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Cimeira de Génova sob o signo da morte

Carlo Giuliani, morto durante os protestos contra a realização da cimeira do G8 em Génova GRATISPNG

No meio de um caos indescritível e depois de horas de confrontos violentos nas ruas de Génova, foi ontem morto pela polícia um jovem [Carlo Giuliani, retratado na ilustração] que se manifestava contra a cimeira do G8, dos sete países mais industrializados do mundo, mais a Rússia. Uma outra jovem terá sido gravemente ferida, e pelo menos 46 manifestantes e 31 polícias, segundo dados provisórios, foram também feridos. Foram detidas pelo menos 40 pessoas.

O jovem, que usava um capuz, foi atingido com duas balas na cabeça e deixado no chão durante horas, coberto por um lençol, enquanto prosseguiam os confrontos entre a polícia e as dezenas de milhares de manifestantes antiglobalização (100 mil, segundo os organizadores), que convergiram de todo o mundo para o porto italiano e usaram técnicas de guerrilha urbana nos seus confrontos com a polícia. Os manifestantes tentaram furar as barreiras colocadas pela polícia para os impedir de chegar até ao Palácio Ducal, onde os oito líderes mundiais iniciavam o seu primeiro encontro oficial.

A notícia dos confrontos pareceu não abalar a confiança do grupo de 51 jovens militantes do Bloco de Esquerda, que partiu de Lisboa na madrugada de sexta-feira, de autocarro, para Génova. Os jovens têm a expectativa de entrar ainda hoje na cidade, para participar na grande manifestação internacional antiglobalização, marcada para esta tarde. Agora é que vai ser mais importante do que nunca desfilar pacificamente”, disse ao “Expresso” Jorge Costa, um dos organizadores.

Artigo escrito com o contributo de Vitoria Di Lelio, correspondente do “Expresso” em Roma e publicado no Expresso, a 21 de julho de 2001

Em Génova, contra o capital…

Os soldados da antiglobalização já estão a postos para mais um combate: a cidade italiana de Génova, onde, dentro de uma semana, se realiza mais uma cimeira do G8. A nebulosa de grupos que compõem o movimento antiglobalização (chamam-lhe a “Quinta Internacional”) são chamados às armas, fazendo temer uma explosão de violência que faz empalidecer um movimento que luta, afinal, também por uma globalização mais justa e solidária

Membros do movimento social italiano Tute Bianche WIKIMEDIA COMMONS

Ana Cruz e Hugo Albuquerque são dois dos rostos do movimento antiglobalização em Portugal. Militantes do Partido Socialista Revolucionário e do Bloco de Esquerda (BE), estão de mochila feita para irem até Génova, para uma jornada anti-globalização, que decorrerá às portas de mais uma reunião do Grupo dos sete países mais industrializados e a Rússia (G8), no dia 21.

Apesar de ser a primeira vez que vão a uma “manif” antiglobalização no estrangeiro, não revelam uma excitação adicional. Em entrevista ao “Expresso”, preferem, aliás, falar de “motivações”: “Não contestamos a globalização por contestar, a globalização pode ser um bom conceito, agora não é a globalização capitalista com certeza”, refere Hugo, um estudante de Engenharia do Ambiente de 24 anos que, nas próximas autárquicas, encabeçará a lista do BE à Câmara Municipal de Odivelas.

Ana, de 22 anos, está de acordo com  ele: “Não consigo estar parada, a assistir, vou para a rua porque não é este tipo de globalização que quero — isto é uma globalização feita de princípios económicos, que põe em causa princípios humanitários e de igualdade que defendo”.

Não às fronteiras!

Paralelamente ao curso de Sociologia, Ana trabalha na associação SOS Racismo. O problema da imigração ilegal é uma das suas principais bandeiras. “Não concordo com o encerramento das fronteiras”, diz. “Como é que as pessoas podem ser ilegais? Não gosto da palavra, é um contra-senso da dignidade humana. As fronteiras não impedem ninguém de entrar, se as pessoas querem entrar num país elas entram, podem sofrer, muitos até morrem… As fronteiras só tornam miserável a vida das pessoas”, afirma.

Hugo concorda: “Uma perspectiva interessante seria que as pessoas também pudessem circular como os capitais — e não podem”.

As críticas à globalização fluem a compasso, tal como os argumentos em defesa da militância antiglobalização. Hugo diz que há um slogan da Juventude Comunista Revolucionária Francesa de que gosta particularmente: “As companhias mundiais globalizam a miséria, globalizemos nós a resistência”. Segundo Hugo, esta máxima exprime, de alguma forma, aquilo que preside ao movimento.

Ambos aceitam que o movimento encerra várias contradições, mas não deixam de reconhecer que o Fórum Social de Porto Alegre (que decorreu em Janeiro, paralelamente à cimeira de Davos, que reuniu os “poderosos” do planeta) constitui um marco do processo de afirmação do movimento. “Deixa de ser uma manifestação pela manifestação, é um fórum pela positiva”, diz Hugo.

Quando confrontados com a necessidade de, eles próprios, apontarem soluções para os problemas que reivindicam, as respostas passam, invariavelmente, pela chamada “Taxa Tobin”. “É uma coisa irrisória”, refere Hugo. “É uma proposta simples, mas nem isso o sistema quer assimilar. Não controlaria a especulação, porque é um valor muito pequeno para controlar a ‘economia de casino’, mas permitiria redireccionar esse lucro para coisas importantes”, sustenta. Ana salienta também “o fim da dívida dos países do Terceiro Mundo, um dos grandes consensos do movimento antiglobalização”.

A multiplicidade de causas que integram o movimento antiglobalização não constitui um factor desmobilizador. “Apesar das pessoas participarem com objectivos muito diferentes, há um princípio global, que é a revisão da forma como o mundo está constituído”, defende Ana.

Para Hugo, “a diversidade de posições é, neste caso, parte da solução. A alternativa a uma globalização capitalista não pode ser um modelo monocolor. Aquilo que une a globalização capitalista é o mercado, aquilo que une a globalização da resistência é são aceitar aquilo que nos querem impor”.

Sem violência, mas…

Pelo facto de ter ganho visibilidade mediática na sequência dos distúrbios paralelos à cimeira de Seattle, em Novembro de 1999, o movimento antiglobalização é conotado com um certo tipo de violência.

Hugo reconhece-a, mas rejeita qualquer semelhança com o fenómeno “hooligan”, no futebol. Não lhe parece que fazer distinções entre “boas e más companhias” seja politicamente consequente. “Distanciamo-nos dessa violência, mas não deixamos de aceitar essas pessoas. Seria extremamente complicado fazê-lo num movimento deste tipo e as pessoas têm o direito de se manifestar”. Para ele, “a carga policial é, até, o principal estímulo”.

Em Génova, a violência está na primeira fila das preocupações. O Fórum Social (entre 16 e 22) vai juntar cerca de 150 associações estrangeiras e mil italianas: católicas, ecologistas, sindicalistas e também as “Tute Bianche” (“fatos-de-macaco” brancos), os anarquistas-guerreiros que assinaram um pacto de não violência e respeito pela cidade e pelas pessoas.

No dia 20, as “Tute Bianche” tentarão furar a “zona vermelha” (área interdita), para o que efectuaram simulações de confrontos com a polícia, em Milão, no passado dia 30.

Um dos chefes do movimento, Vittorio Agnoletto, pede que se corrija a imagem dada pela comunicação social. “Não nos chamem povo de Seattle, mas de Porto Alegre, porque foi aí que começou o trabalho para transformar o movimento, da contestação para a proposta”, disse ele ao “Expresso”. “De Génova, lançaremos novo slogan: um outro mundo está em construção”, adianta.

Tensão latente

Existe um clima de tensão sobre o que poderá acontecer quando da cimeira do G8, sobretudo devido aos “sinais” dados pelo Governo, Polícia e instituições em geral. “A impressão é de que há aparelhos internos da polícia que não partilham as posições tomadas pelo seu chefe de Génova, De Gennaro, e que tentarão provocar para instigar um choque”, disse ao “Expresso” Stefano Lenzi, do Fórum Social de Génova.

Aparentemente, a estratégia das “Tute Bianche” mantém-se: “Para Génova, apurámos uma mensagem forte, baseada na metáfora de ‘Braveheart’ — queremos dizer que chegamos de uma nova Idade Média, onde existe, simultaneamente, a máxima potência tecnológica e crianças de seis anos que costuram sapatilhas para a Nike. O paradoxo é que, quanto mais falarmos do ‘bastião cercado’, mais os nossos adversários disfarçam os polícias de Robocop”, diz Luca Casarini, porta-voz das “Tute Bianche”.

Génova representa também uma chamada às armas da ala violenta do movimento antiglobalização. Situacionistas, insurrecionalistas, eco-sabotadores, ou “Black Bloc” (anarquistas) dizem que, após Gotemburgo (Conselho Europeu, da UE, em Junho, onde ocorreram violentos incidentes), não há espaço para mediação.

Artigo escrito com o contributo de Vittoria Di Lelio, correspondente do “Expresso” em Roma, e publicado no “Expresso”, a 14 de julho de 2001

Espanha quer expulsar português

Dura já há quase três semanas o tormento de um jovem português, que foi detido no passado dia 24, em Barcelona, no final de uma manifestação antiglobalizagão, às portas de uma reunião do Banco Mundial (que seria cancelada).

Desde então, recai sobre Tiago Santos, de 19 anos, uma ordem de expulsão que o impedirá de entrar no território espanhol (e no espaço Schengen, exceptuando Portugal) durante cinco anos. O caso foi considerado não urgente, pelo que o jovem poderá ter de esperar mais uma semana pela resposta ao requerimento solicitando a suspensão da ordem de expulsão. Enquanto o processo se arrastar, ele não poderá sair de Espanha e terá de apresentar-se na Polícia nos dias 1 e 15 de cada mês.

Segundo o auto de detenção de Tiago — ao qual o “Expresso” teve acesso —, e ao abrigo da Lei sobre Direitos e Liberdades dos Estrangeiros em Espanha, o jovem foi detido por não possuir “autorização de trabalho e de residência”, não ter “domicílio habitual e próprio” em Espanha e por ter sido dada como provada a sua participação “em actos contra a ordem pública”. Mas em declarações ao “Expresso”, Isabel Pereira, a mãe, afirma que o filho nega que tenha atirado paus e pedras, como o acusa a Polícia.

Na quinta-feira, o diário espanhol “El País” noticiou que a juíza Consuelo Sanchís, do Tribunal de Instrução n° 33 de Barcelona, arquivara cinco processos e considerara que os 21 detidos não tinhan cometido delitos atentatórios da ordem pública — contrariando assim o critério que sustentava a acusação da Polícia. A decisão não anula, porém, a ordem de expulsão sobre o português e sobre um cidadão italiano, os dois únicos estrangeiros detidos.

Curiosamente, a actuação policial tem sido alvo de várias críticas, sobretudo da imprensa espanhola, que denunciou a passividade da Polícia, numa primeira fase, perante actos de vandalismo e, no final, não hesitou em carregar duramente sobre manifestantes pacíficos, incluindo alguns jornalistas.

Para Isabel Pereira, toda a situação assemelha-se a um enredo muito ‘kafkiano’”. Por isso, não rejeita a possibilidade de vir a processar o Estado espanhol pelas várias irregularidades que, no seu entender, foram cometidas ao longo do processo.

Artigo publicado no Expresso, a 14 de julho de 2001