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Perseguidos, mas não esquecidos

Por todo o mundo, o exercício da fé cristã chega a ganhar contornos de crime. Seja porque os crentes vivem sob a alçada de regimes que admitem uma religião só, seja devido à intolerância de sociedades nacionalistas, seja porque “califados oportunistas” substituem-se aos Estados, não faltam exemplos de perseguição aos cristãos

ILUSTRAÇÃO Cristiano Salgado

Aquele 8 de abril de 2021 tinha tudo para ser um dia normal no Hospital Civil de Faisalabad, na província paquistanesa do Punjab. Como muitas outras vezes, as enfermeiras Mariam Lal, de 54 anos, e Nawish Arooj, de 21, estavam de serviço na ala psiquiátrica. A descida aos infernos destas paquistanesas começou quando um paciente lhes deu para a mão um autocolante rasgado que tinha arrancado de um armário de medicamentos. O papel tinha impressa uma passagem do Alcorão. Na manhã seguinte, um grupo de pessoas em fúria confrontou as duas enfermeiras e acusou-as de blasfémia. Mariam e Nawish eram cristãs e aquele autocolante rasgado era a prova de um ato de “profanação do Alcorão”.

INFOGRAFIAS Carlos Esteves

No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam atos de vingança e manifestações de ódio que, amiúde, resultam em linchamentos. Um número desproporcionalmente elevado de casos envolve cristãos. Das 1550 pessoas acusadas de blasfémia desde 1986, quando o código penal foi alterado para incluir o crime de “profanação do Alcorão”, os cristãos surgem implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que correspondam a menos de 2% da população.

A partir do seu esconderijo, Mariam e Nawish partilharam a sua história com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que destacou o caso no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado em novembro passado. Esta instituição pontifícia, com sede na Alemanha e representação em Portugal, trabalha com base em dados que são do domínio público e, em especial, informações recolhidas junto da Igreja local.

As duas mulheres foram levadas e colocadas sob proteção policial. Numa decisão sem precedentes no Paquistão, dado os casos de blasfémia serem, frequentemente, punidos com pena de prisão, ambas foram libertadas sob fiança. É uma liberdade relativa, já que Mariam e Nawish passaram a viver em local secreto, temendo pela vida o tempo todo.

O relatório, que se publica desde 2004, conclui que hoje os cristãos são “vítimas de assédio por motivos religiosos, desde abusos verbais a assassínios, em mais países do que nunca”, lê-se. “Em muitos casos, se não na maioria, esta deterioração não afetou todo o país, mas apenas regiões específicas”, onde a presença de cristãos é expressiva.

Na última edição, pela primeira vez, o relatório destaca a situação na Nicarágua, onde o regime liderado por Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, tem visado a Igreja Católica, seja expulsando membros do clero do país, obrigando ao encerramento de organizações geridas pela Igreja ou restringindo atividades religiosas, como impedir padres de entrarem em hospitais, mesmo que a pedido de doentes, para dar o sacramento da unção.

A 11 de fevereiro de 2023, D. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, foi destituído da cidadania e condenado, sem julgamento, a 26 anos de prisão, por um tribunal de Manágua, que o considerou “traidor à pátria”. O bispo é uma voz crítica do regime e nunca cedeu às pressões para se exilar. Acabou por ser expulso para o Vaticano, em janeiro de 2024, juntamente com outro bispo, 15 sacerdotes e dois seminaristas. Seguiu-se a anulação do estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e o confisco de bens. A pedido das autoridades de Manágua, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática na Nicarágua, na sequência da expulsão do país do núncio apostólico.

Califados oportunistas

Noutras latitudes, os cristãos sofrem às mãos dos chamados “califados oportunistas” que se tornaram uma grande preocupação, em particular na região do Sahel. As tradicionais estratégias de grupos jiadistas de matança e pilhagem deram lugar a uma tendência de imposição de sistemas fiscais e comerciais ilegais ao estilo de ‘um Estado dentro do Estado’ que, muitas vezes, visa as populações cristãs.

Nos últimos anos, em especial após o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) ter sido derrotado no Iraque e na Síria, o epicentro da violência militante islamita deslocou-se do Médio Oriente para África. Na Nigéria, na véspera de Natal de 2023, mais de 300 cristãos foram mortos após extremistas da etnia fulani (muçulmana) invadirem mais de 30 aldeias, no estado de Plateau (centro). Dispararam armas de fogo, incendiaram localidades inteiras e destruíram reservas de alimentos. Jalang Mandong, que perdeu dez familiares no massacre, relatou à AIS que os ataques tiveram por objetivo “perturbar a celebração do Natal” e roubar terras às comunidades.

Os cristãos representam quase metade da população da Nigéria. Em especial no norte do país, onde continuam ativos grupos terroristas como o Boko Haram e o autoproclamado “Estado Islâmico da Província da África Ocidental”, são muitas vezes objeto de discriminação e acusações de blasfémia decorrentes da imposição da sharia (lei islâmica) em pelo menos 12 dos 36 Estados do país.

Na mesma área geográfica, o Burquina Fasso é um caso recente de agravamento da perseguição aos cristãos, que são minoritários no país. Um dos primeiros episódios que fez soar os alarmes aconteceu em outubro de 2023, quando, na região de Débé, dois escuteiros foram executados no interior de uma igreja por extremistas islâmicos — um em frente ao altar, o outro junto à estátua da Virgem Maria. Os jovens tinham por hábito escoltar crianças até uma escola na localidade vizinha de Tougan, onde estava estacionado o exército burquinense. Os terroristas tinham encerrado as escolas nas zonas onde estavam. Após este incidente, mais de 340 cristãos receberam um ultimato de 72 horas para abandonar as suas aldeias.

Os limites do Irão

“Os ataques de grupos islamitas afetaram vários grupos religiosos, incluindo os muçulmanos tradicionais”, lê-se no relatório, que cita o bispo burquinense Justin Kientega, de Ouahigouya, segundo o qual os cristãos são mais visados pelos jiadistas e enfrentam um controlo mais rigoroso e punições mais severas do que os seus vizinhos muçulmanos. “Não há liberdade de culto. Em algumas aldeias, [os jiadistas] permitem que as pessoas rezem, mas proíbem o catecismo; noutros locais, dizem aos cristãos para não se reunirem na igreja para rezar.”

A predominância da lei islâmica é fator de discriminação também no Irão, um Estado teocrático que tem um “grande ayatollah” no topo da pirâmide do poder. Nos últimos anos, os cristãos têm sofrido na pele a mão de ferro do regime que silenciou os gigantescos protestos populares que se seguiram ao “caso Mahsa Amini”, a muçulmana que foi detida e mortalmente agredida, em 2022, pela polícia de costumes, que fiscaliza nas ruas se a indumentária dos cidadãos respeita os preceitos da República Islâmica. No caso de Mahsa, consideraram que não levava o véu na cabeça, de uso obrigatório para as mulheres, corretamente colocado.

Os cristãos também não escapam. A 13 de fevereiro de 2024, Laleh Saati, uma iraniana de 46 anos convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais, nos arredores de Teerão. Durante o interrogatório, na prisão de Evin, foi confrontada com fotografias e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde viveu anos antes e onde foi batizada. Levada a um tribunal revolucionário, foi-lhe perguntado porque tinha regressado se tinha “feito essas coisas fora do Irão”. Foi condenada a dois anos de prisão, acrescidos de mais dois de proibição de viajar.

Os cristãos detidos no Irão aumentaram de 59, em 2021, para 166, em 2023. “As autoridades têm cada vez mais como alvo pessoas que distribuem Bíblias”, diz o relatório da AIS. As confissões cristãs são reconhecidas, oficialmente, mas a leitura da Bíblia em língua farsi não é permitida.

Na Índia, onde o nacionalismo hindu tem originado perseguições às minorias cristã e, sobretudo, muçulmana, pelo menos 12 estados adotaram leis anticonversão. Essas medidas potenciam atos de hostilidade, como negar aos cristãos o acesso à água de um poço, o enterro de um ente querido ou atos de vandalismo, agressões ou assassínios. A 24 de junho, Bindu Sodi, de 32 anos, foi morta à machadada e à pedrada por um tio, na aldeia de Toylanka, no estado de Chhattisgarh, no centro do país. Duas semanas antes, o homem e um filho tinham invadido terrenos pertencentes à família de Bindu e cultivado uma parcela. O tio defendia que aquela família não tinha direito às terras porque se tinha convertido ao cristianismo. Foi apresentada queixa na polícia, mas antes que se apurasse de que lado estava a lei, Bindu pagou com a vida a intolerância do tio.

A incógnita síria

O ano de 2024 terminou com uma grande incógnita no mapa-mundo. O fim da era dos Assad na Síria colocou no poder um grupo sunita salafita jiadista (Hayat Tahrir al-Sham) liderado por um antigo aliado da Al-Qaeda. Os receios relativamente à perseguição de minorias religiosas (e mesmo de outras sensibilidades dentro do Islão além dos sunitas) manifestam-se perante episódios como o ocorrido a 23 de dezembro, na região de Hama (centro).

Na localidade de Suqaylabiyah, de maioria cristã, um grupo de homens encapuzados deitou fogo a uma grande árvore de Natal, montada numa praça. No dia seguinte, véspera de Natal, centenas de pessoas saíram à rua nas zonas cristãs de Damasco em protesto contra o ataque. Nesse mesmo dia, quando decorreram as cerimónias natalícias na Igreja da Senhora de Damasco (católica), havia no exterior pickups com homens afetos ao grupo islamita no poder… a garantir segurança. O tempo dirá se a nova Síria será tolerante em matéria de religião.

Artigo publicado no “Expresso E”, a 10 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataque a Rushdie fere acordo com Irão?

O esfaqueamento do escritor, 33 anos após a fatwa do líder do Irão, coincidiu com o fim do diálogo sobre o programa nuclear. Teerão nega envolvimento no atentado


1. Porque foi atacado Salman Rushdie?

Aos investigadores do ataque ao escritor, num evento em Nova Iorque, a 12 de agosto, o agressor disse ter-lhe aversão por “atacar o Islão”. Foi identificado como sendo Hadi Matar, um norte-americano de 24 anos, que vivia com a mãe em Nova Jérsia. Filho de emigrantes oriundos de Yaroun, uma zona no Sul do Líbano com forte influência do Hezbollah, grupo xiita apoiado pelo Irão, negou qualquer contacto com o Irão.

Ao jornal inglês “Daily Mail” a mãe disse que o filho, muçulmano xiita, começara a revelar fanatismo religioso após passar um mês no Líbano, em 2018. Hadi admitiu ter lido “um par de páginas” de “Os Versículos Satânicos”, a obra de Rushdie que enfureceu milhões de muçulmanos e colocou a sua cabeça a prémio, após o fundador da República Islâmica do Irão (xiita), o ayatollah Ruhollah Khomeini, emitir uma fatwa (decreto), a 14 de fevereiro de 1989, apelando à sua morte.

Hadi não era ainda nascido. Nutriu-se de um ódio que o transcende e contribuiu para uma teoria da conspiração… “Não vou chorar por um escritor que jorra ódio e desprezo sem fim pelos muçulmanos e pelo Islão”, escreveu no Twitter Mohammad Marandi, conselheiro da delegação do Irão às negociações de Viena. “Mas não é estranho que, à medida que nos aproximamos de um possível acordo nuclear, os EUA façam alegações sobre um ataque a [John] Bolton e depois aconteça isto?” Dois dias antes do caso Rushdie um membro dos Guardas Revolucionários do Irão foi acusado pelo FBI de tentativa de assassínio do ex-conselheiro para a Segurança Nacional de Donald Trump.

2. O acordo nuclear está em risco?

Não há indícios de que possa acontecer. Três dias após o ataque ao escritor britânico e norte-americano, um responsável iraniano mostrava que Teerão continuava na ofensiva, à mesa das negociações. Nasser Kanaani, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, negou qualquer envolvimento do Irão no ataque a Rushdie e disse, numa conferência de imprensa, que as conversações de Viena estavam perto de um consenso, na condição de que as linhas vermelhas do Irão seriam respeitadas e os seus principais interesses atendidos. Após 16 meses de negociações, envolvendo sete países, a última ronda terminou a 8 de agosto. A União Europeia, que mediou o processo, fez circular um “texto final” e apelou às partes que tomem decisões. “Pela primeira vez em muitos meses, na terça-feira as autoridades europeias expressaram crescente otimismo de que um restabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015 possa ser celebrado entre Irão e Estados Unidos”, noticiou esta semana o “The New York Times”.

3. O regime de Teerão pode ser penalizado?

Não é provável, apesar do regozijo de sectores conservadores. “Satanás a caminho do inferno”, noticiou em manchete o jornal “Khorasan”. Já o “Kayhan” escreveu: “A mão do homem que rasgou o pescoço do inimigo de Deus deve ser beijada.” Por muito que se prove que foi a fatwa de Khomeini que “guiou” Hadi Matar até Rushdie, as questões relativas aos direitos humanos não levam a melhor sobre a realpolitik. Um exemplo fresco na memória é o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado do reino em Istambul (Turquia), em 2018. O crime implicou o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), no papel de mandante. Quando entrou na Casa Branca, Joe Biden esboçou vontade de ostracizar o reino, rotulando-o de “pária”, e revelou desprezo em relação a MbS, o líder de facto do país. Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos e, há um mês, deslocou-se à península. À entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah, foi recebido por MbS.

4. A fatwa de Khomeini continua em vigor?

Em setembro de 1998, quase 10 anos após a condenação à morte de Rushdie, o então Presidente iraniano, o reformista Mohammad Khatami, defendeu que o caso estava “completamente acabado”. Dias depois, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Kamal Kharrazi, acrescentou que o Governo de Teerão “dissocia-se” de qualquer recompensa oferecida pela morte do escritor. Ainda que em Teerão se tenham seguido presidências conservadoras, Rushdie desapareceu da narrativa político-religiosa iraniana e passou, ele próprio, a circular de forma mais relaxada.

5. Qual o estado de saúde do escritor?

Sir Ahmed Salman Rushdie sobreviveu e, segundo o seu agente, está “a caminho da recuperação”. Num e-mail enviado à agência Reuters, Andrew Wylie disse que o processo “será longo. Os ferimentos são graves, mas o seu estado evolui na direção certa”.

O escritor, de 75 anos, recebeu três facadas no pescoço, quatro no estômago, perfurações no olho direito e no peito e uma laceração na coxa direita. No hospital de Erie, na Pensilvânia, onde está internado, já teve uma conversa “articulada” com investigadores ao caso. Segundo o filho Zafar, “o seu habitual sentido de humor rebelde e desafiador permanece intacto”.

6. O que diz o livro polémico?

“Os Versículos Satânicos” romantiza a vida do profeta Maomé, uma blasfémia no Islão. Foi proibido em vários países, o tradutor japonês foi morto à facada e o italiano e o editor norueguês sobreviveram a atentados. O fantasma de um atentado ao virar da esquina perseguiu Rushdie mais de 30 anos, condenando-o a anos de clandestinidade, com segurança 24 horas e frequentes mudanças de casa. Tornou-se um símbolo da liberdade de expressão, mas também dos seus limites. John le Carré criticou-o: “A minha posição era de que não há lei na vida ou na natureza que diga que grandes religiões podem ser insultadas impunemente.” Durante 15 anos os dois insultaram-se em público, com Rushdie a chamar “burro pomposo” a Le Carré e este a acusá-lo de “autocanonização”. Em 2012 enterraram o machado de guerra: “Gostava que não o tivéssemos feito”, disse Rushdie. Le Carré correspondeu: “Também lamento a disputa.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

O que tem a covid-19 que a ver com a religião? Muito. E a culpa é das teorias da conspiração

A covid-19 não afetou só a saúde – prejudicou também o exercício da fé. O caos provocado pela pandemia atingiu a prática religiosa, em especial das minorias. Rumores e teorias da conspiração implicaram-nas falsamente na origem e proliferação do vírus, contribuindo para aumentar os casos de discriminação e perseguição em dezenas de países. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

O pânico gerado pela covid-19 e, em especial, as perguntas inquietantes desencadeadas pela infeção simultânea de milhões de pessoas em todo o mundo – como esta, por exemplo –, originaram as mais variadas teorias da conspiração sobre a origem da pandemia.

Algumas recuperaram preconceitos sociais preexistentes e transformaram comunidades religiosas em bodes expiatórios.

Os judeus, por exemplo, foram acusados de terem criado e espalhado o vírus com o intuito de beneficiarem financeiramente do caos que se seguiria.

Na Índia, famílias muçulmanas foram atacadas depois de rumores as terem associado à proliferação da doença.

Já no Paquistão, instituições de caridade negaram ajuda alimentar e kits de emergência médica a populações carenciadas, por serem cristãs.

E no universo terrorista, grupos como a Al-Qaeda ou o Daesh, ou com agendas regionais, como o Al-Shabaab ou o Boko Haram, incorporaram a pandemia na sua propaganda. Descreveram a covid-19 como castigo de Deus sobre o Ocidente decadente, que chegou às terras muçulmanas trazido por forças cruzadas. Quem as combater ficará imune ao vírus e ganhará lugar no paraíso.

A pandemia acentuou um problema que se sabia existir e que até já está mapeado.

Em 49 países, há histórias de discriminação por razões religiosas.

Noutros 26 países, onde vive mais de metade da população mundial, a intolerância religiosa é mais grave e há casos de perseguição. Quase metade são países africanos, mas dois asiáticos destacam-se: Myanmar, que persegue e empurra a minoria muçulmana rohingya para fora do país, e a China, que enclausura a comunidade muçulmana uigure em campos de reeducação.

Na China, o próprio Estado, que tem em funcionamento um dos motores de controlo religioso mais eficazes do mundo, tirou partido da desorientação gerada pela emergência de saúde pública e inibiu ainda mais a prática religiosa instalando câmaras de vigilância em locais de culto.

Faz ideia de quantas câmaras equipadas com inteligência artificial existem na China?

Passado o período crítico da pandemia, muitos espaços religiosos tiveram dificuldades em reabrir. Ou porque não passavam nas inspeções sanitárias obrigatórias ou por terem no exterior referências a Deus ou símbolos religiosos, como a cruz.

Mas, sendo a religião o assunto, não faltam exemplos de solidariedade e altruísmo.

Nos Camarões, por alturas do último Natal, muçulmanos e cristãos juntaram-se em Igrejas para rezarem em conjunto pela paz e pelo fim da pandemia.

No Bangladesh, quando começou a haver dificuldades em organizar funerais de vítimas de covid-19 por causa do estigma, uma organização de caridade islâmica ajudou a enterrar não só muçulmanos como hindus e cristãos.

E na ilha de Chipre, dividida entre gregos e turcos, muçulmanos rezaram no Túmulo do Apóstolo Barnabé, o patrono do país, em nome dos cristãos ortodoxos que ficaram sem poder deslocar-se ao local devido às restrições de movimentos justificadas com a pandemia.

Episódio gravado por José Cedovim Pinto.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Dez números sobre o estado da liberdade religiosa no mundo

Um em cada três países em todo o mundo regista situações de perseguição ou discriminação religiosa. A conclusão consta do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, apresentado esta terça-feira

O medo provocado pela pandemia de covid-19 e as muitas perguntas sem resposta colocadas pela infeção levaram à elaboração de teorias da conspiração e à identificação de bodes expiatórios, alguns deles de cariz religioso.

“As teorias da conspiração proliferaram online, alegando que os judeus causaram o surto. Na Índia foram lançadas alegações contra minorias muçulmanas, enquanto em vários países, como a China, o Níger, a Turquia e o Egito, a pandemia foi imputada aos cristãos”, alerta o Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021, apresentado esta terça-feira pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre.

O documento analisou a prática religiosa em 196 países e concluiu que em 62 — um em cada três — subsistem demonstrações de perseguição ou discriminação religiosa. É apenas um de vários números preocupantes em torno das questões da fé nos quatro cantos do mundo.

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por cento da população mundial vive em países onde existe perseguição religiosa

A percentagem diz respeito a cerca de 3900 milhões de pessoas, em apenas 26 países. A conclusão óbvia é que alguns dos países mais populosos do mundo são simultaneamente dos que mais violam a liberdade religiosa. São exemplos a China (1400 milhões), a Índia (1400), o Paquistão (225), a Nigéria (210) e o Bangladesh (165).

Destes 26 países, quase metade (12) situa-se em África. “Nos últimos dois anos, grupos jiadistas consolidaram a sua presença na África Subsariana e a região tornou-se um paraíso para mais de duas dezenas de grupos ativos e cada vez mais cooperantes”, diz o relatório, “incluindo filiados no Daesh e na Al-Qaeda”.

2

países enfrentam acusações de genocídio por motivos religiosos

São eles a China e Myanmar (antiga Birmânia). Em ambos os casos, os alvos da perseguição são minorias muçulmanas: na China os uigures e em Myanmar os rohingyas.

Na China, onde vivem cerca de 30 milhões de muçulmanos, o epicentro da repressão é a província de Xinjiang (noroeste), onde mais de um milhão de uigures (fieis de um ramo sunita do Islão) vivem em “campos de reeducação” em massa e são sujeitos a “programas de reeducação” coerciva.

Em Myanmar (de maioria budista), além dos rohingyas sistematicamente empurrados para o vizinho Bangladesh (estima-se que um milhão viva nos campos de refugiados), há registos de violência contra cristãos e hindus no estado de Kachin.

No caso da China, apenas Estados Unidos e Canadá qualificam as ações do regime de Pequim como genocídio. Ao contrário, prossegue uma investigação no Tribunal Internacional de Justiça por genocídio em Myanmar.

Homens uigures em oração, num cemitério em Turpan, na província chinesa de Xinjiang
Homens uigures em oração, num cemitério em Turpan, na província chinesa de XinjiangKevin Frayer / Getty Images

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países enfrentam acusações de discriminação religiosa

Nesses estados, onde vivem 1240 milhões de pessoas,a liberdade religiosa não é plenamente desfrutada nem goza de garantia constitucional. Nove deles registaram melhorias em comparação com o último relatório, há dois anos: Cuba, Egito, Indonésia, Iraque, Marrocos, Palestina, Sudão, Síria, Usbequistão. Em 20 outros, a situação agravou-se.

Em países não tão castigados com práticas discriminatórias, houve conquistas e reveses recentes. Na África do Sul, em janeiro deste ano, terminou a proibição de as mulheres muçulmanas usarem o véu nas forças armadas. Já no Senegal, Malawi e Libéria, foi negado às muçulmanas o direito a usarem o véu nas escolas ou locais de trabalho.

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países têm na origem das restrições à liberdade religiosa governos autoritários

Vários países asiáticos continuam a ser governados por ditaduras marxistas de partido único, com ideologias e mecanismos de controlo religioso. É o caso da Coreia do Norte, do Vietname e do Laos, por exemplo.

Mas nada se compara ao que acontece na China. Esta “destaca-se de forma duvidosa por ter afinado um dos motores de controlo religioso mais difundidos e eficazes do Estado em funcionamento em qualquer parte do mundo”, diz o relatório.

Em Urumqi, capital regional de Xinjiang, a polícia instalou mais de 18 mil câmaras de reconhecimento facial que vigiam cerca de 3500 complexos residenciais da cidade. Em todo o país, estima-se que haja 626 milhões de câmaras de vigilância equipadas com inteligência artificial, colocadas em áreas públicas e privadas — e muito atentas à dinâmica de determinados grupos religiosos e étnicos.

“O Partido Comunista Chinês tem um dos motores de controlo religioso mais difundidos e eficazes do Estado, atualmente em funcionamento em qualquer parte do mundo.”

Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021

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países são vulneráveis a ataques por parte de redes transnacionais jiadistas

Fazem-no com grandes níveis de crueldade, forçando rapazes a entrar nas suas fileiras como crianças-soldado, recorrendo à violação como arma de guerra e a decapitações em massa, tanto de cristãos como de muçulmanos que recusam juntar-se aos jiadistas.

“O Daesh e a Al-Qaeda, com patrocínio ideológico e material do Médio Oriente, associam-se e radicalizam ainda mais as milícias armadas locais para estabelecer ‘províncias do califado’ ao longo da linha do Equador, crescente violência jiadista que se estende do Mali a Moçambique na África Subsariana, às Comores no Oceano Índico e às Filipinas no Mar do Sul da China”, lê-se no documento. Moçambique é uma entrada recente neste clube sinistro.

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países, no mínimo, todos asiáticos, são palco de ataques à liberdade religiosa com origem em movimentos nacionalistas étnico-religiosos

“Este tipo de nacionalismo propõe que a identidade individual deriva em parte e é elevada pela pertença a uma grande nação definida por uma confluência única de religião, etnia, língua e território.” Existe na Índia e no Nepal (de maioria hindu), no Sri Lanka, Myanmar e Tailândia (de maioria budista) e, de forma menos acentuada, no Butão.

“Estes movimentos oprimiram ainda mais as minorias religiosas, reduzindo-as ao estatuto de facto de cidadãos de segunda classe.”

Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo 2021

Outro caso nesta categoria é o Paquistão, de maioria muçulmana, “há muito tempo nas mãos de uma identidade religiosa-nacionalista armada”. Mesmo na China, o ataque aos uigures combina um forte elemento de nacionalismo étnico-han-chinês.

Neste grafíto, em Bombaím, a palavra “indiano” (na vertical), surge a partir de várias religiões existentes no país
Neste grafíto, em Bombaím, a palavra “indiano” (na vertical), surge a partir de várias religiões existentes no paísINDRANIL MUKHERJEE / AFP / Getty Images

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países foram palco de assassínios motivados por questões de fé, desde meados de 2018

Uns casos foram menos noticiados, como a perseguição violenta por parte de muçulmanos contra convertidos cristãos no Djibuti, na Libéria e no Uganda. Outros foram notícia em todo o mundo pela carnificina em que se transformaram.

Foi o que aconteceu em várias cidades do Sri Lanka, a 21 de abril de 2019, dia especial para os cristãos por ser Domingo de Páscoa: três igrejas e três hotéis de luxo foram alvo de ataques suicidas e explosões, que provocaram 269 mortos.

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igrejas foram vandalizadas e danificadas no Chile, em 2019 e 2020

Dos templos atacados, em oito cidades chilenas, 53 eram igrejas católicas e seis evangélicas. Os ataques aconteceram durante os protestos antigovernamentais que eclodiram a 7 de outubro de 2019 (Estallido Social), que começaram por ser pacíficos, mas rapidamente degeneraram em violência.

“A violência [contra as igrejas] incluiu fogo posto, pilhagem, profanação do Santíssimo Sacramento, interrupção dos cultos religiosos e danos nas portas e portões das igrejas. Houve incidentes em que bancos de igreja e estátuas religiosas foram utilizados para construir barricadas e pedras foram atiradas através de vitrais.”

A 18 de outubro de 2020, em Santiago do Chile, no exterior da Igreja de Asunción, em chamas, gritou-se: “Deixem-na cair, deixem-na cair”
A 18 de outubro de 2020, em Santiago do Chile, no exterior da Igreja de Asunción, em chamas, gritou-se: “Deixem-na cair, deixem-na cair”MARTIN BERNETTI / AFP / Getty Images

O relatório é omisso em relação às razões que podem ter estado na origem desta violência direcionada aos locais de culto, mas à época a Igreja chilena estava em polvorosa, atingida por um grande escândalo de encobrimento de abusos sexuais.

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jovens cristãs e hindus, com idades entre os 12 e os 25 anos, são raptadas todos os anos por homens muçulmanos no Paquistão

É um calculo, por baixo, do Movimento pela Solidariedade e Paz do Paquistão. As raparigas são sujeitas a conversões forçadas e obrigadas a casar-se. Muitas são vítimas de violação, prostituição forçada, tráfico de seres humanos e violência doméstica.

Nalguns casos, as famílias conseguem libertar as raparigas com recurso aos tribunais, mas, não raras vezes, a justiça decide a favor do raptor. Foi o caso de Maira Shahbaz, de 14 anos, que viu o seu casamento com um homem confirmado pelo Supremo Tribunal de Lahore, em agosto de 2020.

Em novembro seguinte, o primeiro-ministro Imran Khan ordenou uma investigação sobre a conversão forçada de mulheres e raparigas das comunidades religiosas minoritárias do país.

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viagens ecuménicas do Papa Francisco lançaram pontes entre Cristianismo e Islamismo

A última deslocação está fresca na memória. Foi em março passado, ao Iraque, de onde o infame grupo terrorista que se autoproclamava “Estado Islâmico” declarou o seu “califado”. Foi a primeira visita de um Papa católico a um país muçulmano de maioria xiita.

Anteriormente, o Pontífice dera grande impulso ao diálogo inter-religioso, em fevereiro de 2019, com uma viagem inédita aos Emirados Árabes Unidos, onde presidiu à primeira missa de sempre na Península Arábica.

Um ponto alto desta deslocação foi um encontro com o Grande Imã Ahamad Al-Tayyib de Al-Azar, líder do mundo muçulmano sunita. Ambos assinaram uma declaração conjunta sobre “Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Vida em Comum”. Apelaram a que se deixe de “utilizar as religiões para incitar ao ódio, violência, extremismo e fanatismo cego” e que nos abstenhamos de “utilizar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, exílio, terrorismo e opressão”.

(FOTO Muçulmanos xiitas em oração, junto à Mesquita Al-Kadhimiya, em Bagdade, no Iraque GHAITH ABDUL-AHAD / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

Samuel foi decapitado. Nadine foi degolada. Por que razão alguns terroristas atacam de forma bárbara?

Nalguns atentados terroristas o atacante age motivado não só pela vontade de matar como também de profanar o corpo. Há razões históricas e religiosas que explicam o recurso à decapitação ou à degola como forma de execução. Um estudioso da Ciência das Religiões diz ao Expresso que é mais provável que, nos dias de hoje, se trate de um fenómeno de imitação dos métodos do Daesh

Pintura de Matthias Stom (séc. XVII) alusiva à decapitação de São João Baptista, a mais importante do mundo ocidental. Exigida por Salomé, a cabeça do pregador foi entregue numa bandeja à neta de Herodes WIKIMEDIA COMMONS

Em outubro passado, dois atentados em solo francês assumiram contornos particularmente cruéis. No dia 16, na cidade de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena. Numa aula sobre liberdade de expressão, o docente havia mostrado caricaturas do profeta Maomé, desencadeando a ira do radical islâmico.

A 29 seguinte, um cidadão tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas no interior da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Nadine Devillers, uma mulher de 60 anos, foi degolada, mas a intenção do atacante era decapitá-la.

Uma facada certeira teria sido suficiente para tirar a vida a qualquer das vítimas, mas estes agressores investiram de forma deliberada com a intenção de cortar-lhes a cabeça.

Várias razões explicam uma motivação dessa natureza, desde logo a propaganda que resulta de um ato tão bárbaro. “Quando o ISIS [o autodenominado ‘Estado Islâmico’, também conhecido pelo acrónimo Daesh] degolava pessoas, filmava a execução e punha as imagens a circular nas redes sociais, havia no gesto uma dimensão de propaganda. Degolar é uma imagem tão brutal que induz um medo terrível”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Ainda hoje, no Ocidente, nos nossos códigos penais, temos o crime de profanação de cadáver. Ou seja, uma coisa é matar alguém, que é um crime; outra coisa é, além de matar, profanar o cadáver, criar uma destruição no corpo que o torne irreconhecível.”

Demonstração de poder

Em várias civilizações milenares, há toda uma herança associada ao ato de decapitar como demonstração de poder. “Nas civilizações mais antigas do Médio Oriente, a decapitação surge como uma forma não propriamente usual, mas das mais brutais e das mais usadas em termos icónicos para se mostrar que se dominou alguém”, diz Paulo Mendes Pinto.

Na Paleta de Narmer, por exemplo, que é uma placa com inscrições e relevos representando a unificação do Antigo Egito, o monarca surge junto a uma fila de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão lado a lado e com as respetivas cabeças cortadas entre os pés. Também no império Assírio-Babilónico há copiosa iconografia que mostra o rei a contar os corpos de uma batalha: num monte há corpos, noutro cabeças.

Vazar o corpo do líquido da vida

Numa outra componente deste fenómeno, degolar surge como forma mais comum de sacrificar um animal, sangrando-o pelo pescoço. Num ser humano, passar uma lâmina no pescoço é garantia de morte eficaz, nenhum inimigo sobrevive. Matar com recurso à degola tem o intuito de “vazar o corpo do líquido da vida”, explica Mendes Pinto.

Há ainda uma dimensão espiritual no ato de decapitar. “Há muitas visões do fim do mundo, do fim dos tempos, em que se dará a ressurreição final de todos aqueles que foram vivos”, explica o professor. “Há muitos movimentos religiosos que acreditam que para esse juízo final poder ter lugar, o corpo tem de estar inteiro.”

Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição essencial para que no dia do Juízo Final possa haver um novo tempo. Logo, separar a cabeça do resto do corpo é uma forma de impedir que o defunto ganhe a Eternidade.

Uma forma de “morte digna”

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma técnica que atravessou a História, desde foram forjadas as primeiras espadas. Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Na Europa, tornou-se uma forma de “morte digna” para a nobreza — rápida e supostamente indolor —, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. O método generalizou-se com a Revolução Francesa e, com o passar do tempo, a guilhotina passou das praças públicas para o interior das prisões.

Para Mendes Pinto, o grau de consciência de todos estes aspetos por parte de quem, nos dias de hoje, realiza este tipo de ataques será reduzido. “Alguém, fundamentalista islâmico, viu as imagens há quatro, cinco anos de gente a ser degolada pelo ISIS e, quanto mais não seja, faz exatamente o mesmo por imitação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui