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Eleições: não está em causa quem ganha, antes a legitimidade da República Islâmica

O regime iraniano enfrenta uma crise de legitimidade e os ayatollahs já não o conseguem esconder. Num apelo desesperado, Ali Khamenei instou, há dias, os seus conterrâneos a votarem nas eleições desta sexta-feira, 1 de março, para o Parlamento e para a Assembleia de Peritos, o órgão que escolhe o Líder Supremo. Os opositores, por seu lado, apelam ao boicote. Após as últimas eleições terem registado um mínimo histórico de afluência às urnas, a República Islâmica está pressionada mais do que nunca pela urgência em inverter a tendência, para se mostrar relevante

Da última vez que o Irão realizou eleições legislativas, em fevereiro de 2020, o país estava ainda sob o signo do choque. A 4 de janeiro, uma das figuras mais prestigiadas da República Islâmica, o general Qasem Soleimani, tinha sido assassinado por um drone disparado pelos Estados Unidos, estava ele no aeroporto de Bagdade, no Iraque. No dia do voto, o sentimento anti-ocidental estava ao rubro entre os mais entusiastas do regime religioso.

Esta sexta-feira, dia 1 de março, os iranianos regressam às urnas para escolher os seus representantes no Parlamento (Majlis) e também os membros da Assembleia de Peritos, o órgão encarregue de escolher o Líder Supremo. O escrutínio acontece num contexto em que, seja pela inimizade de décadas com os Estados Unidos, ou pela aliança com a Rússia, seja pelo apoio de Teerão a grupos armados na região, como o palestiniano Hamas ou o libanês Hezbollah, ambos protagonistas na guerra em curso na Faixa de Gaza, o país sente-se na mira dos grandes poderes ocidentais.

Esta perceção não estará ausente destas eleições, que constituirão um dilema para os eleitores: “Se os candidatos da linha dura e anti-Israel vencerem as eleições para o Parlamento, então poderão legislar no sentido de empurrar o governo e as forças armadas para uma abordagem mais conflituosa em relação aos conflitos na região”, comenta ao Expresso Mohammad Eslami, investigador iraniano na Universidade do Minho.

“Na mesma linha, se a prioridade do Parlamento for a economia e a subsistência das pessoas, [os novos deputados] poderão reorientar o regime para uma abordagem mais pacífica.”

Estas serão também as primeiras eleições desde a morte da iraniana Mahsa Amini, na sequência de ferimentos infligidos pela “polícia da moralidade” após ser detida por não usar o véu islâmico segundo a etiqueta da República Islâmica. O assassínio da jovem de 22 anos desencadeou uma vaga de protestos populares antirregime que duraram meses e só terminaram quando o regime começou a deter e a enforcar manifestantes, na sequência de julgamentos considerados fraudulentos.

Na crença de que votar é validar a República Islâmica e contribuir para a sua perpetuação, os opositores ao regime dos ayatollahs têm-se multiplicado em apelos ao boicote como forma de acentuar o divórcio entre uma parte significativa da sociedade e a hierarquia religiosa no poder.

“Estas eleições têm uma importância significativa uma vez que as anteriores registaram uma taxa de participação inferior a 50% [exatamente 42,57%], um mínimo histórico desde a Revolução Islâmica”, em 1979, diz Eslami. Para se mostrar relevante e com saúde, o regime iraniano — que tem sido desafiado por sucessivas vagas de contestação popular (por razões políticas, sociais e económicas) — está pressionado pela necessidade de inverter a tendência.

“Outro aspeto importante é o surgimento de vários movimentos sociais envolvidos ativamente no processo eleitoral” continua o iraniano. “Entre eles estão a oposição iraniana e antigos grupos reformistas que se recusam a apoiar as eleições, defendendo uma posição de ‘Não às eleições manipuladas’ e expressando relutância em conceder legitimidade ao atual regime através do voto. Já os apoiantes do regime defendem a participação eleitoral sob a bandeira ‘Desta vez, tudo vai mudar’”, fazendo fé que os próximos representantes parlamentares estarão comprometidos com “uma conduta transparente nas suas funções”.

No Índice de Perceção da Corrupção de 2023, o Irão surge na posição 149, numa lista de 180 países.

A 18 de fevereiro, o Líder Supremo do Irão, o ayatollah Ali Khamenei, de 84 anos, fez um apelo ao voto com laivos de desespero, colocando a ênfase mais na participação do que no sentido do voto. Disse então:

Todos devem participar nas eleições. As eleições são o principal pilar da República Islâmica. As eleições são a forma de reformar o país. Aqueles que querem resolver os problemas e repará-los devem recorrer às eleições. O caminho certo são as eleições. A principal prioridade é a participação do povo. A escolha das pessoas certas é secundária.”

Mas enquanto o líder religioso suplica para que os iranianos votem, por todo o país há ações de boicote ao ato eleitoral como, por exemplo, cartazes de campanha queimados. Em declarações ao Expresso, fontes da oposição iraniana no exílio dizem-se cientes que “estas eleições são vitais para que o regime recupere legitimidade”. Mas “a verdade é que o povo iraniano como um todo não acredita mais nas eleições fraudulentas deste regime”.

Conscientes que a legitimidade que o sistema político iraniano procura depende em muito da taxa de afluência às urnas, esta semana, 275 personalidades iranianas das áreas política, social e cultural uniram-se num apelo público ao boicote a este escrutínio que consideram ser “encenado”.

Na mira destes notáveis — um deles Morteza Alviri, um antigo presidente da Câmara Municipal de Teerão e embaixador em Espanha — está, designadamente, a quantidade de candidaturas desqualificadas pelo Conselho dos Guardiães.

Ainda assim, após três meses de análise às qualificações dos candidatos, este órgão composto por seis teólogos e seis juristas (que exercem mandatos de oito anos) viabilizou mais de 15.200 nomes para disputar as eleições legislativas. Entre os candidatos, há 1713 mulheres, mais do dobro das 819 que se apresentaram a votos em 2020.

Uma complexa pirâmide de poder

A estrutura de poder da República Islâmica é constituída por um emaranhado de órgãos eleitos por sufrágio direto universal e outros nomeados que têm no topo dessa cadeia de decisão o Líder Supremo. Para além do Parlamento e da Assembleia de Peritos, também o Presidente é escolhido por voto popular.

Esta sexta-feira, serão escolhidos os 290 deputados e deputadas do Parlamento (formalmente designado Assembleia consultiva Islâmica), com idades entre os 30 e os 75 anos de idade, para mandatos de quatro anos. Cinco assentos estão reservados a representantes de minorias.

Concorrem dezenas de partidos políticos, mas na dinâmica política quotidiana, o sistema movimenta-se em função de outras sensibilidades: conservadores versus reformistas.

“Apesar da multiplicidade de partidos, o sistema político no Irão funciona ao estilo de coligações, com os partidos a alinharem-se sob as bandeiras abrangentes dos reformistas, moderados ou conservadores, a fim de garantir uma maioria no Parlamento”, explica Eslami.

“Estes três principais movimentos políticos no Irão representam diferentes ideologias e crenças: os reformistas pressionam por reformas sociais e políticas, os moderados defendem uma abordagem mais pragmática da governação e os conservadores os valores e princípios tradicionais. Este processo de construção de coligações destaca a importância da cooperação e do compromisso no sistema político iraniano.”

Também a eleição para a Assembleia de Peritos encerra um alto grau de complexidade. “Para serem elegíveis, os candidatos devem possuir qualificações específicas a nível religioso, político e da jurisprudência. Devem ter uma compreensão profunda dos ensinamentos e princípios islâmicos, bem como experiência em jurisprudência islâmica. Devem também ter uma sólida experiência política e ser capazes de navegar pelas complexidades do sistema político iraniano. O número de candidatos que conseguem reunir estas qualificações e, portanto, inscrever-se como candidatos é muito baixo”, conclui Eslami.

“Durante este processo de seleção, mais de metade dos candidatos são normalmente desqualificados, limitando ainda mais o número de indivíduos que podem concorrer a um lugar na Assembleia de Peritos. Como resultado, é comum que haja apenas dois ou três candidatos a competir por cada vaga, tornando o processo eleitoral altamente competitivo e exclusivo.”

Um nome que, este ano, não passou no crivo do Conselho dos Guardiães, suscitando indignação entre os reformistas, foi Hassan Rohani, que foi Presidente do Irão entre 2013 e 2021 e que era membro da Assembleia de Peritos desde o ano 2000.

Rohani exerceu a presidência com o rótulo de moderado tendo sido responsável pela assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, a 14 de julho de 2015, que contribuiu para retirar a República Islâmica do isolamento internacional e aliviar as dificuldades económicas do povo ao garantir o levantamento de sanções internacionais.

Rohani foi sucedido na presidência pelo conservador Ebrahim Raisi, que virou o Irão para oriente, designadamente na direção da Rússia.

(IMAGEM PARLIAMENTARY UNION OF THE OIC MEMBER STATES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de fevereiro de 2024 e no “Expresso”, a 1 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Porque há contestação nas ruas aos “ayatollahs”?

A morte de uma jovem sob custódia da polícia, detida por andar na via pública com “trajes inadequados”, desencadeou manifestações contra o uso obrigatório do véu islâmico. E, por arrasto, contra o regime religioso que governa o Irão há 43 anos

Engarrafamento na direção do cemitério de Saqqez, onde está enterrada Mahsa Amini TWITTER / BBC

1. Porque há protestos em várias cidades iranianas?

Aagitação está nas ruas desde sábado, dia do funeral de uma mulher de 22 anos que morreu fruto de ferimentos graves infligidos dentro de uma carrinha da polícia. Mahsa Amini fora detida em Teerão, pela polícia de costumes, por levar “trajes inadequados”.

Imagens nas redes sociais mostram iranianas a queimar os véus, de uso obrigatório. Os protestos já fizeram pelo menos sete mortos e concentram-se em Teerão, Mashhad, Tabriz e na região curda. Mahsa pertencia a esta minoria, que resistiu a tentativas de assimilação.

2. Que é e para que serve a polícia de costumes?

Também chamada polícia da moralidade, foi criada após a Revolução Islâmica. Tem como missão fazer cumprir, na via pública, os códigos de vestuário impostos pelos ayatollahs, desde logo o uso obrigatório do véu islâmico para as mulheres e roupa larga para ocultar a silhueta.

Transeuntes vestidos de forma que considerem “não islâmica” — por exemplo, com o véu descaído ou, no caso dos homens, calções e camisas de manga curta — são admoestados, multados ou presos por agentes desta força de segurança.

3. Que potencial político têm os protestos?

Este episódio traz à memória a morte do vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo, em 2010, depois de a polícia apreender a sua banca.

Este ato desesperado desencadeou protestos no país e originou um efeito dominó no Norte de África e Médio Oriente (Primavera Árabe), que depôs ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen.

No Irão, o descontentamento apoia-se também em slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência velada ao Líder Supremo, Ali Khamenei.

4. Esta contestação nas ruas é inédita no país?

Nos últimos 15 anos, eclodiram grandes manifestações antigovernamentais por duas vezes, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”.

A primeira foi em 2009, contra a vitória do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais (Movimento Verde).

Dez anos depois, nova vaga de protestos, que começou a propósito do forte aumento do preço dos combustíveis, evoluiu para um movimento pró-democracia.

Ambas as jornadas foram violentamente reprimidas pelas forças do regime.

5. Como reagem agora as autoridades de Teerão?

Restringindo o acesso a WhatsApp e Instagram e remetendo-se ao silêncio. Quarta-feira, Khamenei falou 55 minutos na televisão sobre a guerra Irão-Iraque.

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Presidente Ebrahim Raisi também foi omisso.

Já o homólogo americano não perdeu a ocasião de expor Teerão: “Estamos com os corajosos cidadãos e as bravas mulheres do Irão que se manifestam para garantir os direitos básicos”, disse Joe Biden, nas Nações Unidas.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataque a Rushdie fere acordo com Irão?

O esfaqueamento do escritor, 33 anos após a fatwa do líder do Irão, coincidiu com o fim do diálogo sobre o programa nuclear. Teerão nega envolvimento no atentado


1. Porque foi atacado Salman Rushdie?

Aos investigadores do ataque ao escritor, num evento em Nova Iorque, a 12 de agosto, o agressor disse ter-lhe aversão por “atacar o Islão”. Foi identificado como sendo Hadi Matar, um norte-americano de 24 anos, que vivia com a mãe em Nova Jérsia. Filho de emigrantes oriundos de Yaroun, uma zona no Sul do Líbano com forte influência do Hezbollah, grupo xiita apoiado pelo Irão, negou qualquer contacto com o Irão.

Ao jornal inglês “Daily Mail” a mãe disse que o filho, muçulmano xiita, começara a revelar fanatismo religioso após passar um mês no Líbano, em 2018. Hadi admitiu ter lido “um par de páginas” de “Os Versículos Satânicos”, a obra de Rushdie que enfureceu milhões de muçulmanos e colocou a sua cabeça a prémio, após o fundador da República Islâmica do Irão (xiita), o ayatollah Ruhollah Khomeini, emitir uma fatwa (decreto), a 14 de fevereiro de 1989, apelando à sua morte.

Hadi não era ainda nascido. Nutriu-se de um ódio que o transcende e contribuiu para uma teoria da conspiração… “Não vou chorar por um escritor que jorra ódio e desprezo sem fim pelos muçulmanos e pelo Islão”, escreveu no Twitter Mohammad Marandi, conselheiro da delegação do Irão às negociações de Viena. “Mas não é estranho que, à medida que nos aproximamos de um possível acordo nuclear, os EUA façam alegações sobre um ataque a [John] Bolton e depois aconteça isto?” Dois dias antes do caso Rushdie um membro dos Guardas Revolucionários do Irão foi acusado pelo FBI de tentativa de assassínio do ex-conselheiro para a Segurança Nacional de Donald Trump.

2. O acordo nuclear está em risco?

Não há indícios de que possa acontecer. Três dias após o ataque ao escritor britânico e norte-americano, um responsável iraniano mostrava que Teerão continuava na ofensiva, à mesa das negociações. Nasser Kanaani, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, negou qualquer envolvimento do Irão no ataque a Rushdie e disse, numa conferência de imprensa, que as conversações de Viena estavam perto de um consenso, na condição de que as linhas vermelhas do Irão seriam respeitadas e os seus principais interesses atendidos. Após 16 meses de negociações, envolvendo sete países, a última ronda terminou a 8 de agosto. A União Europeia, que mediou o processo, fez circular um “texto final” e apelou às partes que tomem decisões. “Pela primeira vez em muitos meses, na terça-feira as autoridades europeias expressaram crescente otimismo de que um restabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015 possa ser celebrado entre Irão e Estados Unidos”, noticiou esta semana o “The New York Times”.

3. O regime de Teerão pode ser penalizado?

Não é provável, apesar do regozijo de sectores conservadores. “Satanás a caminho do inferno”, noticiou em manchete o jornal “Khorasan”. Já o “Kayhan” escreveu: “A mão do homem que rasgou o pescoço do inimigo de Deus deve ser beijada.” Por muito que se prove que foi a fatwa de Khomeini que “guiou” Hadi Matar até Rushdie, as questões relativas aos direitos humanos não levam a melhor sobre a realpolitik. Um exemplo fresco na memória é o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado do reino em Istambul (Turquia), em 2018. O crime implicou o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), no papel de mandante. Quando entrou na Casa Branca, Joe Biden esboçou vontade de ostracizar o reino, rotulando-o de “pária”, e revelou desprezo em relação a MbS, o líder de facto do país. Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos e, há um mês, deslocou-se à península. À entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah, foi recebido por MbS.

4. A fatwa de Khomeini continua em vigor?

Em setembro de 1998, quase 10 anos após a condenação à morte de Rushdie, o então Presidente iraniano, o reformista Mohammad Khatami, defendeu que o caso estava “completamente acabado”. Dias depois, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Kamal Kharrazi, acrescentou que o Governo de Teerão “dissocia-se” de qualquer recompensa oferecida pela morte do escritor. Ainda que em Teerão se tenham seguido presidências conservadoras, Rushdie desapareceu da narrativa político-religiosa iraniana e passou, ele próprio, a circular de forma mais relaxada.

5. Qual o estado de saúde do escritor?

Sir Ahmed Salman Rushdie sobreviveu e, segundo o seu agente, está “a caminho da recuperação”. Num e-mail enviado à agência Reuters, Andrew Wylie disse que o processo “será longo. Os ferimentos são graves, mas o seu estado evolui na direção certa”.

O escritor, de 75 anos, recebeu três facadas no pescoço, quatro no estômago, perfurações no olho direito e no peito e uma laceração na coxa direita. No hospital de Erie, na Pensilvânia, onde está internado, já teve uma conversa “articulada” com investigadores ao caso. Segundo o filho Zafar, “o seu habitual sentido de humor rebelde e desafiador permanece intacto”.

6. O que diz o livro polémico?

“Os Versículos Satânicos” romantiza a vida do profeta Maomé, uma blasfémia no Islão. Foi proibido em vários países, o tradutor japonês foi morto à facada e o italiano e o editor norueguês sobreviveram a atentados. O fantasma de um atentado ao virar da esquina perseguiu Rushdie mais de 30 anos, condenando-o a anos de clandestinidade, com segurança 24 horas e frequentes mudanças de casa. Tornou-se um símbolo da liberdade de expressão, mas também dos seus limites. John le Carré criticou-o: “A minha posição era de que não há lei na vida ou na natureza que diga que grandes religiões podem ser insultadas impunemente.” Durante 15 anos os dois insultaram-se em público, com Rushdie a chamar “burro pomposo” a Le Carré e este a acusá-lo de “autocanonização”. Em 2012 enterraram o machado de guerra: “Gostava que não o tivéssemos feito”, disse Rushdie. Le Carré correspondeu: “Também lamento a disputa.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Iranianos elegem novo Presidente. Quem são os candidatos?

Os iranianos escolhem, esta sexta-feira, um novo Presidente. Apesar de não ser dos cargos mais influentes na complexa estrutura política iraniana, o chefe de Estado é o rosto que representa e defende o país fora de portas. Há quatro candidatos nos boletins de voto, nenhum assumidamente reformista

Ebrahim Raisi, um dos candidatos às presidenciais iranianas HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Desde o início do ano que tanto os Estados Unidos como Israel renovaram as respetivas lideranças. Joe Biden está na Casa Branca desde 20 de janeiro e Naftali Bennett chefia o Governo de Israel desde domingo passado. Esta sexta-feira, é o Irão que elege um novo Presidente. Só a prazo, combinadas todas as novas sensibilidades, se perceberá como vai evoluir um dos dossiês que mais tensão geram a nível internacional — o programa nuclear iraniano.

“O Presidente é considerado o representante da nação em reuniões oficiais, e fala em seu nome”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho, que se dedica aos estudos do Médio Oriente. “A diplomacia do país está nas mãos do Presidente. Assim, presidentes diferentes podem seguir abordagens diferentes em relação às políticas externa e interna.”

Biden quer revitalizar o acordo internacional assinado em 2015 (do qual Donald Trump retirou os EUA, três anos depois), que sujeitava o programa nuclear do Irão a supervisão internacional. O israelita Bennett não desafina da posição do seu antecessor, Benjamin Netanyahu, e já afirmou que reativar o acordo seria “um erro”.

Quanto ao Irão, nos últimos anos, tem tido um Presidente defensor do diálogo com o Ocidente, Hassan Rouhani. Acontece que este está de saída e quem lhe sucede pode não pensar de igual forma.

Esta sexta-feira, mais de 59 milhões de eleitores dirão em quem confiam para governar nos próximos quatro anos. Dos 592 iranianos que tentaram candidatar-se — com idades entre os 40 e os 75 anos —, apenas sete passaram no crivo do Conselho dos Guardiães (ver infografia abaixo). Sestes, três desistiram a dois dias do escrutínio. Nos boletins de voto haverá, pois, quatro nomes, nenhum deles assumidamente reformista:

EBRAHIM RAISI

É o candidato do establishment político, apoiado pelos sectores conservadores e da linha dura. É apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei e, tal como este, usa um turbante preto, indicativo de que é um sayyid, isto é descendente do Profeta Maomé. Tem 60 anos e lidera, desde 2019, o aparelho judicial, onde trabalhou durante décadas e ganhou fama de ser implacável no combate à corrupção. Em 1988, integrou uma comissão que condenou à morte milhares de prisioneiros políticos, após a guerra Irão-Iraque. Integra a Assembleia de Peritos, órgão responsável pela nomeação e exoneração do Líder Supremo. Em 2017, perdeu as presidenciais para Rohani, com 38% dos votos. E em 2019, foi alvo de sanções por parte dos Estados Unidos.

ABDOLNASER HEMMATI

Formado em Economia, tem 66 anos e é um tecnocrata moderado que ocupou o cargo de governador do banco central iraniano desde 2018. Durante este período, este antigo jornalista teve de lidar com uma forte desvalorização do rial e com as sanções norte-americanas ao sector bancário, incluindo ao próprio banco, que deprimiram o país. Serviu em posições destacadas durante as presidências do conservador Mahmud Ahmadinejad e do reformista Hassan Rouhani, o que revela capacidade para trabalhar com fações opostas. É o único não conservador a ir a votos. Poderá concentrar os votos reformistas, que, porém, estão em perda devido ao desencanto com a atual administração Rohani e aos problemas económicos agravados pela reintrodução de sanções ao país.

MOHSEN REZAEI

Candidata-se à presidência pela quarta vez — concorreu em 2005, 2009 e 2013, e perdeu sempre. Em 2000 candidatou-se a um lugar no Parlamento e também não conseguiu ser eleito. Tem 66 anos e uma carreira militar de décadas. Entre 1981 e 1997, foi comandante-chefe dos Guardas da Revolução. Liderou estas forças durante a guerra Irão-Iraque. Desde 1997, é secretário do Conselho de Discernimento, que arbitra disputas legislativas entre o Parlamento e o Conselho de Guardiães. É formado em Economia, pela Universidade de Teerão.

AMIR-HOSSEIN GHAZIZADEH HASHEMI

É médico de profissão, na especialidade de otorrinolaringologia. É deputado desde 2008, de linha ultraconservadora. É primeiro vice-presidente do Parlamento. Tem posições extremadas em relação ao dossiê nuclear, tendo já defendido a saída do Irão do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Aos 50 anos, é o mais novo dos quatro candidatos. Prometeu formar um Governo jovem para guiar a Revolução numa nova fase.

Um dos quatro homens passará a ser o rosto o Irão fora de portas, ainda que a presidência esteja longe de ser a instituição mais influente na estrutura política da República Islâmica.

“O Presidente é o braço executivo da liderança e o representante do povo a nível executivo”, diz o professor Eslami. “Conforme os princípios religiosos, o governo da sociedade islâmica é da responsabilidade do jurista (Velayat-e Faqih) que foi nomeado governante da sociedade islâmica”, ou seja, o Líder Supremo ayatollah Ali Khamenei.

“Mas isso não contradiz o facto de o jurista também ter assistentes e conselheiros para fazer avançar a sociedade segundo as regras e leis religiosas. A Constituição prevê três ramos, um dos quais o executivo, e uma vez que o seu chefe é eleito diretamente pelo povo e muitos assuntos executivos são-lhe confiados, o cargo também é considerado liderança. Pode dizer-se que o Presidente é o primeiro vice do líder, responsável pelos assuntos executivos. Ele responde perante o líder.”

No topo da pirâmide do poder está o Líder Supremo. Dele emanam múltiplos centros de poder, compostos por instituições ora nomeadas ora eleitas por sufrágio universal.

Enquanto chefe de Governo, o Presidente tem poderes limitados. Entre as suas obrigações está o dever de nomear os membros do gabinete e fazer uma proposta de orçamento, que depois devem ser aprovados no Parlamento. É eleito para um máximo de dois mandatos de quatro anos.

“Enfatizar a importância da presidência não significa subestimar outras instituições, como os poderes judiciário e legislativo”, conclui o professor Eslami. “Mas como o Presidente é eleito por voto popular direto, também tem um lugar especial na Constituição.” Ainda que quem defina os parâmetros das políticas a seguir seja o Líder Supremo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui