupado com a possibilidade de os jogos se transformarem em oportunidades para mais ajuntamentos que, por sua vez, possam ser combustível para provocar mais incêndios no país”, conclui Ali Vaez.

“Mas a equipa, que já está sob enorme pressão do regime, certamente encontrará uma maneira de demonstrar que está do lado certo da história.”

(CARTOON Mahsa Amini, a curda iraniana cuja morte está na origem dos protestos OSAMA HAJJAJ / CAGLE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Os lenços que destaparam a frustração

Grandes protestos dinamizados por mulheres visam o uso obrigatório do hijab, mas também o regime

Às primeiras notícias de protestos nas ruas do Irão, Gil Pinheiro começou a disparar perguntas para quem, à sua volta, tinha algum conhecimento do país. “Que me aconselhas? Vou ou cancelo a viagem?” Este engenheiro de 28 anos, natural de São João da Madeira, estava a cerca de um mês de umas férias de 20 dias no Irão. “Parece ser um país incrível, com montanha, deserto, mar, ilhas, cidades, aldeias, e uma cultura muito diferente da nossa”, enumera ao Expresso. “E tenho a impressão de que as pessoas são muito acolhedoras.”

Nos preparativos para a viagem, obtido o visto, um assunto preocupava-o: dado que não poderia usar Visa ou Mastercard, devido às sanções internacionais, teria de levar numerário para toda a viagem. Os ecos dos protestos resolveram o problema. “Houve quem me dissesse que não teria problemas se insistisse em ir e quem me aconselhasse a cancelar a viagem. Dada a rápida escalada da situação, decidi não ir.”

Seja por haver agitação nas ruas ou ameaças de guerra devido ao programa nuclear iraniano, muitos turistas acabam por adiar planos para visitar o país. Para os iranianos, imersos num oceano de privações, estadas como a do jovem português seriam gotas de alívio.

Panela de pressão social

Além das dificuldades inerentes a conjunturas críticas pontuais — como a pandemia ou a guerra na Ucrânia —, o Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica marcada por muito desemprego, sobretudo entre jovens e mulheres; degradação ambiental, com a população afetada ora pela desertificação e escassez de água ora por cheias potenciadas pela intervenção humana e por gestão negligente; e ortodoxia política que torna a teocracia imune a reformas.

O Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica, degradação ambiental e ortodoxia política

Tudo contribui para um quotidiano de grande frustração que, diante de um pretexto sólido e mobilizador, explode qual panela de pressão. É o que se passa atualmente, com protestos de rua dinamizados por mulheres contra o uso obrigatório do hijab (lenço).

O crime da ‘rapariga azul’

“Os protestos contra o hijab não são assunto recente. É algo que existe desde a criação da República Islâmica [em 1979]”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho. Porém, as manifestações de descontentamento aumentaram face a pontos de viragem como a proibição de as mulheres entrarem nos estádios, a morte da ‘rapariga azul’ e agora a de Mahsa Amini.”

A “rapariga azul” era Sahar Khodayari, adepta do Esteghlal F.C. de Teerão, que se imolou pelo fogo a 9 de setembro de 2019, aos 29 anos. Respondia em tribunal por ter tentado entrar no Estádio Azadi, disfarçada de rapaz, para ver um jogo da sua equipa do coração.

Mahsa Amini é o gatilho que fez disparar os protestos iniciados a 16 de setembro, dia em que foi noticiada a morte desta iraniana de 22 anos. Pertencente à minoria curda, morreu num hospital na sequência de ferimentos atribuídos a agentes da “polícia da moralidade”, que a intercetaram na rua e a detiveram por andar com o hijab “de forma imprópria”.

Numa tentativa de reter dentro de portas as imagens da repressão aos protestos, que já contagiaram mais de 150 cidades, as autoridades tiraram velocidade à internet e restringiram o acesso às redes Instagram e WhatsApp. Ainda assim, muitos vídeos ultrapassaram fronteiras, mostrando mulheres a queimarem lenços, a enfrentarem polícias nas ruas de cabelo solto ou a cortarem os próprios cabelos à tesourada. Ao Expresso, uma iraniana que vive em Lisboa interpreta este último gesto: “Se é o meu cabelo que incomoda, então eu corto-o e deixam-me livre.”

Liberdade só às escondidas

Há oito anos, a dissidente Masih Alinejad, dona de farta cabeleira, tornou-se uma voz amplificadora da sede de liberdade das mulheres do seu país. Inundada por mensagens de compatriotas frustradas por não poderem andar sem lenço, como Masih fazia no Ocidente (onde vivia), criou a página #MyStealthyFreedoms (Minhas Liberdades Furtivas), no Facebook, onde partilhava fotos de iranianas sem hijab, tiradas às escondidas no Irão.

Hoje nos Estados Unidos, a ativista já não disfarça as olheiras ganhas a seguir o que se passa no Irão e a responder a órgãos de informação. Ao Expresso, destaca um aspeto dos protestos. “Os homens estão nas ruas e em grande número. Isto não é só sobre o hijab, símbolo mais forte da República Islâmica e ferramenta de controlo das mulheres. Tanto homens como mulheres estão fartos de um regime que os governou com terror e controlo. Exigem a sua queda. Os cânticos nas ruas são: ‘Morte ao ditador’, ‘Morte a [Ali] Khamenei [o Líder Supremo]’ e ‘O nosso inimigo está aqui, eles mentem quando dizem que são os Estados Unidos’.”

Dois grupos participam nos protestos. Um deles luta por direitos civis, o outro vai mais longe e quer uma mudança de regime

Ainda que à distância, Eslami identifica dois grupos a participar nos protestos. “O primeiro luta pelos seus ‘direitos civis’, incluindo as liberdades de escolha e de expressão. Diz que a Constituição [adotada em 1979 e revista dez anos depois] não atende às necessidades da sociedade e devia ser alvo de uma grande revisão nas dimensões política e social. O segundo grupo vai mais longe e quer uma mudança de regime e uma revolução contra os mullahs’. Considera o hijab e os direitos civis assunto secundário, que só será importante quando o povo iraniano se libertar da corrupção sistémica, do isolamento internacional, das sanções económicas e da frustração social e política.”

Revolta ou revolução?

Nos últimos 15 anos, esta é a terceira grande vaga de manifestações antigovernamentais no Irão. A primeira foi em 2009, contra a reeleição do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais. A segunda, dez anos depois, seguiu-se à triplicação do preço dos combustíveis. “Esta revolta [de 2022] não tem as características de uma revolução”, diz Eslami. “Apesar da adesão de celebridades, os protestos carecem de capital social e de um líder legítimo”, como os de 2009, organizados em torno de dois reformistas derrotados nas eleições.

Os órgãos de informação oficiais já admitiram a morte de mais de 40 pessoas; a resistência no exílio fala em mais de 240. “A reação da República Islâmica aos protestos não é nova: repressão brutal e sangrenta, com forte presença de forças de segurança nas ruas, equipadas com gás lacrimogéneo, bastões e armas”, descreve Masih Alinejad. Em paralelo, Teerão tenta neutralizar a contestação com contramanifestações pró-regime.

Sempre que os iranianos saem às ruas, há expectativas de uma “primavera iraniana”. Mas, como realça o investigador iraniano, “nunca ninguém avançou com uma alternativa ao regime dos ayatollahs. Dessa forma, derrubar o regime não ajudará o povo e levará à destruição do país, algo muito semelhante ao atual estado da Síria. Estes protestos não têm potencial para mudar o regime ou pelo menos coagi-lo a aceitar as exigências.”

(ILUSTRAÇÃO Cartoon de homenagem a Mahsa Amini e à luta das iranianas contra o regime religioso EMAD HAJJAJ / CARTOON MOVEMENT. No seu site, o Cartoon Movement dedica uma página a cartoons sobre Mahsa Amini, que pode ser consultada aqui)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Porque há contestação nas ruas aos “ayatollahs”?

A morte de uma jovem sob custódia da polícia, detida por andar na via pública com “trajes inadequados”, desencadeou manifestações contra o uso obrigatório do véu islâmico. E, por arrasto, contra o regime religioso que governa o Irão há 43 anos

Engarrafamento na direção do cemitério de Saqqez, onde está enterrada Mahsa Amini TWITTER / BBC

1. Porque há protestos em várias cidades iranianas?

Aagitação está nas ruas desde sábado, dia do funeral de uma mulher de 22 anos que morreu fruto de ferimentos graves infligidos dentro de uma carrinha da polícia. Mahsa Amini fora detida em Teerão, pela polícia de costumes, por levar “trajes inadequados”.

Imagens nas redes sociais mostram iranianas a queimar os véus, de uso obrigatório. Os protestos já fizeram pelo menos sete mortos e concentram-se em Teerão, Mashhad, Tabriz e na região curda. Mahsa pertencia a esta minoria, que resistiu a tentativas de assimilação.

2. Que é e para que serve a polícia de costumes?

Também chamada polícia da moralidade, foi criada após a Revolução Islâmica. Tem como missão fazer cumprir, na via pública, os códigos de vestuário impostos pelos ayatollahs, desde logo o uso obrigatório do véu islâmico para as mulheres e roupa larga para ocultar a silhueta.

Transeuntes vestidos de forma que considerem “não islâmica” — por exemplo, com o véu descaído ou, no caso dos homens, calções e camisas de manga curta — são admoestados, multados ou presos por agentes desta força de segurança.

3. Que potencial político têm os protestos?

Este episódio traz à memória a morte do vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo, em 2010, depois de a polícia apreender a sua banca.

Este ato desesperado desencadeou protestos no país e originou um efeito dominó no Norte de África e Médio Oriente (Primavera Árabe), que depôs ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen.

No Irão, o descontentamento apoia-se também em slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência velada ao Líder Supremo, Ali Khamenei.

4. Esta contestação nas ruas é inédita no país?

Nos últimos 15 anos, eclodiram grandes manifestações antigovernamentais por duas vezes, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”.

A primeira foi em 2009, contra a vitória do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais (Movimento Verde).

Dez anos depois, nova vaga de protestos, que começou a propósito do forte aumento do preço dos combustíveis, evoluiu para um movimento pró-democracia.

Ambas as jornadas foram violentamente reprimidas pelas forças do regime.

5. Como reagem agora as autoridades de Teerão?

Restringindo o acesso a WhatsApp e Instagram e remetendo-se ao silêncio. Quarta-feira, Khamenei falou 55 minutos na televisão sobre a guerra Irão-Iraque.

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Presidente Ebrahim Raisi também foi omisso.

Já o homólogo americano não perdeu a ocasião de expor Teerão: “Estamos com os corajosos cidadãos e as bravas mulheres do Irão que se manifestam para garantir os direitos básicos”, disse Joe Biden, nas Nações Unidas.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui