O Qatar e o Irão lutam, presentemente, contra situações de asfixia internacional. O primeiro tenta resistir ao embargo decretado por quatro “irmãos” árabes que temem a sua proximidade ao Irão. Este tenta sobreviver à reposição de sanções ordenada por Donald Trump. Poderá o Mundial 2022 — organizado pelo Qatar — ser, para ambos, um aliado no combate a esse isolamento?
O Qatar está a equacionar hospedar algumas seleções que vão disputar o Mundial 2022 noutros países, nomeadamente no vizinho Irão. Em declarações à agência noticiosa francesa AFP, o chefe do comité organizador da competição disse que o pequeno emirado recebeu “muitas propostas de países” interessados em acolher equipas participantes no torneio, mas que a decisão terá de ser tomada “em conjunto com a FIFA”. “Ainda nada foi decidido”, afirmou Hassan Al Thawadi, na segunda-feira, em Paris, à margem do Fórum para a Paz. “O assunto continua a ser discutido.”
Para o Qatar, a necessidade de ter outras opções para acolher as equipas decorre de uma conjuntura de dificuldades logísticas em virtude do embargo decretado a 5 de junho de 2017 por quatro países árabes — Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito —, que acusam o rico emirado de apoiar grupos islamitas radicais e de estar cada vez mais próximo do Irão, o grande rival geopolítico dos sauditas.
Usar infraestruturas iranianas seria algo também do interesse da República Islâmica, a braços com uma asfixia económica e financeira crescente, em virtude da reintrodução, por parte dos Estados Unidos, de sanções que tinham sido suspensas após a assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, em 2016. Na semana passada, foi reposto um pacote de sanções ao sector petrolífero, que ferem também empresas estrangeiras e países que continuem a fazer negócios com Teerão.
Em abril passado, o ministro iraniano dos Desportos, Massoud Soltanifar, disse que o Qatar poderia usar as dezenas de hotéis e de instalações desportivas existentes na ilha iraniana de Kish, a sul. “O Irão está pronto para fornecer ao Qatar qualquer assistência para ajudar o país a organizar melhor o torneio, que é visto por muitos milhões de pessoas”, disse Soltanifar, após um encontro com o homólogo do Qatar, à margem de uma reunião ministerial da Organização para a Cooperação Islâmica, em Baku, capital do Azerbaijão.
Se na Rússia foi bom, no Qatar será melhor
A competição está a quatro anos de distância — com o pontapé de saída previsto para 21 de novembro de 2022 —, mas o embargo que visa o Qatar não dá sinais de abrandar. “Espero que as nações que estão a realizar o bloqueio vejam o valor deste grande torneio e permitam que os seus povos beneficiem dele”, apelou Hassan Al Thawadi.
O responsável confirmou que o Mundial está a ser organizado mediante a fórmula de 32 equipas, apesar da FIFA, o organismo máximo que gere o futebol em todo o mundo, já ter aprovado um modelo de 48 equipas a partir do Mundial de 2026. “Há um estudo de viabilidade a pensar numa competição com 48 equipas. Uma decisão será tomada pela FIFA e por nós enquanto nação anfitriã”, acrescentou Al Thawadi.
Arranjar alojamento para mais 16 seleções complicaria enormemente a tarefa do Qatar. Durante uma recente visita às obras nos estádios, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, disse que o Mundial de 2022 a 48 seria “um desafio difícil”. Com a mesma certeza, afirmou: “O Mundial da Rússia foi o melhor de sempre, mas o Mundial de 2022 no Qatar — estou certo — será ainda melhor”.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de novembro de 2018. Pode ser consultado aqui
Refém do bloqueio ao Qatar, decretado, há meio ano, por três dos seus membros, o Conselho de Cooperação do Golfo realizou a sua cimeira anual esta terça-feira. Sem brilho e com um anúncio preocupante: Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estabeleceram uma parceria em separado
Não há como esconder — ou remendar — a crise no Golfo Pérsico. Reunido esta terça-feira, no Kuwait, para a sua cimeira anual, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) exibiu brechas que fazem temer pelo seu futuro.
Previsto para durar dois dias, o encontro entre seis países ribeirinhos ao Golfo esgotou a agenda — não tornada pública — em apenas um, “com todos os delegados a deixarem o Kuwait após uma sessão à porta fechada”, reporta a Al-Jazeera.
Fundado em 1981, o CCG vive a sua pior crise de sempre. Há precisamente meio ano, a 5 de junho, três dos seus membros cortaram relações diplomáticas e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar contra um quarto membro. De um lado, Arábia Saudita, Bahrain e Emirados Árabes Unidos (EAU), a que se junto o Egito (todos Estados árabes sunitas), do outro o Qatar, acusado de apoiar o terrorismo e de ter uma relação próxima com o arqui-inimigo Irão (país persa xiita).
Esta divergência agravou-se nesta cimeira, no Kuwait, país que tem tentado servir de mediador nesta crise. Segundo um comunicado emitido pelo ministério dos Negócios Estrangeiros dos Emirados Árabes Unidos, este país juntamente com a Arábia Saudita celebraram uma nova parceria militar e comercial, à margem da organização regional.
A nova aliança entre Riade e Abu Dabi visa “a cooperação e coordenação” entre os dois países “em todos os campos a nível militar, político, económico, comercial e cultural”. Teme-se, porém, que contribua para esvaziar a organização e intensificar, ainda mais, os antagonismos nesta região estratégica.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui
Alvo de um bloqueio político, o Qatar contra-ataca com o futebolista mais caro de sempre
O Qatar é um caso de persistência nas manchetes internacionais. Em inícios de junho, o pequeno emirado ribeirinho ao Golfo Pérsico foi notícia dias a fio após ser alvo de um bloqueio diplomático e comercial — que ainda dura — decretado por quatro ‘irmãos’ árabes (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito). Há poucas semanas, arrebatou noticiários nos quatro cantos do mundo ao estar por detrás da contratação mais cara da história do futebol — a do brasileiro Neymar, comprado ao Barcelona pelo Paris Saint-Germain (PSG), propriedade de um fundo soberano do Qatar, por 220 milhões de euros.
“Nem tudo o que está relacionado com o Qatar está relacionado com política. Mas penso que, neste caso, é justo estabelecermos uma ligação dessa natureza”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Neste contexto, em que o Qatar é alvo de um bloqueio pouco usual e bastante difícil e a imprensa dos países que se opõem ao Qatar tem promovido uma imagem muito negativa do emirado, dizendo, por exemplo, que apoia terroristas, é perfeitamente plausível que os qataris estivessem interessados em promover esta transferência, para beneficiar de dias, semanas a fio de manchetes demonstrativas de uma mentalidade muito mais positiva.”
O PSG está nas mãos do Qatar desde 2011, quando a Qatar Sports Investments adquiriu 70% do clube francês. Nasser Al-Khelaifi, membro da família real do Qatar, subiu à presidência, contratou o sueco Zlatan Ibrahimovic ao Milan e logo o seu reinado começou a dar frutos: o PSG foi tetracampeão da Ligue 1 entre 2012 e 2016. O ‘penta’ foi-lhe roubado na época passada pelo Mónaco, treinado por Leonardo Jardim.
“O PSG é apenas uma peça de uma campanha mais abrangente de soft power”, diz o professor Roberts, referindo-se à capacidade de influência de um Estado através da ideologia ou da cultura (e não das armas). “Quanto dinheiro é gasto, todos os anos, pela Coca-Cola e pela Pepsi em publicidade em todo o lado? Às vezes não percebemos porque patrocinam determinado torneio de futebol ou até um jogador e o que ganham com isso. Mas toda a grande empresa no mundo gasta milhões em publicidade por alguma razão. É isso que o Qatar está a fazer também.”
Do boxeur Ali ao FIFA 2022
Esta estratégia de afirmação fora de portas através do desporto é, aliás, tão antiga quanto o próprio país. Em 1971, ano em que se tornou independente do Reino Unido, o Qatar recebeu o mediático pugilista Muhammad Ali, que realizou um combate de exibição ao ar livre no Estádio de Doha. Desde então, o país já acolheu quase de tudo, desde torneios de topo de ténis e golfe a competições de desportos motorizados e meetings de atletismo. Em 2006, a capital, Doha, recebeu os Jogos Asiáticos, uma versão regional dos Jogos Olímpicos.
Mas é o futebol, o desporto mais popular no país, que tem justificado grandes eventos. Em 1988, o Qatar organizou a Taça Asiática, o correspondente regional do Campeonato Europeu, que repetiu em 2011. Em 1995, acolheu o Campeonato do Mundo de Sub-20 (em que Portugal foi terceiro). Em 2014, o Estádio Jassim Bin Hamad, em Doha, foi palco da… Supertaça italiana, entre a Juventus e o Nápoles. Em 2022 será colocada a cereja no topo do bolo, com a realização do Mundial da FIFA.
De permeio, por intermédio da Qatar Sports Investments — a mesma que comprou o PSG —, passou a patrocinar o FC Barcelona, um dos clubes mais mediáticos do mundo, primeiro através da Qatar Foundation (2011-2013) e depois da Qatar Airways (2013-2017). Curiosamente, desde 2013 que o patrocinador principal do grande rival do Barça, o Real Madrid, é a companhia aérea Emirates, dos Emirados Árabes Unidos, um dos protagonistas do bloqueio em curso ao Qatar.
Gastar quantias avultadas no desporto não é, pois, algo de novo para o emirado. “O Qatar tem muito dinheiro. É o país mais rico do mundo em termos per capita”, diz David B. Roberts, recordando que o país tem pouco petróleo mas partilha com o Irão o maior campo de gás do mundo. “Um Estado aplica aquilo que tem. O que é que a Coreia do Norte tem? Tem ambição nuclear e armas de longo alcance. O Qatar tem essencialmente instrumentos financeiros, e está a aplica-los.”
Muito dinheiro para gastar
Obrigado a acatar 13 exigências para ver o bloqueio por terra, mar e ar levantado — entre as quais o corte de relações com o Irão (“O Qatar não pode ter uma má relação com o Irão. Têm uma relação pragmática”, defende Roberts) —, o negócio Neymar é uma jogada de contra-ataque. “O Qatar é muito resiliente, tem aliados internacionais importantes e muito dinheiro para gastar”, diz o autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017). “Mas esta crise vai-lhe sair extremamente cara, porque vai ter de reformular a origem da grande maioria das importações. Sim, podem vir do Irão ou, provavelmente, da Turquia, isso já está a acontecer, mas vai-lhe sair muito caro. É um preço que o Qatar está disposto a pagar. Eles dizem: ‘A soberania não tem preço. Para fazermos o que queremos, temos de pagar por isso.’”
No domingo passado, a Qatar Ports Management Co. anunciou a abertura de uma nova rota de navegação entre o seu porto de Hamad e o porto paquistanês de Karachi, visando contornar dificuldades impostas pelo bloqueio. Para David B. Roberts, o desfecho desta crise demorará anos, não meses.
Até lá, em campo, Neymar provará (ou não) se a fortuna que custou teve retorno. Para já, o Qatar não podia estar mais satisfeito. O brasileiro estreou-se pelo PSG no passado domingo, à segunda jornada da Ligue 1, no campo do Guingamp. Marcou um golo, participou nos outros com que o PSG venceu e foi considerado “o homem do jogo”. No final, afirmou: “As pessoas pensam que deixar o Barça é morrer, mas é o contrário, estou mais vivo do que nunca.” E com os bolsos incomparavelmente mais cheios também.
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2017 e republicado no “Expresso Online” no mesmo dia. Pode ser consultado aqui
Um embargo decretado por quatro “irmãos árabes” empurra o Qatar para os braços do inimigo Irão
Arábia Saudita acusa o Qatar de apoiar grupos extremistas. A Arábia Saudita acusa o Irão de proteger o Qatar. O Irão é atacado pelo Daesh, o mais cruel dos extremistas. Bem vindos ao Médio Oriente!
Esta semana, em apenas três dias, uma crise diplomática no seio do mundo sunita — que isolou o Qatar — e um duplo atentado na capital do Irão — o gigante xiita — expuseram toda a complexidade geopolítica do Médio Oriente que transcende a rivalidade sectária sunitas-xiitas no seio do Islão. “Não vejo uma relação direta entre os ataques terroristas no Irão e a crise sobre o Qatar. Mas as políticas externas geopoliticamente analfabetas da Administração Trump são um factor importante na desestabilização da política mundial, do Golfo Pérsico à Coreia do Norte”, disse ao “Expresso” Arshin Adib-Moghaddam, professor de Pensamento Global e Filosofias Comparadas na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
“Este Presidente colocou-se no lado errado da história, e a escolha errada de aliados e parceiros vai continuar a inibir e a limitar a posição dos EUA em todo o mundo. Sob esta liderança, o país assemelha-se a uma superpotência decadente.”
Quarta-feira, um duplo atentado em Teerão contra o Parlamento e o mausoléu do “ayatollah” Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica, provocou 13 mortos. O Daesh reivindicou e Teerão confirmou que cinco detidos, todos iranianos, estiveram em Mossul e Raqqa, bastiões do Daesh no Iraque e Síria. Fica, porém, por perceber a lógica do violento ataque desferido pelo rei da Arábia Saudita quando da recente visita de Donald Trump ao país: “O regime iraniano tem sido o ponta de lança do terrorismo mundial”, disse. O ataque desta semana mostra que o Irão é alvo da maior das ameaças.
Fora da órbita saudita
Dois dias antes, quatro países árabes sunitas cortaram relações com o igualmente sunita Qatar e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito acusam Doha de apoiar “grupos extremistas” e exigem mudanças na sua política externa. Em causa está o apoio do Qatar a grupos como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, que, acusam, mina o regime egípcio e a Autoridade Palestiniana.
Em causa está também a proximidade do Qatar ao vizinho da frente, o Irão, justificada pela necessidade do pequeno país não ficar na dependência do gigante saudita. “Irão e Qatar têm tido um relacionamento funcional. Com o campo de exploração de gás South Pars, os dois países partilham um dos maiores campos do mundo. A liderança qatariana tem provado ser suficientemente prudente para abster-se de antagonizar a liderança iraniana”, explica Arshin Adib-Moghaddam. “Por sua vez, o Irão do Presidente Hassan Rouhani é inflexível no desenvolvimento de uma relação próxima com o Qatar que o atraia para fora da órbita da Arábia Saudita.”
Mas se o Qatar é punido pelos “irmãos árabes” pela sua abertura ao Irão (persa), o isolamento a que foi votado coloca-o numa dependência total do… Irão. Para a aviação qatariana, o espaço aéreo iraniano é a única rota de saída possível. Igualmente, em caso de rutura alimentar — Arábia Saudita e Emirados eram os principais fornecedores —, Teerão já fez saber que está disponível para facilitar o trânsito de água e alimentos através dos seus portos.
Quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar admitiu nunca ter sentido tanta hostilidade, e foi categórico: “Não estamos preparados para entregar, nem nunca entregaremos, a independência da nossa política externa”.
Al-Jazeera e futebol
Independente desde 1971, o Qatar apostou numa agenda internacional ambiciosa como fórmula de sobrevivência. Projetos como a Al-Jazeera — “um órgão de informação hostil”, diz Riade —, a realização do Mundial de Futebol de 2022 ou o patrocínio ao mediático Barcelona (pela Qatar Foundation e depois pela Qatar Airways) são armas dessa afirmação.
O reino procura estar de bem “com deus e o diabo”. Alberga a maior base aérea dos EUA na região (Al-Udeid) e desenvolve “amizades perigosas” com inimigos dos norte-americanos. Permite a construção de igrejas no território e partilha com a Arábia Saudita a interpretação wahabita do Islão.
Quarta-feira, a Turquia (que como o Irão não é árabe) aprovou o envio de um contingente para uma base turca em construção no Qatar. O Presidente Recep Erdogan disse que “a movimentação visa contribuir para a paz regional e mundial”.
25 ANOS DE DISPUTAS
2017 — A 5 de junho, Arábia Saudita, Bahrain, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Egito cortam relações diplomáticas com o Qatar. Riade aceita abrir a fronteira a qatarianos a caminho de Meca e Medina
2014 — Arábia Saudita, EAU e Bahrain suspendem contactos com o Qatar devido ao apoio de Doha à Irmandade Muçulmana. A relação normaliza oito meses depois: os três embaixadores regressam à capital qatariana
2002 — Riade retira o embaixador de Doha após comentários de dissidentes sauditas na Al-Jazeera. A relação descongela em 2008 com a visita a Doha do príncipe herdeiro saudita
2000 — O então príncipe herdeiro saudita, Abdullah bin Abdul Aziz (rei entre 2005 e 2015), boicota uma cimeira da Organização da Conferência Islâmica, em Doha, em protesto contra as relações comerciais entre Qatar e Israel
1992 — Disputa fronteiriça entre Qatar e Arábia Saudita faz três mortos. Em 1996, os dois países iniciam um processo de delimitação de fronteiras, finalizado três anos depois
Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de junho de 2017 e republicado no “Expresso Online” a 11 de junho de 2017. Pode ser consultado aqui
Mais pequeno do que o Alentejo, o Qatar quer ter influência mundial. Tem por armas gás, petróleo, a Al-Jazira e a ambição do seu líder
Riyadh Hijab tornou-se, na segunda-feira, o mais alto oficial do regime sírio a passar-se para a oposição. Era primeiro-ministro há dois meses e justificou a deserção acusando Bashar al-Assad de genocídio. Hijab voou para a Jordânia, mas, segundo o seu porta-voz, o destino final é o Qatar. Antes dele, também os embaixadores sírios no Iraque e Emirados Árabes Unidos tinham assumido a rutura com Damasco e refugiado em Doha.
Mais pequeno do que o Alentejo e com uma população nativa inferior à da cidade do Porto — dos 1,7 milhões de habitantes, apenas 300 mil são qatarenses —, o Qatar é dos mais fortes aliados da oposição síria, financiando vários grupos em combate. Em julho de 2011, foi o primeiro país a encerrar a embaixada em Damasco. Em janeiro, o emir Al–Thani foi pioneiro ao defender uma intervenção militar estrangeira na Síria.
Desde a revolução na Tunísia que o Qatar tem vindo a surfar a onda da Primavera Árabe. A sua principal arma é… o livro de cheques. Na Tunísia, garantiu ajudas e investimentos às autoridades emergentes e pagou tratamentos médicos a revolucionários feridos. No Egito, foi um importante financiador da Irmandade Muçulmana e do An-Nur (salafita). “Só esperamos boas coisas do Qatar. É um verdadeiro parceiro na Primavera Árabe”, disse Rashid al-Ghannouchi, líder espiritual do Ennahda, o partido islamita que subiu ao poder após a revolução tunisina.
Na Líbia, o envolvimento de Doha foi bem menos discreto. O Qatar foi a primeira capital a reconhecer o Conselho Nacional de Transição e tornou-se o primeiro país árabe a participar — com caças Mirage — na campanha aérea liderada pela NATO contra Muammar Kadhafi. Forças qatarenses participaram também no assalto final a Bab al-Aziziya, o palácio de Kadhafi em Tripoli.
O apoio incondicional do Qatar às revoluções árabes foi posto em causa no Bahrain, onde Doha deixou vir ao de cima preocupações geoestratégicas. Quando eclodiram os protestos na Praça da Pérola — maioritariamente xiitas — contra a monarquia sunita, os qatarenses não hesitaram em escolher o lado do poder. Segundo a agência noticiosa do Qatar, um pequeno número de oficiais do país entrou no Bahrain paralelamente aos tanques sauditas, para ajudar na contenção dos protestos.
Tempestade de areia sobre o território do Qatar EARTH OBSERVATORY
Entalado entre dois colossos rivais no Médio Oriente — a árabe e sunita Arábia Saudita e o persa e xiita Irão —, o Qatar parece ter nos EUA o seu seguro de vida. Desde 2002, o país acolhe o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (CENTCOM), crucial para a guerra no Afeganistão e, antes, no Iraque.
De bem com todos
Nos corredores diplomáticos ocidentais, o Qatar é, porém, alvo de desconfiança. Diz-se que à segunda-feira o emir é amigo e à terça financia terroristas. No poder desde 1995, após ter liderado um golpe contra o pai, Al-Thani, de 60 anos, ambiciona transformar o país numa ponte entre mundos. Em janeiro, no “60 Minutes” (CBS), disse: “Eles (EUA) não gostam da nossa relação com o Irão, Hamas ou Hezbollah. Talvez o Irão ou o Hamas também não gostem dos nossos contactos com Israel. Mas não é uma boa política para um país pequeno estar de bem com todos?”
Essa estratégia transformou Doha numa marca internacional. Meca de importantes reuniões — as negociações na OMC são as Doha Rounds —, é também porto de abrigo de personas non gratas, sejam familiares de Bin Laden ou opositores aos somalis da milícia Al-Shabaab. Khaled Meshaal, líder do Hamas, tem casa em Doha. E nos últimos anos, a capital recebeu visitas tão díspares quanto o israelita Shimon Peres, o libanês Hassan Nasrallah (Hezbollah) ou o iraquiano Muqtada al-Sadr (milícia radical Exército Al-Mahdi).
No início de 2012, foi notícia a possibilidade de os talibãs abrirem em Doha a sua primeira representação fora do Afeganistão. “Quando isso acontecer”, escreveu a revista alemã “Der Spiegel”, “generais americanos da base Al-Udeid poderão cruzar-se com estrategos do Hamas e talibãs de túnica preta no Clube Diplomático de Doha — numa atmosfera a lembrar o filme ‘Casablanca’.”
AL-JAZIRA É ESPADA DE DOIS GUMES
Entrevista a Gabriel G. Tabarani, autor do blogue ‘Middle East Spectator’
Qual é a agenda do Qatar para a Primavera Árabe?
Desde a revolução iraniana xiita (1979), os Estados árabes do Golfo — hoje coligados no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — e outros países árabes sunitas esforçam-se por criar um equilíbrio político e militar no Médio Oriente e Norte de África para fazer frente ao expansionismo xiita do Irão. Nesse pressuposto, o CCG apoiou Saddam Hussein na guerra contra o Irão (1980-1988). E é nesse contexto que devemos entender a agenda do Qatar. Por outro lado, uma vez que os principais Estados árabes sunitas (Arábia Saudita, Egito, Iraque, Argélia, Marrocos) estavam ocupados com a situação interna, foi criado um vácuo na política externa árabe. Um Qatar confiante, apoiado pela presença militar americana no seu território e uma abundância de dinheiro, além das ambições de liderança, preencheu esse vazio. Mas se os objetivos gerais são conhecidos, os imediatos são vagos, embora persista a imagem de oportunismo. O Qatar está a operar uma mudança na política árabe que o Ocidente terá de compreender: um Médio Oriente dominado por partidos islamitas sunitas, levados ao poder numa região mais democrática e cada vez mais conservadora, tumultuosa, antixiita e anti-Irão.
Está também empenhado no diálogo entre fações palestinianas e entre os talibãs e os EUA…
O Qatar ambiciona desempenhar um papel de liderança na diplomacia internacional, especialmente no que diz respeito aos problemas do chamado Grande Médio Oriente. A mudança importante que ajudou o Qatar a levar a cabo o seu novo papel é a adoção do “modelo turco”, que, no âmbito da política internacional, significa abrir horizontes nas relações com o Ocidente e com a própria região.
O Qatar substituiu a Arábia Saudita na promoção do waabismo na região e na Europa?
O waabismo é a doutrina oficial, mas o Qatar não é tão puritano quanto a Arábia Saudita. Vemo-lo no estilo de vida relativamente liberal da população. Não creio que esteja a espalhar a fação waabi como os sauditas fizeram. Há provas de que o Qatar apoia associações muçulmanas em todo o mundo, incluindo grupos que não estão ligados ao waabismo. Após a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah, ajudou os xiitas no Líbano.
Há razões para o regime temer uma rebelião interna?
À superfície, as causas das revoltas árabes parecem políticas, mas são económicas. No Qatar, os cidadãos vivem confortavelmente. O rendimento per capita é o mais alto do mundo, rondando os 138 mil dólares por ano. Além disso, o Governo tomou medidas políticas. O Qatar está a evoluir de uma sociedade tradicional para outra baseada em instituições mais formais e democráticas. A Constituição consagra o poder hereditário da família Al-Thani, mas estabelece um órgão legislativo eleito e responsabiliza o Governo perante o Parlamento. O povo é representado pelo Conselho Consultivo, nomeado, que assiste o emir. As primeiras eleições para este órgão serão em 2013.
A região do Golfo é o calcanhar de Aquiles da Al-Jazira?
A Al-Jazira é uma ferramenta diplomática que Doha usa como lhe convém. Já criou vários problemas diplomáticos ao Qatar, especialmente com os governos da Arábia Saudita e do Bahrain. É melhor considerarmos a Al-Jazira como uma espada de dois gumes que pode ser usada para projetar influência, mas que deve ser responsabilizada à semelhança de qualquer agente diplomático qatarense.
RECURSOS: GÁS, PETRÓLEO E… AL-JAZIRA
Como qualquer país banhado pelo Golfo Pérsico, o Qatar cresceu sobre abundantes jazidas de gás e petróleo. Em 2011, o país exportou, em média, 588 mil barris de petróleo por dia e 113,7 mil milhões de metros cúbicos de gás natural. Porém, na sua estratégia de afirmação mundial, uma das principais armas é a Al-Jazira (que em árabe significa “a ilha”, uma analogia à Península Arábica). Propriedade da família real, foi fundada em 1996 — um ano após o emir subir ao poder — e rapidamente se tornou a maior televisão do mundo árabe. Após o 11 de Setembro, era a única estação a cobrir a guerra no Afeganistão em direto com escritório montado em Cabul. A Al-Jazira seria também o canal privilegiado pelo líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, para divulgar as suas mensagens ao mundo. O serviço em língua inglesa só arrancaria em 2006, mas já a Al-Jazira era um ator incómodo no mundo árabe. Em visita à sua sede, o Presidente egípcio Hosni Mubarak afirmou: “Tantos problemas por causa desta caixa de fósforos”. Segundo os documentos revelados pela Wikileaks, o Presidente dos EUA George W. Bush, em 2004, com a guerra do Iraque em curso, chegou a equacionar o bombardeamento da sede da Al-Jazira, em Doha. Tal não chegou a acontecer, mas os escritórios da estação em Cabul e em Bagdade não escaparam ao fogo de guerra. A Primavera Árabe voltou a fazer da Al-Jazira notícia. As suas câmaras foram lestas a chegar a Tunis, ao Cairo ou a Tripoli e os revolucionários agradeceram-lhe. Mas tardou a reportar os protestos em Manama (Bahrain) e foi, por isso, acusada de ser tendenciosa.
2022
Neste ano, o Qatar organiza o Mundial de Futebol. Sepp Blatter, presidente da FIFA, disse: “O mundo árabe merece organizar um Campeonato do Mundo”. Mas a escolha foi envolta em suspeitas de corrupção. Indiferente, o Governo de Doha prevê gastar 10% do PIB com infraestruturas. Ainda no capítulo desportivo, o Qatar fez história ao permitir, pela primeira vez, a participação de mulheres nos Jogos Olímpicos de Londres: quatro, no tiro, atletismo, natação e ténis de mesa. Ironicamente, o país tem na sheik Mozah — que rivaliza em elegância com qualquer primeira-dama — a sua grande relações públicas.
Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de agosto de 2012
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.