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‘Kafala’, o sistema laboral do Catar que faz do sonho pesadelo

As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante

A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG

A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.

Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.

“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.

“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”

Catar lidera nas reformas

O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.

O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos

Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.

Que querem os nativos?

“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.

“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”

Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”

À parte a pressão interna­cional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um apelo a Ronaldo, Messi e companhia: “Se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar, será uma oportunidade perdida”

As críticas à volta da atribuição do próximo Mundial ao Catar colocam ainda mais os holofotes sobre os futebolistas que irão competir nos luxuosos relvados do emirado. “Os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem” sobre o trabalho escravo dos migrantes, as restrições impostas às mulheres ou a rejeição dos homossexuais, defende Tim Sparv, antigo futebolista finlandês, em entrevista à Tribuna Expresso. Sparv pôs a mão na consciência e tornou-se uma voz em defesa da moralidade no desporto

Nos últimos quinze anos, dois dos maiores eventos desportivos à escala global foram atribuídos, por quatro vezes, a países autoritários, com a ficha suja ao nível do respeito pelos direitos e liberdades individuais.

A China organizou os Jogos Olímpicos de verão em 2008 e a edição de inverno de fevereiro passado, ambos em Pequim. Já a Rússia acolheu os Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e o Campeonato do Mundo da FIFA de 2018.

Este ano, ao realizar o Mundial de futebol, o Catar soma-se à lista exclusiva de países com capacidade para organizar, por si só, um evento de grande dimensão. Sem créditos na modalidade, o pequeno emirado do Golfo Pérsico — pouco maior do que o distrito de Beja e com menos de três milhões de habitantes — beneficia de um orçamento suficientemente ilimitado para deslumbrar o mundo do desporto.

Haverá uma sombra a ofuscar todo o glamour: o tratamento escravo dado aos imigrantes, as restrições dos direitos das mulheres e a rejeição à comunidade LGBTQIA+ levantam questões morais que responsabilizam, neste caso, a FIFA e não deixam indiferentes muitos profissionais do desporto.

Um prémio para ditadores

“Atribuir um grande torneio, como o Mundial de futebol, devia ser um prémio por um registo positivo ao nível dos direitos humanos. Devia existir um conjunto de critérios na hora de dar este tipo de eventos. De outra forma, vamos pôr vidas humanas em risco e vamos recompensar ditadores e países que não o merecem”, defende o antigo futebolista finlandês Tim Sparv, em entrevista à Tribuna Expresso.

“Para mim, este tipo de organizações devem compensar bons comportamentos e atitudes, pessoas focadas na igualdade e em valores positivos. Não pode ser suficiente montar um bom espetáculo durante um mês. É necessário algo mais”, sublinha.

Tim Sparv foi o capitão da seleção da Finlândia no Euro 2020, o primeiro Europeu em que a equipa nórdica participou, em 2021 JOOSEP MARTINSON / GETTY IMAGES

O internacional finlandês, que arrumou as chuteiras no final do ano passado, aos 34 anos, é hoje uma voz ativa na denúncia dos problemas laborais no Catar e no apelo para que os agentes desportivos se envolvam.

“Os atletas podem ter um grande impacto na sociedade, mas muitas vezes isso não acontece. Estamos muito envolvidos na profissão e não vemos as possibilidades que temos, de falarmos com crianças e jovens e de os influenciarmos, de passarmos mensagens positivas, contra o racismo, a favor da igualdade, sobre os migrantes, a importância da leitura, pode ser sobre tantas coisas…”, diz.

“Mas é preciso que seja algo em que acreditemos e que nos apaixone. Chegou um pouco tarde na minha carreira, mas estou feliz por fazer algo.”

Viver na bolha, sem olhar o mundo

Sparv despertou para o problema dos abusos dos direitos humanos no Catar em 2019, quando a seleção finlandesa tinha um estágio agendado nesse país do Golfo. Riku Riski, um companheiro de equipa, alegou razões éticas e recusou fazer a viagem.

“Este episódio fez-me questionar: ‘O que se passa? O que não estou a ver?’ Eu sabia que o Catar não era propriamente como a Finlândia, mas vivia na minha bolha, demasiado concentrado em ser futebolista acima de qualquer coisa, em vez de usar a minha condição de capitão da seleção nacional para consciencializar para determinados assuntos.”

Antes de um jogo contra a Turquia, Haaland, estrela da seleção norueguesa e do Manchester City, usa uma ‘t-shirt’ com a inscrição “Direitos humanos, dentro e fora do campo” JORGE GUERRERO / AFP / GETTY IMAGES

Se qualquer futebolista internacional, mesmo em países sem grande projeção na modalidade, tem potencialmente uma audiência de milhões de adeptos a escutá-lo, esse ativo é muitas vezes desperdiçado pelos maiores craques.

“Nestas grandes competições, os jogadores contactam diariamente com os media. Fará uma grande diferença se as grandes estrelas falarem destes assuntos. Ficarei muito desiludido se se limitarem a falar de futebol enquanto estiverem no Catar. Será uma oportunidade perdida.”

A diplomacia das t-shirts

Tim acredita que haverá equipas ou jogadores individualmente a colocarem o dedo na ferida. Anima-o iniciativas como as das seleções da Noruega, Alemanha e Países Baixos — as duas últimas qualificadas para o Catar — que, em jogos de qualificação para o torneio, recorreram à “diplomacia da t-shirt” para difundir mensagens importantes.

“Direitos humanos dentro e fora do campo”, defenderam os noruegueses em camisolas usadas no aquecimento do jogo contra Gibraltar, a 24 de março de 2021. No dia seguinte, antes de defrontarem a Islândia, os jogadores alemães apresentarem-se em formação com a expressão “direitos humanos” estampada em t-shirts pretas. Dias depois, foi a vez dos neerlandeses juntaram-se à campanha com o slogan “Futebol apoia a mudança”.

Sem adesão da equipa adversária (Hungria), os jogadores ingleses protestam contra o racismo, na Puskas Arena de Budapeste NICK POTTS / GETTY IMAGES

Em março deste ano, Harry Kane, o capitão da seleção inglesa, revelou que os jogadores tinham-se reunido para discutir a questão dos direitos humanos no Catar. E garantiu que os ingleses irão usar as plataformas ao seu dispor para aumentar a consciencialização sobre o assunto.

“É importante perceber que, antes de tudo, enquanto jogadores, nós não escolhemos onde este Campeonato Mundial vai ter lugar”, disse Kane. “Mas isto acabou por contribuir para lançar o foco sobre questões importantes que poderiam não ter vindo à tona se o Mundial não se realizasse ali.”

Ainda o exemplo de Kaepernick

A equipa inglesa tem sido das que, de forma mais convicta, continua, antes de cada partida, a colocar o “joelho no chão”, num protesto antirracismo criado por Colin Kaepernick. Em 2016, este jogador de futebol americano ajoelhou-se durante a execução do hino dos Estados Unidos, em protesto contra a violência racial no país. O gesto acabou com a carreira do futebolista, mas continua a inspirar desportistas em todo o mundo.

“Tenho a certeza que alguém vai usar o Mundial no Catar para fazer algum tipo de campanha, alguma ação focada na situação dos trabalhadores migrantes, na igualdade, nos direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQ”, diz Sparv.

“Estou bastante confiante que alguém diga: ‘Ok, esta é uma grande possibilidade de falarmos sobre estes assuntos, de sermos criativos e fazermos algo acontecer, dentro ou fora do campo, antes ou depois dos jogos’. E os adeptos também têm a possibilidade de desempenhar um papel.”

Tim Sparv abandonou os relvados em dezembro de 2021, aos 34 anos, encerrando uma carreira de quinze anos como futebolista profissional LARS RONBOG / GETTY IMAGES

Sparv acredita no poder da palavra. Além das entrevistas aos órgãos de informação, tem escrito artigos incitando os protagonistas do futebol a não ficarem indiferentes.

Já este ano, deslocou-se ao Catar, numa viagem organizada pela Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (FIFPro), o que lhe possibilitou o contacto com migrantes, deu-lhe um conhecimento mais amplo do problema e conferiu-lhe maior legitimidade para falar.

Como tratar a Rússia?

O finlandês não se mostra partidário do boicote a eventos desportivos realizados em países alvo de algum tipo de desaprovação internacional. Mas aceita que possa haver exceções, e toma como exemplo a invasão russa da Ucrânia.

“Boicotar a Rússia, impedindo-a de participar em eventos desportivos internacionais, é a única coisa a fazer. É um pouco difícil ver como isso afeta os atletas russos individualmente. Eles deviam ter a possibilidade de continuar com as suas carreiras, não usando a bandeira da Rússia, claro. Mas no caso de atletas que apoiem a guerra, façam a apologia de Vladimir Putin ou usem a letra Z, penso que não deverão ter hipótese de participar em competições internacionais.”

Uma bandeira com o “Z” de apoio à invasão russa da Ucrânia é desfraldada durante um jogo do campeonato sérvio ANDREJ ISAKOVIC / AFP / GETTY IMAGES

A agressão da Rússia à Ucrânia levou países vizinhos a recearem passar por igual pesadelo. A Finlândia, em particular, pôs fim à sua neutralidade histórica e pediu adesão à NATO.

Sparv, que vive atualmente em Praga, a capital da República Checa, de onde é natural a companheira, fez a sua parte e entregou as chaves do seu apartamento, na cidade de Vaasa (na costa ocidental), a uma família ucraniana composta por mãe e dois filhos.

“O pai ficou na Ucrânia, mas a família está bem, se é que é possível dizê-lo desta forma. As crianças gostam de futebol, então levei-as a um clube local, em Vaasa. Já estão a praticar e a fazer novos amigos. Para mim, foi uma forma concreta de ajudar alguém. Senti-me mesmo bem.”

(FOTO PRINCIPAL “Direitos humanos”, lê-se nas ‘t-shirts’ da seleção da Alemanha, num jogo de qualificação para o Mundial do Catar TOBIAS SCHWARZ / GETTY IMAGES)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 4 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Paris Saint-Germain vs. Manchester City. O “dérbi do Golfo” que vai muito além do futebol

Paris Saint-Germain e Manchester City disputam, esta quarta-feira, a primeira mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Os dois clubes são pontas de lança ao serviço de dois países do Médio Oriente empenhados em projetar poder e influência em todo o mundo: Qatar e Emirados Árabes Unidos. A vitória no relvado terá também uma dimensão geopolítica

Ambos sonham conquistar a Liga dos Campeões e os muitos milhões que têm ao seu dispor aproximam-nos dessa possibilidade. Paris Saint-Germain (PSG) e Manchester City medem forças, esta quarta-feira, na primeira mão das meias-finais da prova milionária.

Mais do que uma disputa desportiva entre dois emblemas que querem chegar ao topo do futebol europeu, os jogos desta quarta-feira, em Paris, e de 4 de maio, em Manchester, têm implícito um braço de ferro entre dois países do Médio Oriente — o Qatar (dono do PSG) e os Emirados Árabes Unidos (proprietário do City) — que rivalizam entre si e que, tendo comprado estes dois emblemas, usam-nos como arma de soft power para projetar poder e influência em todo o mundo.

Será uma partida picante a nível político e a nível popular, já que cada clube é sinónimo de uma monarquia. Como tal, muitos tenderão a olhar para este jogo como uma disputa por procuração, mesmo que não estejam assim tão interessados em futebol”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres e autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017).

1880 É fundado o Manchester City Football Club. Foi comprado pelo Abu Dhabi United Group em 2008. Joga no Etihad Stadium e o patrocinador das camisolas é a Etihad Airways, uma das transportadoras aéreas dos Emirados Árabes Unidos

1970 O Paris Saint-Germain foi criado após fusão entre o Paris Football Club e o Stade Saint-Germain. Foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011. Joga no Parque dos Príncipes e tem entre os seus parceiros premium o Turismo do Qatar e a Qatar Airways

Qatar e Emirados são antigos protetorados britânicos que conservaram o gosto pelo futebol mesmo após declararem independência, em 1971. Passados 50 anos, servem-se desse património afetivo e da sua enorme riqueza — a do Qatar vem do gás natural e a dos Emirados, do petróleo — para se afirmarem, patrocinando clubes e comprando outros.

Desde 2008 que o Man City é detido pelo xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dabi, principal dos sete emirados que compõem o país chamado Emirados Árabes Unidos. O Abu Dhabi United Group, empresa privada que comprou o City, é também dono do Bombaim FC, do Melbourne FC e do Cidade de Nova Iorque FC, entre outros clubes por todo o mundo.

Já o PSG foi comprado em 2011, numa altura em que andava arredado dos títulos, mesmo em França. Foi adquirido pelo próprio emir do Qatar, através do Qatar Sports Investments, fundo soberano que é uma espécie de ponta de lança do país no esforço de afirmação internacional. Ao leme do PSG, o Qatar mostrou cedo ao que vinha: em 2012 contratou Zlatan Ibrahimovic, em 2013 Edinson Cavani e David Beckham e em 2017 Kylian Mbappé e Neymar.

“O PSG é enorme no Qatar, por razões óbvias”, diz David B. Roberts. “Embora o futebol inglês seja dominador, regra geral, com as notáveis exceções dos dois clubes espanhóis [Real Madrid e Barcelona] cada vez menos pessoas admitirão apoiar o Man City no Qatar!”

A estratégia do pequeno emirado — que tem uma população de três milhões e área oito vezes menor do que Portugal — terá o seu ponto alto no próximo ano, quando o Qatar acolher o Mundial de futebol, que terminará uma semana antes do Natal.

Seja ou não um bom jogo, o duelo entre PSG e City terá inevitavelmente uma dimensão geopolítica, dada a rivalidade entre Qatar e Emirados e o facto de apoiarem fações contrárias em várias contendas do Médio Oriente. Cinco exemplos:

  1. BLOQUEIO AO QATAR. Os Emirados foram um dos quatro países que a 5 de junho de 2017 impuseram um bloqueio por terra, mar e ar ao Qatar. Durou 43 meses e terminou a 5 de janeiro passado, em vésperas de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos e defender a necessidade de “recalibrar” a relação com a Arábia Saudita (primeiro país que Donald Trump visitou), outro promotor do bloqueio ao Qatar.
  2. RELAÇÃO COM O IRÃO. Apesar de Qatar e Emirados serem países muçulmanos sunitas, o Qatar tem uma relação de proximidade ao Irão (xiita) como nenhum outro país do Golfo. Para tal, não será alheio o facto de ambos partilharem o maior campo de gás do mundo. Já a relação entre Irão e Emirados tem-se pautado pela tensão, sobretudo em torno da disputa de três ilhas: Abu Musa, Grande Tunb e Pequena Tunb.
  3. INTERVENÇÃO NA LÍBIA. Neste longínquo país do Norte de África, em guerra desde o fim do regime de Muammar Kadhafi (2011), os Emirados apoiam as forças leais ao general rebelde Khalifa Haftar enquanto o Qatar alinha ao lado da Turquia em defesa do Governo de Tripoli, internacionalmente reconhecido. A relação com a Turquia — que tem uma base militar no Qatar — intensificou-se na sequência do bloqueio regional ao país.
  4. NORMALIZAÇÃO COM ISRAEL. Os Emirados foram um dos países árabes que, no ano passado, normalizaram a sua relação diplomática com Israel. Por seu lado, o Qatar é dos principais fornecedores de ajuda financeira ao território palestiniano da Faixa de Gaza (controlado pelo grupo islamita Hamas).
  5. APOIO A ISLAMITAS. Como revela a sua posição em relação à questão palestiniana, o Qatar não tem pejo em apoiar grupos islamitas — como o Hamas e, sobretudo, a Irmandade Muçulmana —, enquanto os Emirados se opõem terminantemente e os reprimem internamente.

PSG e City encontram-se na Champions num momento em que ecoa ainda o fracasso da Superliga Europeia, projeto que mereceu dos dois clubes posições contrárias: o City foi um dos fundadores e o PSG recusou participar.

“Para o PSG teve muito mais que ver com o papel mais amplo do sotf power, não tanto o dinheiro. O mesmo pode ser dito sobre o Man City e os seus proprietários”, diz Roberts. “Julgo que a diferença crucial se prende com a pressão de outras equipas inglesas sobre o Man City no sentido de aderir (por comparação à ausência de pressão em França), e com a relação muito próxima entre o PSG e a UEFA, a nível pessoal e institucional.”

Falhanços no desporto e na política

Para a história, o PSG (e o Qatar) ficou bem na fotografia, enquanto o Manchester City (e os Emirados) saiu rotulado como um dos “12 sujos”. “Para os Emirados, [o insucesso da Superliga Europeia] foi outro malogro depois de o seu bloqueio ao Qatar ter falhado por completo. Nenhuma das 13 exigências apresentadas ao Qatar em junho de 2017 foi cumprida, incluindo a exigência ridícula de fechar a Al Jazeera, cadeia noticiosa que estabeleceu novos padrões críticos para reportagens no Médio Oriente”, comenta ao Expresso Danyel Reiche, investigador na área da Política e Desporto, que lidera um projeto de investigação sobre o Campeonato do Mundo de 2022, na Universidade de Georgetown do Qatar.

“O presidente do PSG, Nasser Al-Khelaifi, foi muito esperto em não aderir à Superliga, proposta que ignorou o sentimento de uma vasta maioria de adeptos europeus, que rejeitam a americanização dos desportos europeus e a eliminação da meritocracia, com ligas fechadas sem promoções e despromoções. Creio que o PSG, e também os grandes clubes alemães, serão recompensados pela sua resistência à Superliga, ganhando o apoio de adeptos em todo o mundo. Isso é especialmente bom para o PSG, que era, até agora, sobretudo associado ao sucesso a partir de combustíveis fósseis.”

Para o PSG, a vitória neste embate significará a repetição da época passada, quando atingiu a final de Lisboa, que perdeu para o Bayern de Munique. Já para o City a chegada às meias-finais é feito inédito no palmarés do clube, numa altura em que a sua popularidade já teve melhores dias.

“Muito foi dito sobre os donos do Liverpool, que ignoraram o desejo dos adeptos. Mas para mim o desenvolvimento mais interessante foi o do Manchester City”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor de Desporto e Teoria Social na Universidade de Loughborough (Inglaterra). “No passado, muitos adeptos de outros clubes consideravam o City a sua segunda equipa, porque não era o Manchester United, era o verdadeiro clube de Manchester (o United tem sede em Salford). O City não teve muito êxito em grande parte da sua história e, no entanto, tinha adeptos locais leais. Questiono-me que pensarão os adeptos mais antigos sobre aquilo que o clube se tornou.”

A perspetiva de ganharem por fim a Liga dos Campeões talvez os leve a serem contidos em relação à liderança do clube. Para tal, o City terá de ultrapassar o PSG. Talvez nenhum outro duelo personifique atualmente o poder do dinheiro no futebol europeu.

(IMAGEM PMNEWS NIGERIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

“500 Boeing 777 totalmente carregados”. Em tempo de aviões parados, Qatar aposta na “geopolítica covid”

O Qatar está a aproveitar a pandemia global para se afirmar como um país poderoso e solidário e, ao mesmo tempo, desvalorizar o bloqueio de que é alvo por parte de alguns “irmãos” árabes. O pivô ao serviço desta estratégia é a Qatar Airways

O surto do novo coronavírus paralisou a indústria da aviação em todo o mundo, mas a Qatar Airways anda num corrupio. A companhia aérea do Qatar mantém serviços comerciais regulares para dezenas de países e opera “charters” para repatriar cidadãos estrangeiros encurralados pelo fecho de fronteiras. Paralelamente, tem assegurado o transporte de toneladas de material e ajuda médica para países em desespero.

Só no mês de março trabalhou “com governos e organizações não governamentais de todo o mundo para transportar mais de 50 milhões de quilos de ajuda e suprimentos médicos”, congratulou-se a empresa no Twitter. “Isto equivale a cerca de 500 Boeing 777 totalmente carregados.”

A transportadora do pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico opera sobretudo para a Europa, Ásia e Austrália. Muitas vezes, a taxa de ocupação dos aparelhos fica pela metade, ou menos ainda. Akbar al-Baker, o presidente-executivo da Qatar Airways, já disse que a empresa só tem dinheiro para sustentar as operações por “um período muito curto”. “Certamente iremos pedir apoio ao nosso governo”, alertou, em declarações à agência Reuters.

O que motiva então a Qatar Airways a “torrar” dinheiro numa altura em que a esmagadora maioria das congéneres tem os hangares e pistas cheios de aviões parados?

“A Qatar Airways é muitas vezes considerada um instrumento de ‘soft power’ [a capacidade de influência de um país através da ideologia ou da cultura, e não das armas]. Eu concordo em certa medida. É uma boa maneira de o país se mostrar e, como se costuma dizer, ‘colocar o Qatar no mapa’”, explica ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Mas essa ideia não deve ser levada longe demais. Eu não concordo com o ditado que diz que ‘não existe má publicidade’. Só porque o Qatar é conhecido, isso não significa automaticamente um impulso para o Estado.”

Mas é um facto que, nestes tempos de crise, o Qatar tem marcado pontos na forma como está a contrariar a inércia global forçada. Esta semana, James Cleverly, secretário de Estado do Reino Unido para o Médio Oriente e Norte de África, agradeceu à Qatar Airways por ter ajudado 45 mil britânicos espalhados pelo mundo a regressar a casa. Anteriormente, tinha sido o embaixador da Alemanha no país, Hans-Udo Muzel, a expressar gratidão.

Além de britânicos e alemães, o Qatar já ajudou a repatriar australianos, franceses, suíços, canadianos, norte-americanos, indianos, paquistaneses, filipinos e omanitas, em “charters” organizados pelos respetivos governos.

“Recebemos muitos pedidos de governos de todo o mundo para que a Qatar Airways não páre de voar”, disse Akbar al-Baker, presidente executivo da empresa. “Voaremos enquanto for necessário.”

O protagonismo da Qatar Airways ganha relevância quando dele fazemos uma interpretação geopolítica. Desde junho de 2017 que o Qatar é alvo de um bloqueio regional — económico, político e físico —, liderado pela Arábia Saudita e coadjuvado por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito. Entre as acusações feitas ao Qatar está a sua proximidade ao Irão.

O bloqueio agravou substancialmente o custo de vida no Qatar, mas o reino não dá mostras de cedências, mantendo, por exemplo, a ambição de realizar um Mundial de Futebol inesquecível, em 2022.

“As reservas financeiras do Qatar têm sido a sua principal arma. É o país mais rico à face da Terra em termos ‘per capita’, o que significa que pode comprar a forma de sair dos problemas e pedir emprestado o que necessita”, diz David B. Roberts, autor do livro “Qatar — Securing the Global Ambitions of a City-State” (2017). “O dinheiro não é tudo — a Venezuela deveria ser um Estado rico e a funcionar bem —, mas combinado com liderança sensata quase sempre resulta.”

A emergência resultante deste contexto de pandemia poderia contribuir para diluir a conflitualidade geopolítica no Golfo Pérsico, mas não é o que acontece. A 27 de março, 31 cidadãos do Bahrain, transportados num voo comercial da Qatar Airways desde o Irão (o país da região mais fustigado pela covid-19) ficaram retidos no aeroporto de Doha (capital do Qatar), impedidos de seguir viagem. O Bahrain é um dos pilares do bloqueio e não permite voos diretos com o Qatar.

Perante a nega, o Qatar — que tinha proposto fazer o transporte gratuitamente, em avião privado — ofereceu alojamento num hotel aos cidadãos do Bahrain.

“A interferência do Qatar na questão dos cidadãos retidos visa ofender o Bahrain”, acusou Khalid bin Ahmed al-Khalifa, ministro dos Negócios Estrangeiros do reino desde 2005 e até janeiro passado. “Doha deve parar de usar uma questão humanitária como a pandemia de covid-19 nos seus planos e conspirações contra países e povos.”

A contenda resolveu-se a 29 de março. Segundo a publicação “Bahrain Mirror”, os 31 cidadãos do Bahrain saíram do Qatar a bordo de um “charter” pago pelo seu país, fretado à companhia Iranian Kish, ou seja, do inimigo Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Arábia Saudita e Qatar ‘unidos’ em nome de um perigo maior

Na próxima quinta-feira, na cidade santa de Meca, duas cimeiras árabes irão abordar a tensão no Golfo Pérsico. Por momentos, a Arábia Saudita “esqueceu” o bloqueio que impôs ao Qatar e convidou o Emir a estar presente

A escalada da tensão no Golfo Pérsico, protagonizada por Estados Unidos e Irão, está a aproximar “irmãos árabes” desavindos. No domingo, o Rei da Arábia Saudita convidou o Emir do Qatar a participar em duas cimeiras convocadas com caráter de urgência que terão lugar na próxima quinta-feira, na cidade saudita de Meca.

À mesa do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — organização regional que integra as seis monarquias ribeirinhas àquele curso marítimo — e da Liga Árabe (composta por 22 países), estarão as recentes “agressões e respetivas consequências” na região, noticiou a agência de notícias saudita.

Arábia Saudita e Qatar estão de costas voltadas desde junho de 2017 quando os sauditas (apoiados por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito) impuseram ao Qatar um bloqueio económico e diplomático. A resolução do conflito está dependente da aceitação do Qatar de uma lista de 13 exigências — entre as quais o corte de relações diplomáticas com o Irão — que Doha não parece inclinada a acatar.

Riade “não quer a guerra”

O convite de Riade para o Qatar se fazer representar ao mais alto nível nos encontros de Meca foi entregue em Doha pelo secretário-geral do CCG, Abdullatif bin Rashid Al Zayani, lê-se num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Qatar.

Para a Arábia Saudita, o estender de mão ao pequeno Emirado justifica-se em nome de um perigo maior: a rivalidade com o Irão, com quem o Qatar tem boa relação.

Riade acusa o Irão de estar na origem de recentes ataques com drones a instalações petrolíferas sauditas (reivindicados pelos rebeldes iemenitas huthis, aliados do Irão) bem como de atos de sabotagem a quatro navios comerciais ao largo dos Emirados Árabes Unidos (que ainda não divulgaram as conclusões da investigação aos casos).

Os incidentes levaram a um reforço do dispositivo militar norte-americano na região e a um agravamento da habitual retórica de confrontação entre a República Islâmica e os Estados Unidos. E levaram a Arábia Saudita a tentar deitar água na fervura assumindo que Riade “não quer uma guerra, não a procura e fará tudo para a impedir”, assegurou o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Adel al-Jubeir.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui