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O veto não é democrático, mas sem ele os cinco grandes sairiam da ONU

A guerra na Ucrânia tornou a reforma do Conselho de Segurança praticamente impossível

Há 20 anos, o mundo estava tomado por uma guerra. Com o argumento de que havia que neutralizar as armas de destruição maciça do ditador Saddam Hussein, os Estados Unidos invadiram o Iraque, à frente de uma coligação de países, mas sem o respaldo de uma resolução da Organização das Nações Unidas (ONU). A maioria dos 15 membros do Conselho de Segurança (CS) — o órgão de decisão, por excelência, da organização — pedia tempo para que os inspetores encontrassem as armas. Mas o interesse dos Estados Unidos foi noutro sentido.

Na atualidade, o mundo contorce-se com outro conflito com impacto global — a invasão russa da Ucrânia, desencadeada com base numa narrativa propagandeada pelo Kremlin, segundo a qual russos e ucranianos são “uma nação”. Também aqui o agressor é um membro permanente do CS.

Conjunturas políticas como estas colocam as Nações Unidas sob fogo, incapazes de tomar decisões consentâneas com os valores que defendem, desde logo punindo um Estado-membro, por mais poderoso que seja, pela agressão a outro.

Três vetos a Portugal

Politicamente, esta organização intergovernamental assenta na Assembleia-Geral — onde todos os membros têm igual peso nas votações — e no Conselho de Segurança, o verdadeiro órgão decisor, com 15 membros, cinco dos quais permanentes (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e com poder de bloqueio de decisões. Na década de 1940, por três vezes a União Soviética (precursora da Federação Russa) vetou a adesão de Portugal às Nações Unidas.

Este privilégio do veto é contestado há décadas, mas contextos como o atual — com a Rússia (que este mês preside ao CS) a vetar resoluções condenatórias da sua própria atuação na Ucrânia — tornam a reforma do órgão mais urgente. “O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz internacional. Não são nem nunca foram. A questão do veto tem de ser ultrapassada”, afirma ao Expresso António Monteiro, embaixador de Portugal nas Nações Unidas entre 1997 e 2001.

Juiz em causa própria

Um senão: “Só quem pode reformar o CS é o próprio CS. E já percebemos que não há muito interesse nisso. Mais ainda na conjuntura atual, que se está a complicar e bastante. Estamos numa situação cada vez mais imprevisível”, diz ao Expresso Victor Ângelo, que foi secretário-geral adjunto de Kofi Annan (1997-2006) e de Ban Ki-moon (2007-16). “Neste momento, tendo em conta a grande divisão que existe no CS, em particular a oposição entre Estados Unidos e Rússia, entre Estados Unidos e China, a aliança entre Rússia e China e a ideia de que o mundo vai para uma situação de bipolaridade, a reforma do CS é praticamente impossível.”

“O veto foi dado às potências vencedoras da II Guerra Mundial na esperança que fossem a garantia da paz. Não são, nem nunca foram”, defende o ex-MNE António Monteiro

O funcionamento da ONU e a atribuição do veto a cinco países são regidos pela sua Carta fundadora, assinada a 26 de junho de 1945 em São Francisco. O documento não sustenta a possibilidade de um membro permanente ficar sem veto, mas prevê a suspensão da participação de outros membros na Assembleia-Geral.

“A guerra na Ucrânia veio mostrar a inadequação deste modelo, que vem do final da II Guerra Mundial, ao que é hoje o equilíbrio de poderes do mundo”, diz Monteiro, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros (2004-05). Se, em 1945, a Carta foi assinada por 50 países, hoje a ONU tem 193 membros. “O modelo de CS não só não contribui para resolver os conflitos como pode até agravá-los ou dar azo a que se perpetuem.”

Longe vão os anos em que, terminada a Guerra Fria, parecia haver harmonia suficiente na comunidade internacional para se reformar a ONU. Para se perceber quão distantes estão esses tempos, recorde-se que, a 27 de maio de 1997, foi assinado o Ato Fundador sobre Relações Mútuas, Cooperação e Segurança, entre a Rússia e… a NATO. “Nos anos 90, tinha terminado a rivalidade com a União Soviética e acreditou-se que seria possível fazer a reforma do CS”, diz Victor Ângelo. “Já não correspondia ao mundo que existia, e hoje ainda menos.”

Da vontade de refazer o CS, com base sobretudo em critérios geográficos e económicos, começaram a brotar dificuldades. África queria representatividade, mas três candidatos acotovelavam-se: África do Sul, Nigéria e Egito. Na América Latina, o Brasil surgia como hipótese óbvia, mas tinha a concorrência da outra grande economia da região, o México, com influência sobre Washington.

Na Ásia, a Índia — hoje prestes a substituir a China como país mais populoso do mundo — era consensual, mas também seriam opções o Paquistão (potência nuclear), a Indonésia (poder islâmico) e o Japão (poder económico), este com garantida oposição da China. Mesmo entre os europeus, havia que partir pedra. A Alemanha, motor económico do continente, seria presença evidente num CS reformado. Mas em vez de alemães, franceses e britânicos individualmente, não deveria estar a União Europeia?

Um órgão antidemocrático

À parte o alargamento, Monteiro insiste que o foco deve ser colocado “no funcionamento do CS e, sobretudo, no poder de veto de cinco países, que transforma o CS num órgão antidemocrático. Basta um membro permanente estar em causa para não só vetar as decisões como usar a ameaça do veto como meio de pressão para que as negociações sigam em determinado sentido”.

Que caminho seguir, então? Conferir o veto a mais países ou acabar com ele? Victor Ângelo vaticina: “Um CS sem direito de veto significaria que os cinco países sairiam da ONU. O veto é fundamental para os manter dentro do sistema. Dá-lhes uma espécie de escudo protetor. Esses países têm grandes interesses geoestratégicos, o veto é maneira de terem um mínimo de garantias de que esses interesses serão defendidos. Sejamos realistas: têm esse direito e não vão abdicar dele.”

Tendo trabalhado 32 anos na ONU, considera que uma organização universalista não dispensa um órgão mais restrito. “Quando foi concebido, o CS tinha dois grandes objetivos: evitar novo conflito entre as grandes potências, por isso os cinco mais importantes ficaram com poder de veto; e funcionar como órgão de decisão que permitisse resolver os conflitos no resto do mundo.” A guerra na Ucrânia prova que estão por cumprir.

QUEM VETOU O QUÊ

URSS/RÚSSIA: 122 vetos É quem mais recorre ao veto. Desde 1946, já o fez 90 vezes enquanto União Soviética e 32 como Federação Russa (pós-1991). Nos últimos anos, os russos têm sido amigos dos regimes da Síria, Coreia do Norte, Venezuela e Mianmar. A União Soviética vetou em três ocasiões a adesão de Portugal: 1946, 1947 e 1949.

ESTADOS UNIDOS: 82 vetos Mais de um terço dos seus vetos foram relativos à “questão palestiniana” ou aos “territórios árabes ocupados”, sempre em defesa de Israel. Há ainda 12 relativos à “situação no Médio Oriente”. Foi na década de 80 que Washington mais vetou (42). Adiou a adesão à ONU do Vietname e de Angola.

REINO UNIDO: 29 vetos Só cinco vezes aplicou o veto individualmente: foi nos anos 60 e 70 e sempre por causa da Rodésia do Sul (colónia britânica, futuro Zimbabué). Em 13 vezes fê-lo em conjunto com Estados Unidos e França, nove só com os americanos e em duas ocasiões com os franceses.

CHINA: 17 vetos Vetou 14 resoluções com a Rússia. Bloqueou decisões a solo três vezes: sobre a Antiga República Jugoslava da Macedónia, a paz na América Central, e chumbou a adesão do Bangladesh.

FRANÇA: 16 vetos Vetou 13 vezes com Londres e Washington, duas só com os britânicos. Em 1976 bloqueou sozinha uma resolução relativa às ilhas Comores.

(IMAGEM Bandeira da Organização das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui