Tal como em 2011, quando saíram às ruas para exigir a “queda do regime”, os tunisinos estão de volta às grandes manifestações. Desta vez, não com objetivos políticos mas para protestarem contra as medidas de austeridade que chegaram com o novo ano
Faz este domingo sete anos que, após quase um mês de manifestações populares, o Presidente Zine el-Abidine Ben Ali foi deposto na Tunísia. Foi, aliás, o primeiro ditador a tombar no contexto da Primavera Árabe.
A data será assinalada no país com novos protestos de rua, convocados pela oposição ao Governo e engrossados por um descontentamento popular generalizado decorrente da entrada em vigor, no primeiro dia do ano, de medidas de austeridade — que têm originado grandes protestos desde segunda-feira.
O aumento de preços atinge bens de consumo e combustíveis. Subiram também impostos sobre os veículos, as comunicações e a internet, bem como taxas alfandegárias sobre algumas importações.
Sobretudo à noite, alguns protestos resultaram em confrontos violentos entre manifestantes e polícia. Em comunicado, o Governo disse que respeitaria o direito dos tunisinos a manifestarem-se, mas que não toleraria atos de vandalismo.
Segundo o Ministério do Interior, desde segunda-feira, foram detidas 778 pessoas, incluindo 16 “extremistas islâmicos”. “Estamos preocupados com o grande número de detenções”, reagiu o porta-voz do Alto comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Cerca de um terço dos detidos têm entre 15 e 20 anos de idade”, acrescentou Rupert Colville. “Apelamos às autoridades que assegurem que as pessoas não sejam detidas de forma arbitrária e que os direitos dos detidos sejam respeitados, e que ou sejam acusados ou libertados rapidamente.”
A Tunísia é o caso de sucesso entre os países bafejados pela Primavera Árabe, mas a situação política ainda é muito instável. O atual governo – de unidade nacional – é o nono desde a saída de cena do ditador. Para dificultar a recuperação económica, o crucial sector do turismo tem-se ressentido da vaga de ataques islamitas de 2015. A 26 de junho, na zona turística de Sousse (nordeste), um atentado provocou a morte de 38 estrangeiros, incluindo uma cidadã portuguesa.
Há sete anos, o tiro de partida para os protestos — e para a queda do regime tunisino — teve na sua origem razões económicas. Então, na cidade de Sidi Bouzid (centro), Mohammed Bouazizi, um vendedor ambulante imolou-se pelo fogo, a 17 de dezembro de 2010, em protesto contra a apreensão, por parte da polícia, do seu carrinho de frutas e legumes. Desta vez, os manifestantes dizem que não está em causa o regime, mas antes as suas dificuldades para pôr comida nas suas mesas.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de janeiro de 2018. Pode ser consultado aqui
A morte, há oito dias, de um peixeiro marroquino no interior de um camião do lixo, levou milhares de pessoas às ruas de várias cidades do reino em protesto contra as autoridades. Mouhcine Fikri, de 31 anos, foi engolido por uma trituradora quando — numa atitude desesperada, defendem os manifestantes — tentou salvar 500 kg de espadarte confiscados pela polícia. Uma investigação está em curso para apurar se, de facto, foi um ato de desespero ou um acidente. Se a trituradora estava ligada quando Fikri caiu ou foi acionada depois e quem deve ser penalizado pelo negócio do espadarte, já que a sua pesca está proibida no Mediterrâneo entre 1 de outubro e 30 de novembro.
O facto é que logo se estabeleceram paralelismos entre este caso e o do tunisino Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante que, a 17 de dezembro de 2010, se imolou pelo fogo após a polícia municipal lhe ter apreendido a banca de fruta, e que foi considerado o tiro de partida da Primavera Árabe. Iria agora a morte trágica de Mouhcine Fikri desencadear uma segunda ronda de protestos visando a monarquia, direta ou indiretamente?
Regime vai cedendo
Há cinco anos, Marrocos também não foi poupado aos ventos da Primavera Árabe, mas Mohammed VI foi hábil na contenção das manifestações dinamizadas pelo Movimento 20 de Fevereiro (M20). Promoveu um referendo constitucional e abdicou de prerrogativas, transferindo para o primeiro-ministro o poder de dissolver o Parlamento e para o Parlamento a concessão de amnistias, por exemplo. Com os marroquinos de volta às ruas, estará agora pressionado a fazer novas cedências?
“Este tipo de casos são balões de oxigénio que alimentam o M20, o qual continua a fazer sentido na pressão pelos direitos cívicos, sobretudo no que toca à mulher”, explica ao Expresso Raúl Braga Pires, investigador no Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Militar (CINAMIL). “O regime tem cedido e ajustado as leis aos tempos modernos, como foi o caso da anulação da alínea do código penal que permitia a um violador safar-se caso acordasse casar com a sua vítima.”
O investigador compara este caso a outro, em agosto de 2013, que levou a população às ruas para contestar uma amnistia concedida ao espanhol Daniel Galvan Viña, o “Monstro de Kenitra”, condenado a 30 anos de prisão por crimes de pedofilia, “um assunto sujo e tabu e sempre escondido”. O caso surgira numa altura em que o confronto provocado pela Primavera Árabe tinha dividido profundamente a sociedade marroquina entre “esquerda” e “direita”, mas perante esse caso lealistas e membros do M20 surgiram lado a lado, independentemente de, na véspera, nas ruas, se terem agredido.
“Tensão com as autoridades existe sempre, mas os marroquinos têm noções muito claras sobre os limites e nunca acontecerá o mesmo que na Tunísia”, prossegue Braga Pires, professor na Universidade Mohammed V, em Rabat, entre 2011 e 2014. “Uma das formas inteligentes de conter os ânimos coletivos marroquinos mais impulsivos, durante o inverno de 2011, foi o facto de os cafés do reino estarem permanentemente sintonizados em canais de informação contínua, sobretudo a Al-Jazeera Árabe, que passavam em direto os acontecimentos no Egito, Iémen e, mais tarde, Síria. Os marroquinos viam e diziam: ‘Não queremos isto aqui!’”
O poder dos súbditos
Após a Primavera Árabe, qualquer governante — de Rabat a Muscate (Omã) — sabe que pode ter os dias contados e o mesmo destino do egípcio Hosni Mubarak (preso e condenado) ou do líbio Muammar Kadhafi (linchado na rua). O poder em Marrocos está atento a isso. “Estes casos que mobilizam a opinião pública de forma transversal reforçam ainda mais o poder e a autoridade do monarca”, diz o investigador. “Tudo isto provoca nos súbditos a certeza de que hoje são mais livres e informados do que nunca e que vivem num país/regime que lhes permite manifestarem-se à vontade e provocar justiça em casos de gritante injustiça.”
Outra questão levantada por este caso prende-se com a sua localização. Fikri morreu a 28 de outubro, em Al Hoceima, cidade costeira do Mediterrâneo, na região rebelde e esquecida do Rif (norte). “O Rif já fez as pazes com o Palácio”, diz Raúl Braga Pires. “Foi Hassan II que lhes chamou insetos e nunca se deslocou ao Rif, oficial ou oficiosamente, durante a sua vida/reinado. O filho, Mohammed VI, construiu estradas, deu um novo impulso económico a toda a região com investimento interno e estrangeiro e até já celebrou a Festa do Trono em Tetuão, o que muito bem caiu no goto dos rifenhos. O sentimento independentista característico desta região tem tido razões para se ir esboroando.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de novembro de 2016
Na Tailândia, manifestantes recorreram ao gesto de resistência da saga “Hunger Games” para desafiar o Governo. Nas ruas árabes, os dedos em “v” uniram milhões de pessoas contra regimes déspotas. Dedos apontados para cima, para baixo, dedos juntos ou separados, mãos abertas viradas com a palma para a frente, punhos erguidos, polegares para baixo. Um pouco por todo o mundo, a mímica é uma arma. Nas ruas ou entre políticos, por vezes bastam gestos para passar mensagens importantes. Segue-se a prova em duas dúzias de imagens.
Perto da aldeia grega de Idomeni, um homem fecha as mãos e cruza os punhos incentivando ao bloqueio de uma linha de caminhos de ferro, junto à fronteira com a República da Macedónia. Migrantes e refugiados exigem que as fronteiras se abram para prosseguirem viagem até ao norte da Europa MARKO DJURICA / REUTERSInvestigado pela justiça brasileira por ocultação de património e lavagem de dinheiro, o ex-Presidente brasileiro Lula da Silva defende-se também nas ruas com o punho erguido da resistência. A imagem documenta uma manifestação pró-democracia em São Paulo, a 8 de abril NACHO DOCE / REUTERSPopulista e desbocado, o magnata norte-americano Donald Trump tem esbanjado confiança durante as primárias republicanas, o processo de escolha partidária que antecede as presidenciais nos Estados Unidos que, no caso republicano, termina a 7 de junho. Este comício em Buffalo, Nova Iorque, a 18 de abril, foi apenas um desses momentos CARLO ALLEGRI / REUTERSUm manifestante desaprova a atuação da polícia de choque que intercetou a marcha de um grupo de pessoas a caminho da Arena Castelão, em Fortaleza (Brasil), onde se disputava um jogo da Taça das Confederações, em 2013. Exigiam melhores serviços públicos e protestavam contra os avultados gastos com os grandes eventos desportivos no país DAVI PINHEIRO / REUTERSJeroen Dijsselbloem (à direita) continua a presidir ao Eurogrupo, mas Yanis Varoufakis (à esquerda) já não é ministro das Finanças da Grécia. Bruxelas, porém, continua a cruzar os dedos na esperança que as políticas de Atenas levem o país a bom porto FRANÇOIS LENOIR / REUTERSOfensivo, obsceno, insultuoso. O significado do “dedo do meio” não é passível de equívocos. Várias teorias arriscam uma origem para este gesto fálico. Numa delas, antropólogos sustentam que é uma variação de uma estratégia agressiva de alguns primatas que mostravam o pénis ereto aos inimigos numa tentativa de intimidação RAFAEL MARCHANTE / REUTERSPode ser utilizado para apontar um caminho, mas também para visar alguém. Nas ruas, o dedo indicador é muitas vezes usado para denunciar. A foto mostra um protesto anti-corrupção em Banguecoque, capital da Tailândia, a 15 de novembro de 2013 CHAIWAT SUBPRASOM / REUTERSEm riste, o dedo indicador assumiu, desde meados de 2014, um significado tenebroso — é juntamente com a bandeira negra um dos símbolos da propaganda do autoproclamado “Estado Islâmico” (Daesh). O gesto alude ao “tawhid”, um conceito central no Islão relativo à unicidade de Alá e que reporta à primeira metade da “shahada”, a afirmação de fé dos muçulmanos: “Não há outro deus senão Alá. Maomé é o seu mensageiro” REUTERSOs dedos em “v” foram um dos símbolos da Primavera Árabe, exibidos por milhões de pessoas nos protestos que tomaram as ruas um pouco por todo o mundo árabe. A foto mostra Ahmed Néjib Chebbi, advogado e político tunisino, num protesto pró-democracia na Avenida Bourguiba, em Tunis. Várias teorias tentam identificar a origem deste gesto. Uma delas arrisca que terá surgido durante a batalha de Azincourt em 1415, na Guerra dos 100 Anos, quando soldados franceses ameaçavam cortar os dois dedos de arqueiros ingleses feitos reféns para os impedir de disparar o arco. Em sinal de provocação, os ingleses acenavam aos inimigos com os dedos ameaçados. Durante a II Guerra Mundial, este foi um sinal usado profusamente. Quando as tropas nazis marchavam pelas ruas de Paris e o Reino Unido era o último reduto contra Hitler, o Comando Britânico esboçou a campanha de resistência “V for Victory” nos países ocupados. Aos microfones da BBC, o editor Douglas Ritchie — que surgia com a alcunha de “Colonel Britton” — apelava a que o “v” fosse usado como “símbolo da vontade invencível dos territórios ocupados”. O sinal começou a surgir a giz nos pavimentos, pintado em paredes ou em carros alemães. O gesto seria popularizado pelo primeiro-ministro Winston Churchill, o que lhe valeu fama mundial ZOUBEIR SOUISSI / REUTERSFicou conhecido como a saudação “três Shalits” e foi usado como símbolo de propaganda pelo movimento islamita palestiniano Hamas, após o rapto de três jovens israelitas, a 12 de junho de 2014, perto de um colonato no território palestiniano da Cisjordânia. Gilad Shalit foi um famoso soldado israelita que esteve refém do Hamas entre 2006 e 2011 e que foi libertado em troca da saída de 1027 presos palestinianos das prisões israelitas MUSSA QAWASMA / REUTERSA trilogia “Hunger Games”, adaptada ao cinema com grande sucesso, inspirou o movimento pró-democracia na Tailândia que saiu à rua em força após o golpe militar de 22 de maio de 2014. Na tela, a população da nação imaginária de Panem, que vivia na pobreza, revolta-se contra o poder central do abastado Capitólio que forçava jovens a competirem até à morte em concursos transmitidos pela televisão. Em sinal de unidade e solidariedade para com os jovens em lutam pela sobrevivência, a população do distrito 12 erguia o braço juntando os três dedos do meio. O gesto saltou dos ecrãs para a vida real e muitos tailandeses adotaram-no para desafiar a junta militar, que depois declarou-o ilegal CHAIWAT SUBPRASOM / REUTERSNo Egito, se dois dedos identificavam os opositores a Mubarak durante a revolução de 2011, quatro dedos passaram a identificar os apoiantes da Irmandade Muçulmana, após o seu Presidente Mohamed Morsi ter sido deposto por um golpe militar, em 2013. O gesto nasceu após um massacre — 1150 mortos segundo a Human Rights Watch — na Praça Rabi’a Al-Adawiya, em Nasr City, arredores do Cairo, onde milhares de “Irmãos” que acampavam em permanência foram dispersos com grande violência pelas forças da ordem. Rabaa al-Adawiya, que dá nome à praça, foi uma santa muçulmana e mística sufi do século VIII. Em árabe, “rabi’a” significa “quarto” (ordinal de quatro), daí os quatro dedos MUHAMMAD HAMED / REUTERSA mão aberta é um clássico em protestos de natureza variada. Em Espanha, milhões de cidadãos abriram as duas mãos em manifestações sucessivas contra o terrorismo da ETA, a organização separatista basca fundada em 1959 e que cessou atividade em 2011 — Movimento ¡Basta Ya! Ainda em Espanha, o gesto foi usado, mais recentemente, nos protestos dos Indignados. Mas foi nos EUA que ganhou um cunho mais dramático. Na sequência da morte do jovem afro-americano Michael Brown, em Ferguson, Missouri, atingido a tiro por um polícia branco, a 9 de agosto de 2014, multiplicaram-se protestos sob o slogan “Hands up. Don’t Shoot” (Mãos ao alto. Não dispare). Negros marchavam de mãos abertas para demostrar intenções pacíficas para com a polícia CARLO ALLEGRI / REUTERSNa imagem, apoiantes do Partido de Ação Nacionalista (MHP) fazem o sinal da “cabeça de lobo” numa iniciativa de rua em Ancara. Esta formação partidária é próxima dos “Lobos Cinzentos”, uma organização juvenil ultra-nacionalista e neo-fascista que visa, nomeadamente, os turcos de origem curda. Um dos seus membros era Mehmet Ali Agca que, em 1981, tentou assassinar o Papa João Paulo II, na Praça de S. Pedro UMIT BEKTAS / REUTERSLiderado por Joshua Wong (ao centro, na foto), o movimento estudantil pró-democracia Scholarism (entretanto dissolvido para dar lugar a um partido político) desafiou o Governo chinês nas ruas de Hong Kong, sobretudo em 2014. O protesto ficou conhecido como Revolução dos Guarda-chuvas (usados para tentar conter o gás lacrimogénio lançado pelas forças de segurança), mas outros símbolos foram usados pelos manifestantes. “Cruzamos os braços para expressar a nossa insatisfação em relação ao Governo e para refletir a nossa desconfiança em relação ao Governo central chinês”, explicou Joshua Wong à CNN. Pequim aprovara legislação condicionadora da eleição do Governo daquela região administrativa especial chinesa ANTHONY KWAN / GETTY IMAGESCruzados sobre o peito, os braços podem traduzir sentimentos carinhosos. É o que Hugo Chávez, o carismático e populista Presidente venezuelano falecido a 5 de março de 2013, pretendeu transmitir ao povo que o saudava junto à varanda do Palácio Miraflores, em Caracas. Chávez tinha acabado de regressar de mais uma viagem a Cuba, onde era tratado a um tumor, que se revelaria fatal CARLOS GARCIA RAWLINS / REUTERSNicolas Maduro herdou de Hugo Chávez não só a presidência da Venezuela como o jeito para comunicar com o povo de forma afetiva. Na foto, ele recorre à mímica para fazer um coração direcionado a um grupo de estudantes que o saudava no exterior do Palácio Miraflores, em Caracas CARLOS GARCIA RAWLINS / REUTERSPetro Poroshenko, Presidente da Ucrânia, marca presença numa cerimónia de homenagem às vítimas da II Guerra Mundial, junto ao Túmulo do Soldado Desconhecido, em Kiev, a 22 de junho de 2015. A mão sobre o coração revela sentimento e respeito. Noutras circunstâncias, colocar a mão sobre o coração significa que aquilo que se diz é a mais pura das verdades. Para muitos povos, é um hábito que acompanha a interpretação do hino nacional, por exemplo REUTERSAs mãos juntam-se durante uma oração e também num desejo de paz. Esta é uma forma de saudação que caracteriza o líder espiritual dos tibetanos, Dalai Lama JESSICA RINALDI / REUTERSJuntar as mãos em sinal de paz pode também ser um recurso quando, por algum motivo, os interlocutores estão impedidos de se tocarem, como acontece na situação da foto, relativa a um encontro em Nova Deli entre o iraniano Javad Zarif e a indiana Sushma Swaraj, a 14 de agosto de 2015. Na República Islâmica do Irão, por norma, um homem só deve tocar em mulheres da família ou naquela com quem vai casar. A prática é seguida à risca pelo protocolo iraniano, ainda que nas ruas haja cada vez mais cidadãos a ignora-la ADNAN ABIDI / REUTERSDe mãos dadas, revelador de unidade e coesão, um grupo de pessoas exige, junto ao Parlamento de Taiwan, a revisão da lei do referendo, para que os assuntos mais controversos possam ser submetidos a consulta popular. O protesto, a 10 de abril de 2015, inseria-se no chamado Movimento do Girassol, que contestava um acordo comercial celebrado com a República Popular da China e visto como uma ameaça à democracia em Taiwan PICHI CHUANG / REUTERSUm casal de migrantes prossegue viagem perto de Gevgelija, na Macedónia, após atravessar a fronteira entre a Grécia, a 6 de setembro de 2015. De mãos entrelaçadas, ajudam-se e incentivam-se para ultrapassar o muito que ainda têm pela frente STOYAN NENOV / REUTERSO gesto repete-se milhões de vezes todos os dias e em todo o mundo. Mas há situações que são mais especiais do que noutras. Com um simples apertar de mão e uma máquina fotográfica por perto, os Presidentes de Cuba e dos Estados Unidos, Raúl Castro e Barack Obama, mostraram ao mundo que a inimizade que caracterizou a relação bilateral desde a Revolução cubana de 1959 faz parte do passado. Este cumprimento aconteceu a 21 de março deste ano, durante a histórica visita de Obama a Cuba CARLOS BARRIA / REUTERSBarack Obama não se dá mal com o humor e ao longo dos dois mandatos como Presidente dos Estados Unidos marcou presença nos “talk shows” humorísticos variadas vezes. A sua atitude descontraída contribuiu igualmente para que tirasse partido de situações inesperadas. Desafiado pelo cadete Robert McConnell a posar “à James Bond”, durante a cerimónia de atribuição de diplomas da Academia da Guarda Costeira dos EUA, a 20 de maio de 2015, Obama não desiludiu. A pensar numa carreira em Hollywood após deixar a Casa Branca? KEVIN LAMARQUE / REUTERS
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 16 de maio de 2016. Pode ser consultado aqui
Génova foi o palco da última grande manifestação antiglobalização. Um grupo de portugueses marcou presença. Reportagem em Génova
Já em Génova, os manifestantes portugueses lançam-se a caminho do cortejo, atrás de uma faixa onde se lê: “Pela globalização das lutas” MARGARIDA MOTA
Lisboa tinha ficado para trás há mais de 30 horas quando o “autocarro da resistência” foi tomado pela primeira grande discussão. “Como é, tiramos a bandeira ou não?” Eram oito da manhã de sábado passado. Desde que arrancara de Lisboa, ao início da madrugada do dia anterior, o autocarro atravessara Portugal, Espanha e França com uma pequena bandeira cor-de-rosa do Bloco de Esquerda (BE) orgulhosamente colada no vidro do primeiro andar.
A bordo, 51 jovens portugueses — vindos de Lisboa, Porto, Coimbra e Faro, quase todos militantes do BE — seguiam para Génova, para a manifestação internacional antiglobalização. A proximidade com a fronteira franco-italiana levantou a dúvida acerca da oportunidade da bandeira. Dificilmente o autocarro não seria mandado parar, a questão era saber se a bandeira não dificultaria ainda mais as coisas. “Deixa ficar. Afinal, o que não falta, dentro do autocarro, são indícios de que vamos para Génova”, foi a posição que acabou por prevalecer.
Mas não seria por causa da bandeira que o autocarro ficaria imobilizado durante cerca de uma hora na fronteira de Ventimiglia. Era nas fronteiras internacionais que funcionava o principal filtro do tráfego que ia para Génova. Por isso, sem surpresa, todos os autocarros eram mandados parar.
Os “carabinieri” entram no autocarro português e recolhem as identificações dos passageiros. No exterior, as bagagens são retiradas da mala e alinhadas no chão. Dezenas de sacos, bolsas e mochilas são abertos e revistados por alto. Junto dos jovens, não há receio, apenas impaciência: “Isto é só para atrasar. Nem estão a ver aquilo como deve ser.” Mais ao lado, um “carabiniero” tenta deitar água na fervura: “Mais vale prevenir do que remediar.”
“Carabinieri” revistam as mochilas dos portugueses, na fronteira italiana MARGARIDA MOTA
Alguns papéis mais suspeitos são traduzidos, com a ajuda de um agente brasileiro. Um saco com vídeos, livros, autocolantes, isqueiros e panfletos do BE causa alguma apreensão. A Polícia italiana quer ver o conteúdo dos vídeos, e é com algum gozo que os jovens portugueses observam os “carabinieri”, no interior do autocarro, a verem os tempos de antena do BE, ao mesmo tempo que divagam sobre o potencial de perigo das palavras de camaradas como Francisco Louçã ou Boaventura Sousa Santos à medida que vão surgindo no ecrã da televisão.
Quilómetros antes, ainda no lado francês, numa primeira barragem policial, a gargalhada soltara-se com igual facilidade. Após uma revista ao interior do autocarro, um guarda francês apreendera um exemplar do “Combate”, o jornal oficial do Partido Socialista Revolucionário (PSR). Mas a artificialidade do gesto foi tão evidente que o guarda nem se inibiu de sorrir e de posar para a fotografia, simulando que estava a ler o pretenso objecto de delito…
O autocarro acabaria por deixar o posto fronteiriço italiano sem problemas. Menos sorte teve um outro que vinha da Catalunha, igualmente com destino a Génova, que já lá estava quando os portugueses chegaram e que ainda lá ficou quando partiram.
Com pontualidade britânica, o autocarro português entra em Génova às 13h30 de sábado, exactamente 36 horas depois de ter partido de Lisboa. A ânsia de integrar a manifestação é grande, e rapidamente os jovens organizam-se atrás de uma faixa de protesto — “Pela globalização das lutas” —, munidos de coloridas bandeiras do BE e do PSR. Uma carrinha que vai a passar pára e previne que a Polícia anda a pulverizar a cidade com gás lacrimogéneo.
Lenços a cobrir as vias respiratórias para proteger do gás lacrimogéneo MARGARIDA MOTA
Os portugueses começam a marchar com a sensação de que a tarde não vai ser fácil. Pelo caminho, vão ensaiando “gritos de guerra”, até surgirem os primeiros obstáculos. É difícil circular, a maioria das ruas está bloqueada por cordões policiais, enormes contentores ou densas nuvens de gás lacrimogéneo. O som dos helicópteros da Polícia intensifica o clima de tensão, e é no meio de alguma desorientação que os portugueses lá conseguem intersectar o gigantesco cortejo antiglobalização.
Ao grito de “Repressão policial, terrorismo oficial”, os bloquistas são recebidos com uma estrondosa ovação. Um grupo de ingleses e irlandeses abre espaço, e o reforço português passa a desfilar, oficialmente, na “manif” de Génova, atrás dos curdos. Os primeiros momentos são de deslumbre. “É impressionante”, “Nunca vi nada assim”, “Isto está com um ambiente excelente”, é o que se vai ouvindo um pouco por todo o lado. Há centenas de cartazes e de faixas de protesto, mas nem uma única bandeira nacional: “Estas questões são universais”, afirma-se convictamente.
Vive-se o primeiro momento de entusiasmo geral quando corre o boato de que a cimeira do G8 tinha sido cancelada. Mas seria o povo de Génova que estaria na origem da maior euforia da tarde. Em cada edifício, várias janelas vão-se abrindo, ao ritmo da marcha, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras, bacias ou garrafas de água. Durante os dias que antecederam as manifestações, Génova foi caracterizada como uma cidade-fantasma, abandonada pela sua população, pretensamente de costas voltadas para os protestos antiglobalização. Contrariamente, os manifestantes acabaram por testemunhar que as mesmas pessoas que, na véspera, tinham fechado as portas a sete chaves para sobreviverem à jornada de violência estavam com eles no protesto.
É mesmo provável que em Génova tenha nascido um novo ícone do movimento antiglobalização: a solidariedade implícita das populações, vítimas directas da violência das alas radicais do movimento mas em sintonia com os manifestantes pacíficos. Os protestantes percebem o simbolismo do acto e correspondem: “Genova libera” (“Génova livre”), repete-se muitas vezes.
As janelas vão-se abrindo, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras e bacias de água
Ao fim de duas horas, o cortejo dissolve-se espontaneamente. Nalguns pontos da cidade, decorrem comícios, mas permanece no ar um sentimento generalizado de insegurança e um cheiro intenso a gás lacrimogéneo. Os jovens portugueses querem ir até à Praça Kennedy, onde têm combinado um encontro com um grupo de italianos, mas as informações que lhes chegam fazem abortar o plano: “A praça está destruída. Vamos mas é para o autocarro.”
Há muita gente a desmobilizar, e o percurso até ao autocarro é feito com um olho por cima do ombro. As bandeiras do BE e do PSR há muito que estão recolhidas: contrariamente à chegada à fronteira italiana, onde o espírito de aventura estava na sua máxima força, o perigo, em Génova, é real e espreita a cada esquina.
Ao passarem por três “radicais” que batem a compasso com paus em contentores do lixo, numa clara provocação à Polícia, os portugueses ouvem o inevitável: “Fujam! Fujam!” O alarme revela-se falso, mas é suficientemente assustador para desencadear uma curta correria e provocar algumas quedas inconsequentes. Já quase a chegarem ao autocarro — estacionado perto do estádio Luigi Ferraris —, vêem uma densa coluna de fumo negro emergir ao longe. “É na bomba de gasolina por onde passámos há bocado”, garantem.
Há a sensação de que a Polícia está a “limpar” a cidade a gás lacrimogéneo, e todos querem abandonar Génova o mais rapidamente possível. De súbito, uma nuvem de gás, vinda não se sabe de onde, atinge em cheio os portugueses, que se precipitam para dentro do autocarro. “Fechem as portas! Fechem as portas!”, grita-se. Os olhos avermelhados choram abundantemente, e são precisos uns bons minutos para que a visão se restabeleça.
O autocarro arranca, e Génova começa a ficar para trás. Instala-se então o sentimento do dever cumprido. “Ficou demonstrada a amplitude do movimento, e o ónus da violência coube, mais uma vez, à repressão policial”, afirma, em jeito de balanço, Hugo Albuquerque, de 24 anos, um dos organizadores da excursão.
Artigo publicado no suplemento Vidas do “Expresso”, a 28 de julho de 2001
A luta antiglobalização carece de regras. A violência em Génova foi uma evidência. Reportagem em Génova
Jovens portugueses durante a manifestação antiglobalização em Génova, a 21 de julho de 2001 MARGARIDA MOTA
Salvatore ia sensivelmente a meio do caminho, quando se enganou no percurso. “Não consigo conduzir e conversar ao mesmo tempo”, afirmou, esboçando um sorriso de resignação.
Desembaraçou-se a corrigir a trajectória e retomou o caminho para Roma, mas não se conseguiu calar: “Em Génova, estiveram entre 200 e 300 mil pessoas, hoje estão 10 mil a protestar em Milão e amanhã vai haver outra manifestação em Roma”, afirmava, na segunda-feira, este italiano. Estava visivelmente entusiasmado com as jornadas de protesto contra a actuação policial, que se seguiram às manifestações de Génova.
Tinha sido num cenário de guerrilha urbana que a manifestação pacífica — organizada por sindicatos, associações e organizações não-governamentais — desfilara no sábado. Na véspera, a “desobediência civil”, convocada pelos “casseurs” (as alas radicais do movimento antiglobalização) tinha transformado a cidade mediterrânica de Génova num cenário de guerra balcânica, com vidros estilhaçados, carros calcinados e lixo em abundância.
No sábado, a presença constante de helicópteros da polícia e o previsível desejo de vingança de Carlo Giuliani (o italiano de 23 anos, membro de um grupo anarquista, mortalmente atingido na véspera) realça uma calma precária. À semelhança da desobediência civil, também a marcha da “não-violência activa” viria, ironicamente, a terminar em confrontos.
Os excessos cometidos pela polícia italiana durante uma rusga nocturna, no domingo, à sede do Fórum Social de Génova — a contracimeira com 700 organizações, paralelamente à reunião do G8 (os sete países mais ricos e a Rússia) —, foram amplamente denunciados. Mas nem globalização nem antiglobalização podem cantar vitória. São muitas as contradições que os dois campos encerram, tornando este fenómeno uma autêntica guerra de surdos.
Cada um por si
Após a morte de Carlo Giuliani, foram várias as organizações que desmobilizaram, não marcando presença na manifestação pacífica — entre as quais a famosa “Drop the Debt” (“Anulem a Dívida”) e alguns movimentos católicos. Ao mesmo tempo, os encontros dos cantores Bono Vox (U2) e Bob Geldof com alguns líderes do G8 — fazendo “lobby” pelo cancelamento da dívida dos países do Terceiro Mundo — foram duramente criticados pelo principal “site” coordenador da luta antiglobalização (Indymedia.org ).
“O espectáculo de Geldof e Bono, abraçando os líderes do G8, foi revoltante. Tratou-se de uma irreflectida associação com os ‘senhores do mundo’ e de uma dissociação das dezenas de milhares de pessoas que se juntaram para protestar contra as injustiças e desigualdades da nova ordem mundial”, lia-se nas páginas do Indymedia.
As contradições também se reflectiram nas ruas. “Esta é a nossa manifestação, a vossa, a dos anarquistas, foi ontem”, gritava um homem para outro, que usava uma máscara de gás, durante a manifestação pacífica.
G8 a várias vozes
Também os “senhores do mundo” não escapam às contradições. Um dos pontos do comunicado final da cimeira apela para o estabelecimento de uma “larga parceria com a sociedade civil e o sector privado”.
Paralelamente, o G8 — refugiado, em Génova, a bordo de um luxuoso paquete, protegido por um apertado esquema de segurança — anunciou que a cimeira de 2002, inicialmente prevista para a capital canadiana (Otava), se realizará em Kananaskis, uma estação de desportos de Inverno isolada, no coração das Montanhas Rochosas…
Em relação à violência nas manifestações, os presidentes dos EUA e da França, por exemplo, desafinaram publicamente. Para George W. Bush, “estes manifestantes, que tentam impedir as nossas discussões sobre o comércio e a ajuda aos países pobres, não representam os pobres”.
Já para Jacques Chirac, o fenómeno “merece uma reflexão. As dezenas e dezenas de milhares de compatriotas, vindos sobretudo da Europa para manifestar o desejo de mudança, merecem consideração por parte dos dirigentes do mundo”.
Parece evidente que este braço -de-ferro entre os “senhores do mundo” e o movimento antiglobalização não tem ainda regras definidas. No sábado, enquanto observava o pandemónio em que se transformara a sua cidade, um habitante de Génova dizia: “Tenho 82 anos, conheci a guerra, mas isto… isto é uma vergonha”.
PORTO ALEGRE JÁ EM MARCHA
Está já em preparação o II Fórum Social Mundial (FSM), que decorrerá de 31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 2002 na cidade brasileira de Porto Alegre — à semelhança do primeiro —, onde são esperados entre 80 e 100 mil participantes. Ainda em fase de discussão, os dois eixos centrais desta segunda edição deverão ser o cancelamento da dívida externa dos países do Terceiro Mundo e o futuro da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Mas é ao nível dos resultados práticos que o II FSM se propõe dar um passo de gigante: “Estamos a trabalhar na organização e na estrutura deste II FSM para que ele seja muito mais positivo, com resoluções que possam ser assumidas por movimentos sociais, por governos e pela sociedade civil em geral”, afirmou, em declarações ao “Expresso”, André Mombach, um brasileiro de 23 anos directamente envolvido na organização desta segunda edição do FSM através do Comité da Juventude.
André Mombach, de 23 anos, da organização do II Fórum Social de Porto Alegre MARGARIDA MOTA
Para Mombach, é importante que o Fórum de Porto Alegre caminhe no sentido da elaboração de propostas alternativas para os problemas que o FSM denuncia, até para dar crédito ao próprio movimento antiglobalização: “Nesse aspecto, o I Fórum foi muito deficitário e ficou muito no plano da resistência”, refere o jovem. A reincidência do Brasil — e da cidade de Porto Alegre — como anfitrião da segunda edição não é casual: “É um país onde os dois planos do FSM existem e estão muito bem constituídos: o plano da resistência (através do movimento sindical, do Movimento dos Sem-Terra) e o da discussão de uma alternativa (através da democracia participativa, que tem já 13 anos de experiência na Prefeitura de Porto Alegre)”, diz André Mombach.
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de julho de 2001
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.