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Raif Badawi já saiu da prisão, mas ainda não é um homem livre

Foi notícia em todo o mundo após ser condenado a 1000 vergastadas em público pela justiça saudita. Cumpridos dez anos de prisão, o bloguista Raif Badawi foi libertado, mas enfrenta a proibição de viajar durante mais dez anos. Iss impede-o de se juntar à família, exilada no Canadá. “Se Portugal puder ajudar…”, apela um membro da equipa de defesa do intelectual saudita

Há sete anos por esta altura, Raif Badawi era o saudita mais famoso do mundo. Um vídeo filmado às escondidas no momento em que sofria 50 vergastadas, numa praça junto a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, foi descarregado na Internet e correu mundo. A exposição de práticas medievais no reino saudita, em pleno no século XXI, gerou indignação mundial.

Badawi, nascido em 1984, pagara caro o ‘atrevimento’ de escrever sobre liberdade religiosa, democracia e direitos humanos no seu blogue “Liberais Sauditas Livres”. Detido e acusado de “insulto ao Islão”, em 2012, foi condenado a 10 anos de prisão, 1000 chicotadas em público, 10 anos de inibição de viajar (após ser libertado) e uma multa no valor de um milhão de riais sauditas (hoje sensivelmente 266 mil euros).

O intelectual acabaria por sofrer apenas essa primeira leva de 50 açoites — a segunda foi adiada oito vezes e nunca concretizada. O próprio castigo por flagelação acabaria por ser abolido no reino, no âmbito das reformas promovidas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, em 2020.

Apesar dos pedidos de clemência feitos pela família e dos inúmeros apelos à libertação que partiram de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, de governos e até das Nações Unidas, Raif cumpriu a pena de prisão na sua totalidade.

Dois obstáculos pela frente

O ativista foi libertado a 11 de março passado, onze dias além do tempo previsto (devia ter saído a 28 de fevereiro). Saiu da cadeia, mas ainda não é um homem livre. O seu caso está transformado numa prova de obstáculos e, apesar da pena de prisão cumprida ele não se safa do pagamento da multa nem da inibição de viajar durante mais dez anos, o que o impede de se juntar à família, exilada no Canadá.

A notícia da libertação de Raif chegou à família pela voz do próprio. “Foi o meu pai quem telefonou à minha mãe após sair em liberdade. Não há palavras para descrever quão felizes estamos”, disse ao Expresso um dos três filhos do casal, Terad Badawi, de 17 anos.

Terad, que gere a conta oficial do pai na rede social Twitter, vive com a mãe e duas irmãs (Najwa, de 18 anos, e Miryam, de 14) na cidade de Sherbrooke, no Quebeque. Foi no Canadá que obtiveram asilo político, em 2013, já com Raif a contas com a justiça saudita. E é desse país que lideram uma campanha internacional para que o caso não caia no esquecimento nem saia da agenda política.

“Há discussões em curso para se tentar fazer cair a parte da pena referente ao dinheiro e à proibição de viajar, dado que, segundo a lei saudita, ele já cumpriu o dobro da pena que deveria cumprir”, explica ao Expresso Évelyne Abitbol, membro da equipa de defesa e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade.

Numa carta enviada ao príncipe herdeiro saudita, a 8 de março passado, a que o Expresso teve acesso, um representante legal de Badawi, Irwin Cotler, antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá, contesta a situação do agora ex-prisioneiro, argumentando que foi condenado ao abrigo da Lei contra o Cibercrime, que prevê penas máximas de cinco anos (enquanto ele cumpriu 10). Alega também que, ao abrigo do direito internacional, a flagelação é um tipo de punição equivalente à tortura.

Angariação de fundos

“O senhor Badawi foi condenado por fundar um site que visa o diálogo pacífico e aberto. Não representa qualquer preocupação ao nível da segurança. O seu único desejo é reunir-se com a sua família a mais de 10 mil quilómetros de distância, em Sherbrooke, Quebeque, Canadá, para que possa viver os seus dias como marido e pai dedicado”, escreve o jurista.

Paralelamente a esta diligência, decorre na plataforma “GoFundMe” uma campanha de angariação de fundos, lançada pela Fundação Giordano Bruno (Alemanha), com o intuito de arrecadar a pequena fortuna exigida pela justiça saudita.

Desde o início, este caso mobilizou os corredores diplomáticos de países e organizações. Em 2012, conhecida a detenção do bloguista, as Nações Unidas apelaram à sua imediata libertação. Em 2015, a mesma ONU emitiu posição considerando a detenção do saudita ilegal e uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nesse ano, a União Europeia, através do Parlamento Europeu, atribuiu a Raif Badawi o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento. Com o saudita detido em Dhahban Central, prisão de alta segurança em Jeddah, foi a mulher, Ensaf, quem o representou na cerimónia, em Estrasburgo.

O anfitrião Trudeau

Desde a concessão de exílio à família Badawi que este caso tem estado na linha da frente da política canadiana. A 27 de janeiro de 2021, a câmara baixa do Parlamento aprovou, por unanimidade, uma moção (não vinculativa) exigindo a atribuição da cidadania canadiana a Raif Badawi.

O primeiro-ministro Justin Trudeau, que várias vezes se encontrou com a família de Raif, não falhou o momento da libertação do intelectual saudita. “Estou aliviado por Raif Badawi ter sido libertado por fim. Os meus pensamentos estão com a sua família e amigos, que o defendem incansavelmente há quase uma década. Os nossos funcionários estão a trabalhar para esclarecer as condições da sua libertação”, congratulou-se, no Twitter, a 12 de março passado.

Também sobre Trudeau que recai a maior pressão, seja para que o Canadá conceda cidadania a Raif, seja para que interceda junto de Riade para viabilizar a reunião familiar. “O primeiro-ministro do Canadá sempre disse que quando Raif saísse da prisão, iria ajudar”, diz Évelyne Abitbol. “Raif já saiu…”

Mais do que nunca, a defesa deposita na arte da diplomacia a esperança de reversão de partes da sentença. “Americanos, União Europeia, canadianos pediram ao rei Salman que conceda um perdão”, conclui. “Qualquer governo ocidental que possa negociar [com a Arábia Saudita] e consiga dar um salvo-conduto é bem-vindo. Se a Espanha puder… ou Portugal…”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

Mulheres contra a (in)justiça saudita

Raif Badawi foi condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas. Três mulheres em três países defendem o bloguista dia e noite. O Expresso falou com elas 

Uma vive no Canadá, outra na Arábia Saudita, a terceira na Suíça. A partir de três continentes, estas mulheres movem mundos para libertar Raif Badawi, o bloguista saudita de 31 anos condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas, em séries de 50 durante 20 sextas-feiras. O Expresso falou com elas — esposa, irmã e porta-voz de Raif — sobre o caso que as mobiliza, revelador dos limites à liberdade de expressão no reino saudita.

Após as primeiras 50 vergastadas, desferidas a 9 de janeiro, numa praça de Jeddah, não mais Raif voltou a ser punido. Oficialmente, o seu corpo ainda não recuperou das feridas provocadas pelo primeiro castigo. A sua porta-voz faz outra leitura: “Creio que isso decorre dos protestos internacionais que se seguiram ao anúncio das chicotadas”, diz Elham Manea, 48 anos, que vive em Berna.

“Um jovem intelectual foi chicoteado por expressar uma opinião. As ações de cidadãos em todo o mundo, da Amnistia Internacional bem como os comunicados de líderes mundiais pararam a continuação do castigo. Esperemos que o Governo saudita reconheça que Raif Badawi foi alvo de uma caça às bruxas por parte das autoridades religiosas, que criticara. E que o libertem.”

“A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações”, ELHAM MANEA, porta-voz (foto do meio)

Quando fazer ‘like’ é crime

O sucessivo adiamento das vergastadas é uma boa nova relativa uma vez que, entretanto, um novo processo contra Raif começou a ganhar forma na justiça: um julgamento por apostasia (renúncia ou abandono de uma crença religiosa) que poderá resultar na condenação à morte por decapitação.

“O tribunal é controlado por conservadores que estão zangados porque as chicotadas pararam”, comenta a ativista, de nacionalidade suíça e iemenita. “Voltar a julgar Raif é uma forma de dizerem que são importantes. A bola está agora do lado do Governo, que tem de mostrar quem manda. Um novo julgamento por apostasia será um embaraço” para Riade.

Entre as provas que incriminam Raif Badawi está um ‘like’ que fez numa página do Facebook sobre árabes cristãos.

Tertúlias na sala de estar

Samar Badawi é irmã de Raif e sofre duplamente — pelo irmão e pelo marido, também ele atrás das grades. “A minha família tem sido um alvo da justiça. Não por razões pessoais, mas devido ao exercício da liberdade de opinião e de expressão e por desenvolver ações em defesa dos direitos humanos”, diz Samar, 34 anos. “Há muitas famílias com vários membros presos.”

O marido, Walid Abu al-Khair, 35 anos, acérrimo defensor de uma monarquia constitucional (a dos Saud é absoluta), era advogado de Raif Badawi. É também um conhecido ativista. Quando as autoridades mandaram fechar o Bridges Cafe, em Jeddah, ponto de encontro de jovens que se envolviam em discussões sobre política, religião e direitos humanos, abriu a sala de estar de sua casa — que batizou de “smud” (“resistência”, em árabe) — às tertúlias. Em 2014, foi condenado a 15 anos de prisão por “minar o regime”, “incitar a opinião pública” e “insultar o sistema judicial”.

“As atividades em defesa dos direitos humanos na Arábia Saudita suscitam a ira do Governo”, SAMAR BADAWI, irmã (foto da direita)

A própria Samar foi presa em 2010 por desobediência ao pai, de quem fugira acusando-o de maus-tratos e de não lhe dar permissão para casar. O seu advogado foi Walid, o futuro marido. Samar não se limitou, porém, a defender-se e requereu, em tribunal, a mudança de tutor — na Arábia Saudita, todas as mulheres vivem sob a tutela de um homem. Quando saiu da prisão, o seu guardião passou a ser um tio paterno.

Em 2011, voltou a desafiar as autoridades, participando ativamente na campanha pelo direito das sauditas a conduzirem. Em 2012, recebeu de Hillary Clinton o Prémio Internacional Mulheres de Coragem, atribuído anualmente pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Walid foi julgado ao abrigo de legislação antiterrorismo. “As ações em defesa dos direitos humanos suscitam a ira do Governo, que as criminaliza com leis antiterrorismo e de combate ao cibercrime. Prender durante muito tempo silencia os ativistas e obriga-os a parar. É difícil defender os direitos humanos dentro do país sem ter problemas.”

Samar optou por continuar a viver, e a lutar, na Arábia Saudita. Já a cunhada, Ensaf Haidar, 35 anos — mulher de Raif —, exilou-se no Canadá, com os três filhos menores, após a prisão do marido. A partir de lá desdobra-se em ações, vigílias e contactos para que Raif não seja esquecido. Há dias, ficou feliz com um telefonema do ministro dos Negócios Estrangeiros da Áustria. “Disse-me que ia a Genebra e falaria do caso de Raif no Conselho de Direitos Humanos da ONU.”

“Não parem de falar sobre estes casos. E façam vigílias em frente à embaixada saudita”, ENSAF HAIDAR, esposa (foto da esquerda)

As três mulheres multiplicam-se em apelos à solidariedade internacional. “É importante reconhecer que Raif e Walid simbolizam o desrespeito por direitos fundamentais na Arábia Saudita. Muitos prisioneiros de consciência, homens e mulheres, sofrem nas prisões por apenas expressarem uma opinião, criticando a hegemonia opressiva do sector religioso, exigindo igualdade de direitos, ou insistindo em reformas políticas pacíficas”, diz a porta-voz de Raif. “A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações decorrentes das convenções internacionais sobre direitos humanos e tratar os seus cidadãos com dignidade.”

Ensaf, esposa de Raif, pede: “Não parem de falar” sobre estes casos. “E façam vigílias em frente à embaixada saudita.”

POTÊNCIA REGIONAL

SISTEMA POLÍTICO A Arábia Saudita é uma monarquia absoluta onde reina a dinastia dos Saud. A 23 de janeiro um novo rei foi entronizado, Salman bin Abdulaziz Al Saud, de 79 anos. Este país, com 29 milhões de habitantes, é 23 vezes maior do que Portugal.

RELIGIÃO Berço do Islão, o país alberga as cidades santas de Meca e Medina. O monarca saudita detém o título de “guardião das duas mesquitas sagradas”. O waabismo, corrente islâmica ultraconservadora, é a doutrina oficial do Estado.

GEOPOLÍTICA O reino saudita é o grande poder do mundo sunita, por contraponto ao vizinho Irão, o gigante xiita. Os dois países são rivais a outro nível: a Arábia Saudita é culturalmente árabe, o Irão é persa. Esses perfis ditam o seu posicionamento nas grandes questões regionais — da Primavera Árabe ao Daesh.

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de março de 2015