Arquivo de etiquetas: rohingya

Os barcos da ilusão

Perseguidos em Myanmar ou refugiados no Bangladesh, pagam a traficantes para que os tirem dali

Rezuwan não teve a coragem da irmã. Abandonada pelo marido e com duas filhas a seu cargo, Hatamonesa pagou 100 mil tacas bengalis (€900) a um traficante para que a metesse num barco e a resgatasse da vida difícil no campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

A 25 de novembro de 2022, Hatamonesa e uma filha de cinco anos estavam entre os cerca de 180 ocupantes de uma embarcação, maioritariamente rohingyas, que zarpou da zona de Teknaf. Para trás deixou a filha mais velha, entregue ao cuidado de familiares que não ousaram seguir com ela.

Foi o caso do irmão Rezuwan, de 25 anos, casado e pai de uma bebé de um ano. “É muito perigoso. Aqueles barcos são impróprios para navegar e os traficantes tentam meter mais e mais pessoas lá dentro para ganharem mais dinheiro”, conta ao Expresso. “É como jogar à moeda: se tivermos sorte, sobrevivemos, se não tivermos…”

Do campo foi acompanhando a odisseia da irmã. “Dias após terem partido, o homem do barco disse ao traficante, através de um telefone satélite, que o motor tinha parado. De início não nos disseram nada e tentaram resolver o problema. Mas quando a situação se descontrolou, falaram connosco para pedirmos ajuda à comunidade internacional. Para ser sincero, não acreditei neles. Nem imaginava que tivessem um telefone satélite. Pensei que era apenas uma artimanha para extorquirem mais dinheiro às famílias.” Acabou por chegar à fala com o barqueiro e inteirou-se da real situação do barco.

Um mês à deriva

O plano da irmã era chegar à Indonésia e depois seguir para a Malásia ou outra “terra humanitária, onde a filha pudesse ir à escola e depois à universidade e ela própria tivesse uma vida diferente”. Assim que tivesse condições, tentaria que a filha mais velha se lhes juntasse.

Tudo foi posto em causa depois de o barco ter ficado à deriva entre a baía de Bengala e o mar de Andamão. A angústia durou mais de um mês, sem que nenhum país à volta respondesse à urgência e abrisse as fronteiras.

JAIME FIGUEIREDO

Em águas tailandesas, alguns atiraram-se à água na esperança de serem resgatados por pescadores ou pela Marinha. Depois, a corrente levou o barco para águas indianas, onde, por fim, desembarcaram, a 26 de dezembro, na zona de Aceh, na ponta norte da ilha de Samatra. Não sobreviveram à odisseia 26 pessoas. Desde então, Rezuwan vai tendo notícias da irmã de longe a longe, através de telefonemas de três minutos facilitados pela ONU.

O desespero em que vive esta minoria muçulmana — que no seu país, Myanmar, é perseguida e no Bangladesh, para onde fugiu, vive em campos de refugiados — leva os rohingyas a recorrerem aos barcos como tentativa de fuga para uma vida mais segura e digna.

“Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por nenhum país. Vou para onde?”

Em 2022, segundo a ONU, 3545 rohingyas lançaram-se ao mar em 39 embarcações — mais 360% do que no ano anterior. Desembarcaram 3040, morreram ou desapareceram 348 e, no final do ano, havia ainda 157 no mar. Quase 45% dos embarcados eram mulheres e crianças.

Este fenómeno encerra uma ironia: 32% dos barcos foram intercetados em Myanmar (e os ocupantes presos, incluindo crianças). A Malásia acolheu 25%, a Indonésia 24%, 10% dos barcos voltaram ao Bangladesh, 5% foram para a Tailândia e 3% para o Sri Lanka.

Um povo sem cidadania

A perspetiva de terem futuro nestes países é uma ilusão. Sem reconhecimento legal, este povo não tem passaporte que lhe permita emigrar. “Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por estes países. Aliás, por nenhum. Vou para onde, então?”

Rezuwan chegou ao campo em 2017, fugido à repressão ordenada pela junta militar contra o seu povo. Em duas semanas, cerca de 700 mil rohingyas cruzaram a fronteira com o Bangladesh, triplicando a população de refugiados na região de Cox’s Bazar (Sueste). Até lá, foram três dias a pé, com seis familiares, incluindo a mãe e um irmão com deficiência. Hoje vivem todos numa estrutura coberta por um toldo, com paredes de bambu e chão em cimento.

Passados cinco anos, a situação provisória dos rohingyas é cada vez mais definitiva. “Somos um milhão nos campos, mas só uns cinco mil trabalham para organizações não governamentais a troco de 100 dólares [€94]. Não tenho trabalho profissional. Ganho algum a ajudar jornalistas.”

Muitos rohingyas vão nos barcos tentar arranjar trabalho e tirar as famílias da miséria, fugindo a uma situação cada vez mais explosiva. “Tornámo-nos um fardo para o Bangladesh, a maioria não nos quer aqui muito mais tempo. Não veem avanços a nível do repatriamento. E há falta de interesse pelo nosso problema. Somos muito poucos. Está a fazer-se tarde. O meu avô morreu sem ver a sua identidade reconhecida, o meu pai também.”

Rezuwan acha que não vai escapar ao mesmo fado, mas não se deixa derrotar. Calcorreou os campos durante dois anos e recolheu contos populares rohingyas da boca dos mais velhos. Traduziu-os e publicou o livro “Rohingya Folktales: Stories from Arakan”, garantia de que aquele património sobreviverá ao desaparecimento de sucessivas gerações de contadores de histórias e à inexistência legal do seu povo.

(FOTO Um barco que transportou refugiados rohingyas permanece ancorado no Mar de Andamão depois do desembarque dos ocupantes numa praia em Aceh, na Indonésia, a 8 de janeiro de 2023 KENZIE EAGAN / UNHCR)

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Corrida contra o tempo para proteger os rohingya do coronavírus

Ainda não há casos de covid-19 dentro dos campos de refugiados rohingya no Bangladesh, mas é questão de tempo. Manuel Pereira, português que coordena o trabalho humanitário da Organização Internacional para as Migrações nos campos, explica ao Expresso o que está a ser feito para tentar aguentar o embate

Para um povo habituado a viver sob o signo do drama, como são os rohingya, a pandemia de covid-19 é apenas mais uma de muitas adversidades. O novo coronavírus ainda não entrou nos campos de refugiados desta minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), mas está cada vez mais próximo.

No país que os acolhe, o Bangladesh, há 7103 casos confirmados e 153 mortos, e no distrito de Cox’s Bazar, onde estão localizados os campos, os casos positivos (que ainda são apenas 13) aumentam de dia para dia.

“O encerramento de fronteiras e as medidas de confinamento decretadas pelo Governo do Bangladesh contribuíram para atrasar a chegada do coronavírus aos campos”, diz ao Expresso Manuel Pereira, chefe de missão adjunto da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no Bangladesh.

“Além disso, foi reduzida a presença de não-residentes dentro dos campos e está-se a desenvolver programas de sensibilização e distanciamento social para mitigar contactos e possíveis transmissões, até termos melhores condições de resposta médica.”

Cox’s Bazar é o distrito mais ao sul do Bangladesh. A importação de contágios está dependente da evolução do surto no resto do país. “As autoridades estão a limitar os movimentos para o distrito, o que é positivo”, diz o português, de 41 anos, natural de Lisboa. “Cox’s Bazar está isolado, com movimentos condicionados também para refugiados e pessoal humanitário, sobretudo ao nível das entradas e saídas dos campos.”

No Bangladesh, os campos ocupam uma área de cerca de 24 quilómetros quadrados e dão abrigo a 859.161 rohingyas (números de março da OIM). A esmagadora maioria — 708.985 — chegou à região após 25 de agosto de 2017, quando começou, em Myanmar, uma violenta campanha de perseguição à minoria muçulmana. Manuel Pereira alerta que nos campos, “o isolamento social é muito difícil, devido à grande densidade populacional”.

Na semana passada, como 1800 milhões de muçulmanos em todo o mundo, os rohingya começaram a cumprir o Ramadão, o nono mês do calendário islâmico, que obriga à prática do jejum desde o nascer até ao pôr do sol. Diariamente, a provação é quebrada pelo iftar, refeição comunitária que junta muita gente à volta da mesa.

Nos campos, “o iftar é feito em família e em comunidade, em horários diferentes. Como ainda não há casos positivos, existe alguma flexibilidade. Mas tentamos sensibilizar os líderes religiosos para que seja feito o distanciamento social e a celebração decorra sobretudo ao nível da família”.

Quem canta o vírus espanta

Sensibilizar é a palavra de ordem da OIM nos campos rohingya. A organização tem em curso campanhas de promoção de hábitos de higiene destinadas aos refugiados, mas também às populações dos aglomerados envolventes aos campos.

As recomendações são transmitidas porta a porta, em sessões ao ar livre envolvendo pequenos grupos, nas distribuições de ajuda humanitária (comida e bens não alimentares) ou durante as sessões de apoio psicossocial. A Internet, que podia ser um aliado neste contexto, está cortada desde setembro de 2019 por “motivos de segurança”, diz o Governo de Daca.

“A falta de Internet não permite aos refugiados comunicarem a partir de casa ou indiretamente com o pessoal humanitário”, diz Manuel Pereira. “Além disso, limita as ações de sensibilização e pode fomentar a consolidação de boatos que circulem em pequenos núcleos onde as nossas campanhas ainda não tenham chegado.”

Estar desligado na Rede dificulta a partilha de vídeos como este, onde o artista Muhammed Taher, refugiado rohingya, interpreta uma canção da sua autoria, de consciencialização para o coronavírus. O músico é apoiado pelo Centro de Memória Cultural, programa da OIM que compila mais de 600 artefactos, práticas e perfis representativos do património cultural deste povo.

FALTA VÍDEO!!!!

As campanhas de sensibilização da OIM ensinam a lavar as mãos como um profissional, explicam o conceito de distância social, ajudam a identificar os sintomas da doença, orientam as pessoas na procura de cuidados médicos e esclarecem para combater boatos. “Alguns acham que é um inseto que provoca a doença e que pode ser morto com facilidade. Outros pensam que todos os infetados morrem”, diz Manuel Pereira.

O português, formado em Engenharia do Ambiente e que começou a trabalhar para as Nações Unidas em 2006, em Timor-Leste, considera que os rohingya são um povo disciplinado que escuta e tenta acatar os conselhos. “São pessoas muito afáveis e, como é natural, estão muito preocupadas e pedem informação e apoio.”

Nesta ação de formação da OIM, um grupo de homens rohingya aprende a tossir para o braço, no campo de Jadimura, no Bangladesh ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Numa corrida contra o tempo, a OIM — principal prestadora de cuidados de saúde nos campos — está a criar espaços de isolamento para doentes de covid (refugiados ou oriundos das comunidades locais), a dar formação específica sobre a doença a pessoal dos seus 35 centros de saúde, a distribuir equipamento de proteção individual aos profissionais que estão na “linha da frente” e a aumentar o número de locais para ser medida a temperatura do corpo.

“Neste momento, os testes às populações estão centralizados nos serviços de saúde do Governo, uma vez que ainda há poucos”, explica o português. “Reportamos casos suspeitos e até agora, felizmente, não houve nenhum positivo.”

A OIM está também a tentar antecipar o mais possível a necessidade de tratar doentes com alguma gravidade. “Os parceiros humanitários e o Governo do Bangladesh estão a aumentar, a reforçar e a criar estruturas para tratamento de casos graves entre os refugiados. A compra de equipamento, construção de instalações temporárias, formação de pessoal e contratação de outros mais está a ser acelerada. Ajudamos o Governo para podermos ter capacidade de resposta aos casos mais graves sem sobrecarregar em demasia o sistema nacional de saúde. As limitações são muitas, a nível financeiro, logístico e de recursos humanos, mas continuaremos esta batalha para salvar vidas.”

Funcionários da OIM preparam um centro de isolamento para suspeitos de infeção com covid.19, no campo rohyngya de Leda ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES (OIM)

Trabalhar no apoio aos rohingya significa estar em alerta simultâneo a mais do que uma emergência. Neste momento, paralelamente à pandemia de covid-19, os olhos voltam-se também para os céus.

“A primeira época dos ciclones já começou. Nos próximos seis meses, vamos viver um período de potenciais ciclones e de monção, com muita chuva e ventos fortes”, prevê Manuel Pereira. “Esperemos que não se formem ciclones na Baía de Bengala. Se conseguirmos gerir bem a evolução da covid-19, ou mesmo limitar as contaminações dentro dos campos, podemos continuar a operar dentro dos procedimentos de resposta de emergência que aperfeiçoamos nos últimos dois anos. Caso contrário, teremos de fazer adaptações significativas para garantir serviços e proteção para todos.”

(FOTO PRINCIPAL Nesta fila de distribuição de garrafas de gás, num campo de refugiados rohingya de Cox’s Bazar, no Bangladesh, cumpre-se o distanciamento social ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES — OIM)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Primeiro a perseguição, agora as monções e os elefantes: o drama sem fim dos rohingya

O pesadelo dos rohingya parece não ter fim. Refugiados em campos do Bangladesh, em áreas onde outrora se erguiam densas florestas, enfrentam agora a época das monções. Recolhidos em “casas” feitas de plástico e bambu, (sobre)vivem vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações. E também à visita, inesperada e por vezes mortífera, de elefantes que ali viviam antes

Cerca de 25 mil rohingya correm reais riscos de vida nos campos do Bangladesh, onde pensariam estar a salvo. Para que a tragédia aconteça, basta apenas que as chuvas das monções — o fenómeno natural que recentemente encurralou 12 jovens futebolistas e o seu treinador numa gruta tailandesa — se intensifiquem. Com grande probabilidade, as frágeis tendas de plástico e bambu onde os refugiados estão instalados deslizarão terra abaixo, levando consigo quem está próximo a caminho de uma morte certa — como aconteceu a 25 de julho, com cinco crianças.

“As monções não são uma possibilidade, são uma certeza. E aquela zona tem três vezes mais pluviosidade do que o resto do Bangladesh, que, já de si, é um país muito suscetível a monções”, diz ao Expresso o lisboeta Pedro Matos, de 44 anos, acabado de regressar dos campos, após uma missão de cinco meses com o Programa Alimentar Mundial (PAM), das Nações Unidas. “A grande dúvida é saber como reagirá a zona onde estão os rohingya” assim que as chuvas caírem com maior intensidade.

Entalado entre a Índia e Myanmar, o Bangladesh tem um histórico que pode ajudar a antecipar o efeito das monções no território, mas a área dos campos tem uma especificidade… “A zona onde os rohingya estão era um parque nacional, uma floresta densa, que agora está completamente despida.” As árvores, que ajudavam a prevenir deslizamentos de terras, tiveram de ser arrancadas em nome de uma urgência maior. “A preocupação principal, nos primeiros tempos, foi arranjar sítio para as pessoas, que atravessavam a fronteira ao ritmo de milhares por dia. As monções ainda estavam à distância”, diz Pedro Matos. “Como tudo foi completamente arrasado — até as raízes foram arrancadas, para serem usadas como lenha para as pessoas cozinharem —, toda aquela zona, meio arenosa e argilosa, ficou muito vulnerável aos efeitos das monções.”

Duas emergências numa só

No início deste ano, quando o fluxo de pessoas começou a acalmar, outros desafios ganharam visibilidade. Entre os cerca de 900 mil rohingya que vivem nos campos — uns 200 mil já ali estão há anos, na sequência de vagas de repressão anteriores —, “entre 100 e 200 mil estavam instalados em declives e vales, vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações”, explica o funcionário do PAM. “E, desses, 25 mil corriam grande risco de vida.”

Iniciou-se então a segunda fase da emergência: a preparação para a época das monções e também dos ciclones, fenómenos que requerem respostas diferentes. “Os ciclones são ventos fortes, as monções são chuvas fortes. O último ciclone que atingiu aquela zona teve ventos entre os 100 e os 300 quilómetros por hora. Se um ciclone entrar por aqueles campos, nenhuma cabana resistirá. Felizmente, a época dos ciclones passou sem nenhum por perto.”

Atualmente, continua em curso a resposta às monções, que passa por um grande trabalho de engenharia — num esforço conjunto de três agências das Nações Unidas (Organização Internacional para as Migrações, Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e PAM) — com o objetivo de criar sítios novos para alojar as pessoas em situação mais vulnerável. “Movemos montanhas, literalmente”, diz Pedro Matos. “Tirámos topos e pusémo-los nos vales, para criar zonas planas onde pudéssemos pôr as pessoas. Felizmente as monções começaram de uma forma mais suave do que estávamos à espera.”

Além dos ciclones e das monções, uma terceira ameaça aos rohingya emergiu da mãe natureza. “Aquela floresta estava cheia de elefantes, centenas deles, que continuam a fazer as suas rotas migratórias. De vez em quando, entram pelos campos adentro e matam pessoas” — até ao momento, pelo menos 12.

Vídeos captados por telemóvel mostram elefantes “perdidos”
no campo de refugiados rohingya de Kutupalong
VÍDEOS UNHCR / MONTAGEM “THE GUARDIAN”

Pedro Matos, que já testemunhou crises humanitárias no Quénia, no Uganda e no Darfur, considera o Bangladesh marcante a dois níveis: a velocidade do último êxodo rohingya e os riscos ambientais, que “nunca tinha visto na vida”, diz. “E tudo agravado por aquilo que já é uma situação de vulnerabilidade de um refugiado que deixa tudo para recomeçar a vida noutro sítio ou para fugir do perigo.”

A experiência nos campos diz ao português que os rohingya querem regressar a Myanmar, o país que consideram seu — a 21 de junho, o número exato de rohingyas nos campos do Bangladesh era de 918.936. “Querem voltar, mas têm a ideia clara de que, neste momento, não há condições para que isso aconteça. Todos os problemas que existiam antes, incluindo o de não serem reconhecidos como cidadãos de Myanmar, continuam a existir, com problemas acrescidos, como o facto de as aldeias terem sido arrasadas e eles já não terem sítios para onde voltar. E a solução que Myanmar dá são campos já não de refugiados mas vedados — quase campos de concentração.”

(Foto: Sacos de areia ajudam a segurar as terras, no campo de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Os bebés da vergonha

Quase um ano após o início das agressões sexuais, em Myanmar, contra milhares de mulheres rohingya, os campos de refugiados no Bangladesh estão cheios de bebés… que ninguém vê. Vergadas à vergonha, muitas lidam com essas gravidezes indesejadas no interior das tendas, longe de olhares reprovadores e de assistência médica. A fundadora da organização não governamental Projeto Dignidade dos Sem Estado conta ao Expresso o que por lá viu

Captura de ecrã de uma reportagem da Al-Jazeera sobre refugiadas rohingya que foram violadas

Quando se anda pelos campos de refugiados rohingya no Bangladesh mal se veem mulheres grávidas. Não que as não haja, mas simplesmente não se fazem notar. “Eu tinha a expectativa de ver muitas mulheres em adiantado estado de gravidez e também recém-nascidos, mas fiquei um pouco chocada pois não vi quase nenhuns”, confidencia ao Expresso a norte-americana Ashley Kinseth. “Acho que vejo mais grávidas e recém-nascidos em Nova Iorque do que vi nos campos, apesar de haver ali ‘toneladas’ de crianças.”

Em junho, a fundadora e diretora do Stateless Dignity Project (Projeto Dignidade dos Sem Estado) passou dois dias nos acampamentos rohingya na região de Cox’s Bazar, sudeste do Bangladesh. A sua expectativa decorre de uma leitura fria da brutalidade que aquela comunidade — e as suas mulheres em particular — enfrentou nos últimos meses no país onde vivia, Myanmar, a antiga Birmânia.

Em agosto do ano passado, uma vaga de perseguição à minoria muçulmana naquele Estado de maioria budista, levada a cabo pelo exército, obrigou mais de 700 mil rohingya a fugirem de casa com pouco mais do que a roupa do corpo e a procurar refúgio no vizinho Bangladesh — mais de 55% de quem se fez à estrada eram crianças.

Pelo caminho e, antes, durante a invasão às aldeias, milhares de mulheres e meninas foram violadas. Quase um ano depois, muitas lidam com o trauma de gravidezes e filhos indesejados no interior de tendas de plástico e bambu, escondidas de olhares reprovadores. “De um modo geral, as mulheres das comunidades rohingya tendem a ficar ‘dentro’, especialmente no final da gravidez ou logo após o nascimento do bebé”, diz Ashley. “É muito difícil ter grande privacidade nos acampamentos mas, mesmo assim, imagino que muitas dessas mulheres” — especialmente se suspeitarem que o bebé possa ser fruto de uma violação — “possam ‘esconder-se’ em casa, provavelmente com algum apoio da família, por vergonha das gestações.”

De porta a porta num campo com 600 mil pessoas

Em maio, após visitar os campos de Cox’s Bazar, o subsecretário-geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Andrew Gilmour, alertou para um “inevitável aumento de nascimentos devido ao frenesi de violência sexual em agosto e setembro do ano passado”. Gilmour denunciou também casos de raparigas com 14 anos que sofriam de complicações provocadas por abortos autoinduzidos.

Organizações no terreno reforçaram os seus quadros de pessoal antecipando um “boom” de nascimentos. Foi o caso do Fundo das Nações Unidas para a População, que destacou 60 parteiras adicionais, qualificadas em matéria de agressões sexuais e planeamento familiar. Mas as rohingya não as procuram, preferindo lidar com a sua condição na intimidade possível das tendas.

Em janeiro, a organização Save the Children estimou em 48 mil os nascimentos esperados, este ano, nos campos do Bangladesh — uma média diária de 131 bebés. Confirmá-lo implicava ir porta a porta, tarefa impossível por exemplo numa “cidade”, como é o campo de Kutupalong, onde vivem 600 mil dos 900 mil rohingya alojados em Cox’s Bazar.

“Não sabemos em que medida os bebés que estão a nascer agora foram concebidos num contexto de violência, porque, dada a sensibilidade do assunto, nem todos os casos são relatados, mas também porque nem todos os bebés serão produto de violência”, diz ao Expresso a mexicana Beatriz Ochoa, do escritório da organização Save the Children no Bangladesh. “Dito isto, não quero depreciar a violência sexual que os refugiados viveram. Há meninas e mulheres que passaram pela horrível experiência de serem violadas e ficaram grávidas, e nalguns casos enfrentam agora a estigmatização e os riscos de terem um bebé fora do casamento e como resultado de uma agressão sexual.”

Enfrentar o estigma ou abortar pelas próprias mãos?

Muitas rohingya estão, pois, confrontadas com uma escolha angustiante: lidar com o estigma ou abortar. Jasmeen Zafar Chowdhury, uma médica bengali que trabalha numa maternidade montada pela organização Friendship, diz cautelosamente ao Expresso: “Temos tido casos de parto, mas não podemos correlacioná-los com situações de estupro ou agressão sexual. Em menor número, também recebemos casos complicados, como abortos incompletos”.

Num contexto onde não faltam assuntos difíceis, a começar pelas memórias dos ataques às aldeias, as gravidezes que decorrem da campanha de violações é “um assunto tabu”, refere Ashley Kinseth. Mas a comunidade esforça-se por enfrentá-lo. “Embora o estupro seja, por tradição, algo extremamente estigmatizado, para estes rohingya não há como o negar. As pessoas com quem falei recordam-se de ver as meninas e mulheres das suas aldeias a serem violadas. Embora seja para eles profundamente doloroso lembrá-lo, creio que o estigma não se coloca, antes são vistas como vítimas. Foram muitas as pessoas que testemunharam esses atos. Estigmatizar essas mulheres seria ostracizar uma grande parte da população feminina potencialmente disponível para se casar e gerar filhos.”

O pesadelo destas mulheres não termina no momento em que dão à luz. Para todo o sempre, verão nos rostos não totalmente rohingya dos seus filhos as feições dos seus agressores. Num recado à comunidade internacional, Abdur Rahim, um líder da comunidade rohingya, afirma: “Esses bebés são provas dos crimes” cometidos pelo exército birmanês.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 6 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui