A revolução na Líbia começou a 17 de fevereiro de 2011. Um ano depois, as milícias querem ser recompensadas pelo papel que tiveram no derrube de Muammar Kadhafi. Um líbio comenta a situação a partir de Misrata

Um dos primeiros julgamentos da era da “nova Líbia”, realizado num tribunal de Bengazi, foi interrompido na passada quarta-feira de forma insólita. No banco dos réus, deveriam sentar-se cerca de 50 pessoas, suspeitas de ligações ao regime de Muammar Kadhafi e acusadas de “traição à revolução”. Porém, o juíz viu-se forçado a adiar a sessão.
Os acusados estavam em poder de uma milícia — os Mártires 17 de fevereiro — que recusou transportá-los ao tribunal. Um ano após o início da revolução, a Líbia parece estar nas mãos das milícias. Mustafa Abdul-Jalil, o líder do Conselho Nacional de Transição (CNT) — que herdou o poder de Kadhafi — afirmou na quarta-feira, em entrevista à Al-Jazeera: “Após a libertação do país, as fraquezas do CNT vieram à tona.”
Milhão e meio de armas nas ruas
Abdul-Jalil tem sido criticado por não conseguir impor a autoridade do CNT. Na entrevista à Al-Jazeera, culpou também os rebeldes por recusarem voltar à vida civil ou integrarem as forças de segurança. “Porque não regressam os funcionários aos seus empregos? Porque não voltam os polícias ao trabalho?”, disse. A polícia desapareceu durante a revolução e apenas metade dos agentes regressaram depois ao serviço.
Derrubado o regime de Kadhafi, após uma guerra civil de oito meses, que provocou cerca de 30 mil mortos, na Líbia reinam hoje as milícias. Estima-se que entre 100 e 300, conforme as fontes, organizadas por cidades ou bairros.
Ao todo, haverá mais de 125 mil homens armados. Há quem fale em 1,5 milhões de armas distribuídas pelas ruas. Recolher essas armas e integrar socialmente os combatentes é, atualmente, o grande desafio do CNT.
Perigos do lado de lá da fronteira
Para as milícias, o facto de terem feito a guerra contra Kadhafi dá-lhes direito a reclamar dividendos. Todas querem o seu quinhão pelo fim de Kadhafi. Em Tripoli, por exemplo, há duas grandes fações. De um lado, a legião Misrata Sadoon Swayhil que alega ter contribuído decisivamente para a captura e execução de Kadhafi. Por outro, as cinco brigadas Zintani, que libertaram a parte ocidental da capital e ainda ocupam o aeroporto.
Porém, fazer coincidir o nascimento de milícias na Líbia com a revolução é um erro. Recorde-se que a segurança do regime de Kadhafi assentava em forças paramilitares, a mais famosa das quais a Brigada Khamis, comandada pelo seu filho mais novo, Khamis Kadhafi, assassinado a 29 de agosto do ano passado.
Num telefonema para a estação Al-Arabiya, Saadi disse que tem contactos regulares com líbios descontentes com as autoridades do CNT. De imediato, a Líbia pediu a sua extradição.
As conquistas da revolução
Oficialmente, a revolução líbia começou a 17 de fevereiro de 2011, a NATO começou a bombardear a 19 de março, Kadhafi foi executado a 23 de agosto e Tripoli capitulou pouco depois. O atual governo interino está em funções desde 22 de novembro. Muito se questiona se não é prematuro atribuir fracassos ao CNT. O próximo passo no calendário político é a realização de eleições para a assembleia constituinte, a 21 de junho, que irá elaborar uma Constituição.
“A Líbia não precisa só de pontes e estradas, precisa de construir todo um sistema político”, disse na quarta-feira, em Lisboa, Rafik Abdessalem, ministro dos Negócios Estrangeiros da Tunísia, durante uma palestra na Universidade Católica.
Por ter sido pioneira, a Tunísia é uma espécie de “farol” das chamadas Primaveras Árabes. Simultaneamente, uma observadora atenta de tudo o que se passa nesse contexto. “A Líbia pode precisar de tempo, mas estou otimista. Tem uma sociedade homogénea sem divisões étnicas ou religiosas”, disse Abdessalem.
BASSIT, LÍBIO, 31 ANOS
“Há armas por todo o lado. Alguns apoiantes do regime anterior também têm armas. Se nós ficarmos sem armas, dá para imaginar o que acontecerá a seguir… As coisas ainda estão instáveis, ainda assim estão mais seguras. Em Misrata, a situação está melhor, em termos políticos e ao nível das condições de vida.”
“Saadi, o filho de Kadhafi, continua vivo, no Niger. Quase de certeza que tem consigo uma grande quantidade de dinheiro e ouro. Milhões e milhões. Por isso, ele pode organizar um exército.”
“Em Kufra, uma cidade no sudeste da Líbia, os rebeldes apanharam 80 jipes Toyota com mercenários, a maioria provenientes do Chade. Nalguns carros, foram encontrados dólares. Os rebeldes de Kufra são muito fortes. Chamam-lhes leões do deserto.”
“Há muitas brigadas em Misrata. Há um comité para os rebeldes que superintende todas as brigadas na Líbia.”
“Há alguns dias, surgiram oportunidades de emprego e outros privilégios para os rebeldes. Isto vai ajudar a construir uma nova Líbia. A guerra acabou em outubro e, dia após dia, os rebeldes não recebem apoio monetário e tornam-se menos interessados em continuar com esta revolução. Mas precisamente hoje, em Misrata, foram oferecidos empregos com bons salários, emprego na área da segurança.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de fevereiro de 2012. Pode ser consultado aqui
