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Adeus a um dos símbolos da Revolução: Cuba prepara-se para acabar com a caderneta de racionamento

Faz parte dos domicílios cubanos há quase 60 anos, mas está de saída. O pequeno “caderno de abastecimento”, com que os cidadãos adquirem produtos básicos a preços subsidiados, tem fim anunciado. Um economista cubano explica ao Expresso qual parece ser a futura estratégia do regime de Havana: subsidiar pessoas e não produtos

Ultrapassada a era dos Castro, Cuba continua a trilhar o caminho da mudança. Sem data concreta na agenda, as autoridades de Havana preparam-se para acabar com um dos principais símbolos da Revolução comunista de 1959 — a libreta de abastecimiento.

Este pequeno caderno, que nas últimas décadas é presença constante nas casas cubanas, garante a cada família o acesso a um cabaz básico de produtos subsidiados pelo Estado, a esmagadora maioria deles importada.

“O caderno de abastecimento foi criado em 1962, dura há muito tempo. No princípio, foi uma coisa justa e creio que sim, ajudou a distribuir entre todos os produtos que o Estado podia produzir ou importava”, explica ao Expresso o economista cubano Omar Everleny. “Mas na realidade é um símbolo da escassez do Estado, que teve de subsidiar os produtos que ali se vendem, durante muito tempo.”

Na lista de produtos comparticipados há arroz, ovos, açúcar, frango, massa, sal, azeite, café, leite, pão, dietas especiais para crianças, grávidas e doentes. Estima-se que o Estado cubano gaste anualmente cerca de 1000 milhões de dólares (850 milhões de euros) com este sistema, no qual estão inscritas quase quatro milhões de famílias, e que já não colhe a unanimidade de outros tempos.

À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento
À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

“Hoje a libreta é também um símbolo de desigualdade, já que se entrega o mesmo a um aposentado do Estado, com poucos rendimentos, e a uma pessoa que tem um negócio e vai de férias para o estrangeiro”, comenta Everleny, antigo professor catedrático na Universidade de Havana. “Por isso, acredito que o Estado passe a uma fase em que prefira subsidiar pessoas e não produtos.”

Durante a presidência de Raúl Castro (2008-2018), o irmão de Fidel qualificou o mecanismo de obsoleto. Para reduzir subsídios, cortou alguns artigos do cabaz básico — batata, grão-de-bico, cigarros, charutos, sabonetes e pasta dos dentes —, que passaram a ser vendidos apenas no mercado livre. Raúl considerava que o mecanismo, “com os anos, tornou-se uma carga insuportável e um desincentivo ao trabalho”.

Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba
Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O fim da caderneta foi abordado na quinta-feira passada pelo atual Presidente cubano, no programa televisivo “Mesa Redonda”, criado por Fidel Castro. Miguel Díaz-Canel esclareceu que a libreta deixará de existir após a conclusão da anunciada reforma monetária que o regime de Havana tem em vista, visando eliminar uma das duas moedas oficiais que circulam na ilha.

No território, coexistem o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC). O CUP é a moeda em que os cubanos recebem salários e pensões e equivale, atualmente, a quatro cêntimos do dólar. O CUC é a moeda usada pelos turistas e por quem trabalha no sector do turismo, a galinha dos ovos de ouro da economia cubana. Criado em 1994, o CUC é paritário ao dólar norte-americano e não é aceite em muitas lojas e farmácias. Havana quer acabar com o CUC e ficar com o CUP como moeda única de Cuba.

Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo
Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O Presidente cubano garantiu que a reforma monetária não irá pôr em causa a continuidade de grandes conquistas da Revolução, como a saúde e a educação universal gratuitas. Díaz-Canel assegura que nenhum cubano ficará desamparado: “Se alguém ficar numa situação de vulnerabilidade, o Governo procurará forma de apoiá-lo”.

Comenta o economista Everleny: “Cuba vive uma das crises mais profundas da sua história e não tem recursos financeiros para continuar a usar essa variável universalista”, como é a libreta. “Mas será um processo gradual, não será uma decisão repentina, não creio que seja este ano, talvez em meados do próximo”.

Paralelamente ao défice crónico na balança de pagamentos, o país acumula dificuldades em virtude da pandemia de covid-19, que afastou os turistas da ilha caribenha, da diminuição das remessas enviadas pela diáspora e também das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados Unidos. A escassez de alimentos, produtos de higiene e medicamentos nas prateleiras dos espaços comerciais é a consequência mais visível desta crise.

Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis
Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

Instituída pela Lei 1015, de 12 de março de 1962, a caderneta de abastecimento foi criada por Fidel Castro para enfrentar a falta de alimentos que derivou do embargo económico decretado pelos Estados Unidos, principal parceiro comercial à época.

Ainda que o cabaz básico não fosse suficiente para alimentar uma família, era uma ajuda substancial para muita gente. “O cabaz básico, que se entregava mensalmente, garantia menos de 12 dias das necessidades alimentares da população. O resto tinha de ser adquirido a preços de mercado, ou mais altos do que os do cabaz, especialmente os produtos agrícolas”, explica o economista Everleny.

“Hoje a sociedade cubana não é a mesma: 33% do emprego está no sector privado ou cooperativo, ou seja, sem os salários fixos e baixos pagos pelo Estado. Outra parte importante recebe remessas do exterior e outro grupo importante mora no exterior, ou seja, a população não é tão homogénea como nos anos 80.”

Conclui Omar Everleny: “Acredito que parte da população, uns 25%, não esteja preparada nem consiga aguentar o cancelamento da libreta de abastecimiento. O Estado deve mostrar a capacidade necessária para criar mecanismos financeiros que compensem a população que tenha de adquirir os bens do velho cabaz subsidiado, aos preços que esses produtos atinjam”.

(Uma cubana de Santiago de Cuba mostra a sua ‘libreta’, a caderneta de racionamento que lhe permite comprar mantimentos a baixos preços, graças aos subsídios do Estado AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

No Porto, a festa do 25 de Abril fez-se a 1 de Maio

Quando lhe perguntam onde estava no 25 de Abril, Sérgio Valente diz sem rodeios: “Na baixa do Porto, a levar porrada da polícia”. Ao Expresso, este fotógrafo de 77 anos recorda os tempos de oposição ao regime e os primeiros dias em liberdade. Esta quinta-feira, é inaugurada na Câmara do Porto uma mostra de fotos suas com imagens inéditas da revolução

Panorâmica da Avenida dos Aliados, no Porto, a 1 de maio de 1974. O primeiro 1º de Maio em liberdade SÉRGIO VALENTE

Sérgio Valente terminou o dia 25 de abril de 1974 com um penso colado à testa. Passara o dia às voltas no Porto, tentando perceber para que lado caía a revolução. Como ele, com o passar das horas, cada vez mais portuenses rumavam à Avenida dos Aliados para — perante as informações de que, em Lisboa, o golpe militar estava no bom caminho — celebrarem a conquista da liberdade em conjunto.

“A movimentação era cada vez maior. Então o comandante da polícia mandou carregar sobre as pessoas que estavam a comemorar a liberdade”, recorda ao Expresso este fotógrafo portuense, então com 32 anos. “Vi um polícia a bater num jovem e peguei numa pedra para tentar atingi-lo, mas surgiu outro agente sem eu contar. Deu-me uma bastonada que me abriu a testa. Muitas vezes se pergunta: Onde é que tu estavas no 25 de Abril? Eu costumo responder que estava a levar porrada. Nem no dia da liberdade me pouparam.”

Aos 77 anos, Sérgio recorda um dia “muito confuso”, com algumas montras e cabines telefónicas partidas na Avenida dos Aliados. Ele despertara para o que se estava a passar de manhã quando, em casa, recebeu um telefonema da mulher, que trabalhava na cooperativa livreira Unicepe. “Disse-me que ligasse o rádio e assim fiz. Comecei a ouvir a Luísa Basto a cantar músicas que eu só ouvia nas rádios clandestinas.”

Não descansou então enquanto não saiu para a rua tentar perceber o que se passava junto dos militares posicionados na Ponte D. Luís e depois junto ao Aeroporto de Pedras Rubras (hoje, Francisco Sá Carneiro).

Sérgio guarda poucas fotos do dia 25 de Abril. “Não estava preocupado em tirar fotografias. Eu era ativista, mais do que fotógrafo. Naquele momento, queria que o fascismo caísse e não voltasse mais. Estava há tanto tempo à espera da liberdade que queria era vive-la com as pessoas.”

No dia 26 de Abril, muitos populares saudaram os militares em frente ao quartel general da Praça da República. Sérgio Valente vai em ombros, de braços erguidos e penso na testa SÉRGIO VALENTE

Consolidada a revolução, a festa na Invicta fez-se uma semana depois, com mais de 300 mil pessoas — “sem exagero”, diz o fotógrafo —, apinhados nos Aliados a celebrar o primeiro 1º de Maio em liberdade.

A ocorrência de um golpe antirregime não era uma surpresa absoluta para ele, que vinha contabilizando alguns indícios de que algo poderia estar para acontecer. Dias antes da revolução, no Grupo dos Modestos — uma companhia de teatro onde despontavam atores como Júlio Cardoso e Estrela Novais —, um amigo ligado ao Partido Comunista deixara-o desconfiado. Ao despedirem-se, aconselhou a que evitassem encontrar-se nos dias seguintes. Sérgio foi para casa a matutar no assunto.

Não havia muito tempo, num jantar de homenagem a Óscar Lopes — opositor ao Estado Novo que viria a dirigir a Faculdade de Letras do Porto entre 1974 e 1976 —, tinha havido intervenções sobre o regresso dos exilados ao país, incluindo de Álvaro Cunhal. “Quando ouvi aquele nome até olhei para o lado. Algo não estava bem. Era quase impossível falar-se de Álvaro Cunhal. Devia estar para acontecer alguma coisa…”

Quando estalou o 25 de Abril, Sérgio já levava metade da sua vida dedicada à militância antirregime. Desde 1964, estava oficialmente ligado ao PCP. Toda essa experiência permitia-lhe constatar que, no início dos anos 1970, Portugal não era o mesmo país resignado e obediente de décadas anteriores.

Entre 4 e 8 de abril de 1973, em Aveiro, o 3º Congresso da Oposição Democrática já dera alguns sinais de que o povo perdera o medo. “Por tudo o que ali foi dito, pressentimos que algo estava para acontecer.” O portuense assistiu a tudo na primeira fila, ora fotografando os trabalhos no interior do Teatro Avenida, ora observando o que se passava nas ruas, com a PSP a cercar a cidade para dificultar a chegada de opositores e, com isso, a gerar um entusiasmo crescente. “Aveiro foi um sinal.”

No Teatro Avenida, quem intervém é Álvaro Seiça Neves, um destacado antifascista aveirense. Sentada, Maria Barroso observa-o SÉRGIO VALENTE

Sérgio Valente ganhava a vida a tirar fotografias em eventos sociais. Chegara ao meio pela mão de um tio, fotógrafo, que assim o resgatou da vida na construção civil. “A minha entrega à luta era de tal ordem que, muitas vezes, em momentos cruciais, esquecia a fotografia. Eu era mais ativista do que fotógrafo”, admite. “Havia momentos em que eram necessárias pessoas com alguma coragem…”No Portugal de Salazar, quatro pessoas a conversar na rua podia ser considerado um ajuntamento. Para quem militava na clandestinidade, o 1º de Maio era sempre aproveitado para ações de insubordinação. “As células sabiam que haveria alguém que, em determinada hora e local, iria interromper o trânsito e acenar uma bandeira. Não está a ver o Sérgio Valente a fazer reportagem com a máquina fotográfica numa situação dessas…”

O batismo com Humberto Delgado

Sérgio teve os seus primeiros contactos com a oposição ao regime aos 18 anos, através de um grupo de jovens afetos ao PCP que parava no café Estrela d’Ouro, na Rua da Fábrica. Dois anos antes, o Porto vivera um episódio histórico que lhe confirmou de que lado desta luta ele queria estar.

A 14 de maio de 1958, Humberto Delgado, rosto maior da oposição a Salazar, chegou à Estação de São Bento e foi recebido por uma multidão estimada em 200 mil pessoas. “Foi o meu batismo”, recorda. “Muita polícia, a GNR a cavalo, muita bastonada. Perguntei quem era e disseram-me que era um general que se opunha ao Salazar. Nunca mais o larguei. Entrei de costas no Coliseu [onde o “general sem medo”, que se candidatava às presidenciais, fez um comício] e aos empurrões. Foi o meu despertar. A partir daí nunca mais parei.”

A sua coragem fe-lo dar nas vistas nos meandros da clandestinidade. A seu favor, tinha também um certo feitio rebelde e uma revolta interior que o acompanhava desde tenra idade quando vivia na Foz Velha, numa casa sem quartos onde chegaram a viver dez pessoas: os pais, três irmãos, duas irmãs e um casal de primos.

Nos calabouços da PIDE

A sua entrega à luta colocou-o sob os holofotes da PIDE (DGS a partir de 1969). Por três vezes — 1969, 1971 e 1973 — foi parar aos calabouços, na Rua do Heroismo, um edifício que hoje alberga o Museu Militar do Porto. “Quando eu passava diante daquele prédio tenebroso, tentava imaginar o que eles faziam lá dentro. Lia muita coisa sobre as torturas, as humilhações e pensava: ‘E se um dia eu caio aqui?’ Criava-me arrepios. Até ao dia em que isso aconteceu mesmo. Dei comigo a pensar: ‘Estou cá dentro. O que é que me vão fazer?’”

Retratos de Sérgio Valente feitos pela PIDE a 2 de maio de 1969, quando foi preso pela primeira vez SÉRGIO VALENTE

Da primeira vez que foi preso, preparava-se para participar na manifestação proibida do 1º de Maio de 1969, na Avenida dos Aliados. “Junto à Igreja dos Congregados, havia um batalhão de polícias pronto a avançar. Um deles pegou no cacetete e as pessoas começaram a atropelar-se umas às outras. Corri atrás dele e mandei-lhe um pontapé no traseiro. Nunca mais me largou.” Sérgio acabou encurralado e apanhou uma bastonada na cabeça. O ferimento caria visível nas retratos que lhe tiraram na PIDE, para onde foi levado e cou preso cerca de uma semana.

Da segunda vez, em 1971, foi tudo muito mais doloroso. “Foi uma prisão programada e premeditada. E foi muito violenta. Fizeram de tudo para me provocar. Maltrataram-me, aplicaram-me a tortura do sono, bateram-me até quase me matarem, levei socos na garganta. Vi a morte à minha frente.”

Sérgio foi preso na sequência de uma longa noite de trabalho, no seu estúdio de fotografia, num segundo andar da Rua de Entreparedes. Era ali que pernoitava com a mulher e duas crianças sempre que o trabalho se prolongava. Na noite de 22 de julho de 1971, tinha estado a tratar de fotos tiradas a turistas numas caves do Vinho do Porto.

Na manhã seguinte, a PIDE intercetou-o na rua. “Queriam revistar o estúdio. Procuravam material subversivo e também uns cartões relacionados com uma excursão que um grupo planeava a Peniche. A ideia era cantarmos canções de intervenção junto à prisão para que os presos soubessem que a luta continuava cá fora.”

Com os PIDEs dentro do estúdio, o casal Valente foi puxando da criatividade para despista-los e livrarem-se de material que os pudesse incriminar. O emblema do 50º aniversário do PCP dentro da carteira de Laura, também ela uma combatente antifascista, ligada ao Movimento Democrático de Mulheres. O envelope com jornais proibidos endereçado a RAF (“Rafael” era o pseudónimo de Sérgio). Negativos e fotografias incómodas, como as de José Dias Coelho e Catarina Eufémia, assassinados pela PIDE e pela GNR, respetivamente.

Laura Valente discursa no Coliseu do Porto, a 31 de janeiro de 1974, no âmbito de uma iniciativa comemorativa da revolta naquele dia em 1891 SÉRGIO VALENTE

Do estúdio, onde nada de relevante encontraram, os agentes quiseram inspecionar a casa onde viviam. Ali, Sérgio e Laura seriam denunciados por “uns papeis encontrados no meio da roupa”. Foram levados para interrogatório, mas só ela regressaria a casa, não sem antes protestar alto e bom som contra a detenção do marido. Viria a ser julgada e “condenada a seis dias de multa a 30$00 diários de indemnização à DGS”.

O caso foi noticiado a 18 de dezembro de 1971, no “Diário de Lisboa”, com o título “Senhora condenada por injúrias à DGS”. Para a pena contribuiu também o comportamento de Laura durante uma visita posterior ao marido, acompanhada por uns parentes. “Eles entraram, ela não, porque, como lhe disseram, estava proibida de o fazer durante trinta dias já que tivera mau comportamento da primeira vez que ali estivera”, escreve o jornal. “A ré, irritada, teria proferido palavras injuriosas para a corporação policial, quando a fecharam numa sala, tendo quebrado os vidros da porta. Um agente tentou faze-la sair o que conseguiu após grande esforço.”

Retratos de Laura Valente feitos pela PIDE, em 1971 SÉRGIO VALENTE

Da segunda vez, Sérgio ficaria preso cerca de 20 dias. Inicialmente, não conseguia dormir, atormentado com o que lhe podia acontecer. “Lembrava-me muito do que se dizia no partido: ‘Quanto menos soubermos, melhor’. Mas eu sabia muita coisa…”

Depois continuou sem dormir, mas por outras razões. Tiraram-lhe a cama da cela e começaram a aplicar-lhe a tortura do sono. Sem nada revelar, foi resistindo ao cansaço, mas não o libertavam. Em 1960, Sérgio fora mandado embora da tropa após simular ataques de epilepsia. “Eu não tinha medo da guerra, até porque a minha especialidade era das melhores que havia na tropa, Foto-Cine. Era uma questão ideológica, aquilo não era nosso…”

Onze anos depois, na prisão, tentou voltar a encenar, desta feita fingindo ter alucinações. Conseguiu voltar a ter cama na cela. “Sobrevivi. E portei-me bem, que era o que eu queria: não falei. Saí de consciência tranquila. Posso ter abandonado os aparelhos partidários, mas não posso ser acusado de alguma vez ter traído alguém.”

A terceira detenção, assinada pelo inspetor da PIDE Rosa Casaco, aconteceu em 1973, de 30 de abril para 1 de maio. “Acharam que eu podia ser um dos cabecilhas de uma possível manifestação. Pela primeira vez estive numa cela coletiva, éramos uns oito ou nove, quase todos conhecidos uns dos outros.”

Muitos desses rostos estão homenageados nas fotos do portuense, que já deram origem a dois livros: “Sérgio Valente — Um fotógrafo na Oposição” (Edições Afrontamento, 2010) e “Sérgio Valente — Um fotógrafo na Revolução” (Edições Afrontamento, 2015). A partir desta quinta-feira, podem também ser apreciadas no átrio da Câmara Municipal do Porto, numa mostra intitulada “A Substância do Tempo — 25 fotografias de Sérgio Valente, 45 anos depois do 25 de Abril”.

Exposta estará também a velha Rolleicord, a sua “arma de guerra” com que tantas vezes registou como o Norte resistiu a Salazar. E também de como a revolução se fez de homens e mulheres valentes.

Manifestação de apoio ao Movimento das Forças Armadas, a 26 de abril de 1974, em frente ao quartel general na Praça da República. Sérgio Valente tirou a foto na varanda do quartel SÉRGIO VALENTE

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui

Uma surpresa para os jornalistas de fora

A imprensa internacional foi incapaz de antecipar o 25 de Abril. Houve mesmo quem saísse de Portugal nas vésperas do golpe militar… Mas passada a estranheza, a atração de correspondentes e enviados estrangeiros pela Revolução dos Cravos foi incondicional

Capa da revista “Time”, de 6 de maio de 1974

A imprensa internacional foi incapaz de antecipar o 25 de Abril. Houve mesmo quem saísse de Portugal nas vésperas do golpe militar… Mas passada a estranheza, a atração de correspondentes e enviados estrangeiros pela Revolução dos Cravos foi incondicional

A revolução portuguesa apanhou o mundo de surpresa e Werner Herzog em contrapé. O jornalista suíço, com escritório em Madrid, viera até Portugal por alturas do levantamento das Caldas da Rainha de 16 de março. Convencido de que nada aconteceria a curto prazo, regressou à capital espanhola a 22 de abril, ignorando alertas de que algo poderia estar iminente… “Tinha falado com um militar que me disse para esperar algum tempo e não voltar já para Madrid. Chamava-se António Reis. Eu pensava que ele era um romântico sonhador e não acreditei. Quando ouvi as notícias no dia 25 percebi que ele sabia de tudo”, recorda. “Talvez tenha sido melhor assim… Teria sido terrível eu saber o que ia acontecer sem poder dizer a ninguém.”

Werner apanhou o último comboio do dia 25 para Portugal, onde chegou na manhã de 26. Para poupar dinheiro — trabalhava em regime freelance —, hospedou-se em pensões baratas na Avenida da Liberdade onde, em condições precárias, ia dando resposta às crescentes solicitações da imprensa estrangeira. Chegou a trabalhar simultaneamente para dois jornais suíços (“Tagesanzeiger” e “Basler Zeitung”) e dois alemães (“Frankfurter Rundschau” e “Stuttgarter Zeitung”).

A Revolução dos Cravos colocara Portugal na primeira página dos jornais como nenhum acontecimento antes. Nos dias seguintes, reabertas as fronteiras, afluíram a Lisboa repórteres de todo o mundo. “Chegaram bastantes, mas poucos estavam preparados para entender o que se passava”, diz. “Lembro-me de um jornalista da televisão suíça que tentava seguir os acontecimentos e saber quem era quem. Fomos para a Estação de Santa Apolónia, onde uma multidão ouvia um discurso. ‘Quem é aquele? Quem é aquele?’, perguntou-me. ‘Chama-se Mário Soares. E acaba de regressar do exílio em Paris’…”

Visto do exterior, o Portugal de inícios de 1974 denotava nervosismo. O golpe frustrado das Caldas era a prova de que algo mexia, mas a possibilidade de uma revolução estava longe das expectativas. “O ‘Le Monde’ não atribuiu grande importância ao 16 de março”, recorda José Rebelo, exilado em Paris e então membro da administração do diário francês, do qual viria a ser correspondente em Portugal entre 1975 e 1991. “Pensou que era uma escaramuça entre militares. De tal forma que enviou a Portugal um jovem estagiário, o Dominique Pouchin.”

Como era vespertino, o “Le Monde” noticiou o 25 de Abril na edição que saiu para as bancas à uma da tarde. Os tanques nas ruas e a ausência de violência — “o carácter romântico da revolução”, como diz José Rebelo — foi crucial para o sucesso mediático dos acontecimentos. “Não sei se houve outro facto na história do ‘Le Monde’ que tenha justificado um tão grande número de artigos sobre Portugal…” O jornal chegou a ter enviados especiais em Lisboa, Porto, Açores e em Angola.

Quartéis-generais nos hotéis

Em Lisboa, os jornalistas estrangeiros tinham tendência a agrupar-se por hotéis. “Os franceses ficavam no Mundial, os ingleses iam mais para o Tivoli e os americanos para o Sheraton”, recorda. “Depois constituíamos autênticas redações. No sétimo andar do Hotel Mundial, havia jornalistas do ‘Le Monde’, do ‘Nouvel Observateur’, de revistas de direita, como ‘Le Point’ ou ‘L’Express’, ou do ‘L’Humanité’, órgão do Partido Comunista francês. Trabalhávamos ali, jantávamos todos juntos, partilhávamos o que víamos e rentabilizávamos ao máximo os contactos uns dos outros.”

Entre a legião de enviados, José Rebelo recorda um da agência Nova China: “Vinha com cozinheiro e tudo.”  O facto de Portugal pertencer à NATO e, sobretudo, o futuro de Angola atraía especialmente jornalistas do Leste.

Emma Gilbert recorda o dia em que foi recrutada para ir traduzir para inglês o anúncio de formação do I Governo Provisório, feito por Sanches Osório, porta-voz da Junta de Salvação Nacional. “Eu não quero exagerar, mas havia, à vontade, uns 500 jornalistas” naquela sala do Palácio Foz, sede do Secretariado Nacional de Informação.

Nascida em Portugal e de nacionalidade dinamarquesa, Emma era fluente em inglês. Conhecedora da realidade local, foi logo contratada pela agência sul-africana Argus, a primeira etapa de uma carreira no jornalismo que haveria de torná-la, a partir de janeiro de 1975, correspondente em Portugal da Associated Press, que funcionava num escritório apertado da Praça da Alegria, por cima do Maxime. O laboratório fotográfico era a casa de banho.

Nos dias agitados após a revolução, Emma trabalhou também como guia-intérprete de repórteres que chegavam, alguns acabados de cobrir a guerra no Vietname, como o fotógrafo alemão Horst Faas, premiado com um Pulitzer. “Um dia, fui com um jornalista americano, que também tinha estado no Vietname, para a zona do RALIS. Os tropas estavam armados com G3 e o povo gritava: ‘Armas para o povo! Armas para o povo!’ Nós estávamos na frente da manifestação. A dada altura, ao ouvir-nos falar inglês, alguém gritou: ‘Está aqui a CIA!’ Ficámos um pouco aflitos. Comecei a pensar como é que podíamos sair dali. Ele disse: ‘É assim: agachas-te e começas a recuar de costas por baixo dos braços deles.’ E assim saímos dali. Eram épocas de grande desafio.”

Cara cansada de tanto sorrir

Quarenta anos depois, Sandy Sloop não tem dúvidas que o 25 de abril de 1974 foi, “talvez, o dia mais importante” da sua vida. Este norte-americano nascido no Brasil — que, entre 1977 e 1990, foi o correspondente em Lisboa da agência United Press International — chegara a Portugal em 1971 “a caminho de África”, o seu principal interesse, mas também com o objetivo de estudar português e “descobrir o que era a ditadura”.

Soube da revolução de madrugada e correu logo para a rua, “para participar na história que se fazia”. “Escrevi um postal para a família para ter pretexto para andar na rua.” Percorreu Lisboa de lambreta: tentou, sem sucesso, chegar ao aeroporto; no Rossio, viu uma esquadra da NATO partir ao longe e assistiu à passagem da coluna de Salgueiro Maia a caminho do Quartel do Carmo — saudada por cravos vermelhos e flores de todos os tipos. No Largo do Carmo, Sandy assistiu aos acontecimentos em cima de um chaimite. Quando voltou para casa, já de madrugada, “sentia os músculos da cara cansados de tanto sorrir”.

Pouco depois da revolução, foi contactado pela embaixada dos EUA e aceitou acompanhar, durante uma semana, dois jornalistas norte-americanos (do “Baltimore Sun” e do “Chicago Tribune”) e um australiano (do “The Age”, de Melbourne), profissionais batidos, com experiência de histórias quentes, como parecia ser o caso “pelo que significava para Portugal, mas também em termos africanos.”

“No nosso primeiro almoço, levei-os ao Bonjardim, o rei dos frangos, junto ao Rossio. Um deles perguntou-me: ‘Você que mora cá, como é que reage a isto tudo?’. Eu disse: ‘Bem, para mim, isto é uma espécie de orgasmo coletivo’. Ele comentou: ‘É uma expressão muito forte, mas eu trabalho para um jornal de família… Tenho a impressão que não vou poder citá-lo’.”

Sandy refere que os três eram “praticamente analfabetos” em relação a Portugal. Durante décadas, além do caso do “Santa Maria” e do início das guerras em África, muito pouco tinha acontecido no país que tivesse chamado a atenção da imprensa estrangeira. “Havia muito poucos jornalistas estrangeiros acreditados em Lisboa antes de 25 de abril. Estariam provavelmente em Madrid ou em Paris e ficavam com um olho cá.”

Nos EUA, na redação da “Time”, julgava-se que Portugal era Espanha. E mesmo entre nuestros hermanos havia uma grande ignorância sobre a situação do lado de cá da fronteira

Chegados a Portugal na década de 60, a norte-americana Martha de la Cal e o marido, o fotógrafo inglês Peter Collins, eram exceção. Pela mão de Martha, a revolução portuguesa chegou à revista “Time”, com uma ilustração de Spínola a fazer a capa da edição de 6 de maio de 1974. Falecida em 2011, a jornalista recordou, numa entrevista de 2008, o desconhecimento do mundo em relação a Portugal. “Eu mandava muitíssimo material para a redação central em Nova Iorque, onde havia jornalistas muito bem pagos só para escrever. Depois a ‘Time’ enviava-me o que eles escreviam para eu fazer correções. A primeira coisa que me mandaram no dia 25 de abril dizia: ‘Desde Fernando e Isabel de Espanha que não…’ Eu mandei de volta a dizer: ‘Não! Estamos em Portugal! Não é Espanha!’ Sabia-se muito pouco sobre o país.”

Mesmo em Espanha, Portugal era uma realidade desconhecida. “Conhecíamos Fátima, Eusébio, Amália e o vinho do Porto. Ninguém pensava ir a Portugal”, recorda Ramón Font, o catalão que viria a ser correspondente em Lisboa da agência EFE, da Radio Nacional de Espanha e da TVE. “Eu conhecia o livro de Spínola (‘Portugal e o Futuro’) e, porque estava politizado, sabia quem era Mário Soares e Álvaro Cunhal.”

Excursão política

A trabalhar numa rádio de Barcelona, fez-se à estrada decidido a “saber o que era a liberdade. Com um grupo de amigos do jornalismo, do cinema, do ensino, fizemos uma excursão política a Portugal, durante uma semana”. Marcou-o muito a visita ao jornal “República”, onde se impressionou com a figura de Raul Rego. “Eu não sei quanto tempo aqueles jornalistas dedicavam ao seu trabalho, porque passavam horas a receber colegas estrangeiros e nunca diziam ‘não posso’. Estavam sempre disponíveis para explicar as coisas seriamente.”

Ramón Font diz que o golpe das Caldas colocara-o “de prevenção”. Ainda assim, não deixou de se sentir surpreendido quando soube da revolução. “O 25 de Abril foi uma surpresa para toda a gente, sobretudo pelo seu estilo e ausência de violência. Foi o que me fascinou. Lembro-me de uma conversa, muitos anos depois, com o dono do restaurante Tavares em que lhe disse: ‘Deixe de se queixar! Os tanques passaram em frente a este restaurante, um símbolo do antigamente, e ninguém partiu os vidros’. Ele disse: ‘É verdade, desculpe!’”

Artigo publicado na edição especial “25 Abril 40 anos”, Vol. 1, distribuído com o “Expresso, de 12 de Abril de 2014

Egito a ferro e fogo

Mohamed Morsi vai discursar hoje ao país para tentar sossegar os ânimos. Confrontos junto ao palácio presidencial, entre apoiantes e opositores, fizeram ontem seis mortos

Pelo menos seis pessoas morreram e mais de 700 ficaram feridas nos confrontos que se iniciaram ontem e estenderam-se pela madrugada, junto ao palácio presidencial, no Cairo. Segundo a Al-Jazeera, pelo menos cinco tanques do Exército saíram à rua e estão posicionados junto ao palácio.

Os confrontos opõem apoiantes da Irmandade Mulçulmana (e do Presidente Mohamed Morsi), e opositores ao regime, que exigem a anulação do referendo à nova Constituição previsto para 15 de dezembro e a revogação do decreto constitucional de 22 de novembro que alarga os poderes do Presidente.

“Foi o dia mais triste que já vi no Egito”, tweetou Sherine Tadros, uma das repórteres da Al-Jazeera em reportagem no Cairo.

Segundo a estação pública egípcia Nile TV, Mohamed Morsi vai hoje discursar ao país. Na terça-feira, Morsi foi evacuado do palácio quando um grupo de manifestantes tentou invadir o edifício. A polícia anti-motim interveio e dispersou-os com gás-lacrimogéneo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de dezembro de 2012. Pode ser consultado aqui

Manifestantes fazem “último aviso” ao Presidente do Egito

Opositores a Mohamed Morsi realizaram hoje a manifestação do “Último aviso” junto ao palácio do Presidente. A polícia respondeu com gás lacrimogéneo

Milhares de pessoas concentraram-se hoje junto ao palácio presidencial do Cairo, na área de Heliopolis, num protesto anti-governamental a que deram o nome de “Último Aviso”. Alguns manifestantes tentaram quebrar o cordão de segurança em redor do edifício, tendo a polícia respondido com gás lacrimogéneo.

“Duas fontes citadas pela Reuters, mas não identificadas, garantem que o Presidente abandonou o palácio durante os protestos.”

Os manifestantes pediram a anulação do decreto constitucional de 22 de novembro, com o qual o Presidente Mohamed Morsi alargou substancialmente os seus poderes. Protestaram também contra o referendo à nova Constituição, previsto para o próximo dia 15, dizendo que o texto foi aprovado de forma apressada.

“O povo quer o fim do regime”, gritaram os manifestantes, socorrendo-se do mesmo slogan com que em fevereiro de 2011 contribuíram para o derrube de Hosni Mubarak. O Egito vive a pior crise política desde o início da revolução.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de dezembro de 2012. Pode ser consultado aqui