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Descodificador. Que pode fazer a justiça na ‘guerra de Putin’?

Imagens de cadáveres de civis espalhados nas ruas de Bucha e de edifícios completamente destruídos e sem vida na cidade sitiada de Mariupol levantaram um coro de denúncias sobre crimes de guerra na Ucrânia. Como pode intervir o direito internacional?

Morte e destruição sem fim, em Bucha, nos arredores de Kiev CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES

1. A guerra desencadeada pela Rússia é legal?

Não, desde o seu primeiro minuto. A Carta das Nações Unidas — uma das pedras angulares do direito internacional, assinada a 26 de junho de 1945, no término da II Guerra Mundial — proíbe expressamente, no seu artigo 2º, “o recurso à ameaça ou ao uso da força [o chamado jus ad bellum], quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”. A única exceção em que um país pode, por sua iniciativa, recorrer à força é em situações de legítima defesa (artigo 51º). Ora, no caso da invasão russa da Ucrânia, nem a Rússia foi atacada nem havia uma iminência de ataque armado contra o país liderado por Vladimir Putin.

2. Que legislação é importante?

Além da Carta da ONU, a regulação do uso da força faz-se também através do direito internacional humanitário, que procura limitar o sofrimento provocado pela guerra. Surgiu no século XIX, com o intuito de humanizar a guerra, e assenta em quatro Convenções de Genebra. A primeira (1864) confere proteção aos soldados feridos e enfermos durante uma guerra terrestre. A segunda (1906) estende as obrigações do primeiro tratado às forças navais. A terceira (1929) define o tratamento dos prisioneiros de guerra. E a quarta (1949) outorga proteção aos civis, inclusive em território ocupado. A Rússia ratificou os quatro tratados.

3. Que tribunais são competentes?

Qualquer violação por Estados que tenham ratificado as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TIJ aprecia litígios entre Estados e é o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia-Geral. Quanto ao TPI, que tem sede em Haia, só julga indivíduos.

4. Vladimir Putin pode ser julgado?

Teoricamente, sim, no TPI. Mas, na prática, há uma infinidade de obstáculos até que isso se torne possível. Desde logo, há que recolher, no terreno, indícios e provas das atrocidades imputadas às forças russas, suscetíveis de implicar toda a cadeia de comando até chegar ao Presidente da Rússia. Esta fase pode demorar anos. Se a investigação do TPI resultar na formulação de uma acusação, é então emitido um mandado de captura internacional, dado que o tribunal apenas julga na presença do arguido, e não à revelia. Além disso, o TPI não dispõe de uma força policial que possa atravessar fronteiras nacionais para executar o mandado de detenção. A questão coloca-se: quem apanha Putin?

5. Há algum processo a decorrer no TPI?

Sim. A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan, anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por cerca de 40 países. Atualmente, no terreno, instituições como o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ONG como Amnistia Internacional e Human Rights Watch e ainda jornalistas, ativistas e cidadãos estão numa corrida contra o tempo na procura de registar e documentar o maior número de indícios de crimes de guerra possível. Nem a Rússia nem a Ucrânia assinaram o Estatuto de Roma (que instituiu o TPI), mas tal não constitui entrave a uma ação nesse tribunal.

6. A Ucrânia já acorreu à justiça?

Sim, de forma bastante inteligente. Dois dias após a Rússia ter iniciado a invasão da Ucrânia, argumentando com a urgência em proteger as populações ucranianas russófilas do leste do crime de genocídio, a Ucrânia instaurou um processo no TIJ, acusando a Rússia de manipular o conceito de genocídio para justificar a sua invasão ilegal. A Rússia tentou boicotar o caso faltando a algumas sessões. A 16 de março, ouviu o TIJ dar razão a Kiev e a instar Moscovo a parar imediatamente com as operações militares. A favor votaram 13 juízes e contra apenas dois: o magistrado chinês e o russo. Os veredictos do TIJ são vinculativos, mas o tribunal não tem forma de obrigar ao seu cumprimento.

7. O massacre de Bucha é genocídio?

A violência das imagens captadas naquela cidade dos arredores de Kiev ergueu muitas vozes, incluindo a do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, num coro de denúncias de uma situação de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Mas, à luz do direito internacional, a tragédia de Bucha dificilmente configura um crime desse tipo. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), genocídio consubstancia um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Esta especificidade, aparentemente, não é o caso de Bucha.

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

Como a Rússia pretende transformar e subjugar a Ucrânia, segundo a agência oficial do Kremlin: “Um país desnazificado não pode ser soberano”

Considerada uma caixa de ressonância do Kremlin, a agência noticiosa russa RIA Novosti publicou um artigo de opinião em que detalha a forma como se pretende concretizar a “desnazificação” da Ucrânia. “Este é um processo duradouro que não deve ser inferior a uma geração”, defende o autor

A guerra na Ucrânia é também um conflito de narrativas e a sua intensificação no terreno tem reflexo ao nível das tomadas de posição dos círculos próximos aos poderes em causa.

É o caso da agência estatal russa RIA Novosti, considerada uma câmara de ressonância do Kremlin, que, este domingo, publicou um artigo intitulado “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia” (uma tradução para língua inglesa pode ser lida aqui).

Nele, Timofey Sergeytsev, o autor, descreve como deve ser concretizado o “inevitável processo de desnazificação da Ucrânia”, que se tornou necessário “quando uma parte significativa do povo — provavelmente a maioria — foi dominada e arrastada para um regime nazi a nível político”.

Punições exemplares

Começando pelo campo de batalha, “os nazis que pegaram em armas devem ser destruídos ao máximo”, sem distinção entre membros das Forças Armadas da Ucrânia, dos chamados batalhões nacionais, bem como das unidades de defesa territorial.

“Todos eles estão igualmente envolvidos em atos de extrema crueldade contra a população civil, são igualmente culpados do genocídio do povo russo, não cumprem as leis e costumes da guerra. Criminosos de guerra e nazis no ativo devem ser punidos de forma exemplar e exponencial. Deve haver uma lustração total.”

Outras medidas passam por:

  • formação de órgãos públicos de autogoverno e milícias para defesa e aplicação da lei nos territórios libertados, “protegendo a população do terror dos grupos nazis clandestinos”;
  • retirada de materiais educativos e proibição de programas educacionais em todos os níveis “contendo diretrizes ideológicas nazis”;
  • investigações em massa para identificar responsabilidades pessoais por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, disseminação da ideologia nazi e apoio ao regime nazi;
  • publicação dos nomes dos cúmplices do regime nazi, envolvendo-os em trabalhos forçados para recuperar as infraestruturas destruídas, como punição para “aqueles que não estarão sujeitos à pena de morte ou prisão”;
  • criação de memoriais, placas comemorativas, monumentos às vítimas do nazismo ucraniano, “perpetuando a memória dos heróis” nessa luta.

A “desnazificação” deve chegar, inclusive, ao nome do país. “O nome ‘Ucrânia’ aparentemente não pode ser mantido como o título de qualquer entidade estatal totalmente desnazificada num território libertado do regime nazi”, defende Sergeytsev.

Desnazificar é desucranizar

A desnazificação será também inevitavelmente uma desucranização, uma rejeição da inflação artificial em grande escala da componente étnica de auto-identificação da população dos territórios históricos da Pequena Rússia e da Nova Rússia, iniciada pelas autoridades soviéticas. Deve ser devolvida aos seus limites naturais e privada de funcionalidade política”, pode ler-se.

O autor defende que desnazificar a população “consiste na reeducação, que é alcançada pela repressão ideológica (supressão) das atitudes nazis e censura estrita: não apenas na esfera política, mas também necessariamente na esfera da cultura e da educação.”

Este é um processo duradouro que não deve ser inferior a uma geração, “que deve nascer, crescer e atingir a maturidade em condições da desnazificação”. Para tal, prevê-se a criação de órgãos permanentes para a desnazificação por um período de 25 anos.

Construção artificial anti-russa

“Ao contrário da Geórgia e dos países bálticos, a Ucrânia, como a história mostrou, é impossível enquanto Estado-nação, e as tentativas de ‘construção’ levam naturalmente ao nazismo. O ucrainismo é uma construção artificial anti-russa que não tem o seu próprio conteúdo civilizacional”, defende.

Para a concretização do objetivo final, não basta eliminar as atuais autoridades em Kiev. “A debanderização [termo que decorre de Stepan Bandera (1909-1959), um político ultranacionalista ucraniano, e que se refere ao fim do atual governo ucraniano] por si só não será suficiente para a desnazificação. O elemento Bandera é apenas um ator e um cenário, um disfarce para o projeto europeu da Ucrânia nazi. Portanto a desnazificação da Ucrânia é também a sua inevitável de-europeização.”

Para esclarecer dúvidas, o artigo da RIA Novosti enfatiza que um processo de desnazificação só pode ser realizado pelo vencedor, pelo que “um país desnazificado não pode ser soberano”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui. Este artigo está traduzido para língua russa, aqui

O direito internacional tem forma de julgar os responsáveis pelo massacre de Bucha. “Mas quem apanha Putin?”

Há genocídio em Bucha? E ilegalidades nos ataques russos, em plena guerra? Que tribunais podem julgar os russos? E haverá vontade? O difícil processo de levar os crimes de guerra russos à justiça

Na emoção de um encontro com refugiados ucranianos, durante a sua recente visita à Polónia, Joe Biden não se conteve nas palavras e chamou “carniceiro” a Vladimir Putin. O comentário gerou um efeito de bumerangue e o Presidente dos Estados Unidos foi duramente criticado, inclusive por alguns pares, como o homólogo francês. “Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o Presidente Putin”, disse.

Se o objetivo do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia, acrescentou Macron, “não podemos escalar nem em palavras nem em ações”. Este discurso mudou após a divulgação das imagens do massacre de Bucha, nos arredores de Kiev. “Hoje, há sinais muito claros de crimes de guerra”, admitiu agora o presidente francês.

Entre os observadores, a atribuição de responsabilidade a Moscovo é cada vez mais hegemónica. “A Rússia manifesta um completo desprezo pelas normas do direito internacional humanitário a que está obrigada. As Convenções de Genebra de 1949 obrigam a que se faça sempre a distinção entre civis e combatentes”, diz ao Expresso Maria Assunção Vale Pereira, professora de direito internacional. “Por outro lado, é preciso distinguir os objetivos militares dos bens de caráter civil, e os russos têm-no ignorado completamente, têm usado armas proibidas, como minas e munições de dispersão”. Porém, acrescenta, se “o direito tem as respostas, o problema é saber se a Rússia está disposta a aplicar o direito a que se comprometeu.”

Houve genocídio em Bucha?

Na Universidade do Minho, esta especialista leciona também direito internacional humanitário, prevenção de conflitos e manutenção da paz e tribunais internacionais. Na sua ótica, o caso de Bucha dificilmente configura um crime de genocídio, conforme o reclama o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e muitas outras vozes chocadas pela violência das imagens captadas na cidade. “O crime de genocídio tem como aspeto específico o facto de os crimes em causa serem praticados com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Não estou a ver que haja em Bucha um grupo específico com estas características.”

Mas nada diminui as acusações de que o Kremlin é alvo. Ainda que Moscovo alegue que as imagens de Bucha sejam produto de uma encenação profissional, a “simples” decisão de invadir um Estado soberano faz com que a Rússia venha acumulando ilegalidades desde o primeiro dia da guerra. “Toda esta intervenção é ilícita, porque o direito internacional proíbe o recurso à força”, continua a professora. “A única exceção em que um Estado, por sua iniciativa, pode recorrer à força é em legítima defesa. Ora a Rússia não foi atacada nem havia uma iminência de um ataque armado. Tudo isto é ilícito.”

À luz do direito internacional, a regulação do uso da força faz-se através da Carta das Nações Unidas, que prevê quando é lícito o recurso à força (o chamado jus ad bellum), e através do direito internacional humanitário, que surgiu no século XIX “com o intuito de humanizar a guerra”, explica a professora Maria Assunção Pereira. “Visa sobretudo preservar quem não participa diretamente nas hostilidades e, por outro lado, limitar meios e métodos de combate, atenuando o sofrimento de quem participa e não participa.”

Hoje, a aplicação de todo este ordenamento jurídico faz-se em especial em duas instâncias internacionais, de quem se espera, neste caso concreto, a responsabilização dos mandantes da agressão a um Estado soberano.

Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

É o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes. São eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, em votações simultâneas, mas separadas. Para ser eleito, um candidato tem de receber a maioria absoluta dos votos nos dois órgãos.

O TIJ apenas julga litígios entre Estados, ou seja, processos em que um Estado está contra outro Estado. “Neste momento, o TIJ aprecia um caso interposto pela Ucrânia que, inteligentemente, aproveitou a acusação que a Rússia lhe fez de estar a perseguir um crime de genocídio [no leste do país] e, a partir daí, encontrou bases de jurisdição para que o Tribunal pudesse julgar. À partida, o TIJ só julga se houver aceitação da sua jurisdição”, explica a professora. Boicotar as diligências do TIJ passa, por exemplo, por faltar às sessões. A Rússia fê-lo recentemente.

A 16 de março passado, os trabalhos em Haia — onde fica a sede do TIJ — foram uma demonstração de como não decorrem de forma totalmente imune às sensibilidades políticas em redor deste caso. Nesse dia, o TIJ aprovou uma posição exortando a Federação Russa a parar com a guerra e com todas as atividades militares na Ucrânia. A decisão foi aprovada por 13 juízes. Os dois que votaram contra foram os magistrados russo e chinês.

Tribunal Penal Internacional (TPI)

Ao contrário do TIJ, que aprecia casos entre Estados, o TPI só julga indivíduos. Nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma, que instituiu este tribunal, mas isso não constitui um entrave perante a vontade de ser desencadeada uma ação no TPI.

Isso pode ser feito através de uma remissão do Conselho de Segurança da ONU, o que neste caso não acontecerá em virtude do poder de veto de que a Rússia dispõe. Pode haver também Estados a denunciar a prática de crimes ou pode ser o procurador do TPI, por sua própria iniciativa e em posse de indícios que caibam no âmbito da competência do tribunal, a levar a cabo essa investigação. Se da investigação decorrer a formulação de uma acusação e se esta dor confirmada pelo Juízo de Instrução, é então emitido um mandado de captura internacional.

“Mas quem é que apanha o Putin?”, questiona Maria Assunção Pereira. “O TPI não julga à revelia, é preciso a presença do arguido. Além disso, é um tribunal, não tem forças de polícia. Putin está enfiado num bunker, ninguém sabe bem onde, e nunca mais vai sair da Rússia. É difícil que seja capturado para ser levado a tribunal. Os instrumentos existem, assim pudessem funcionar.”

Da mesma forma que o TPI está dependente das polícias nacionais (que não podem cruzar fronteiras) para executar mandados de detenção, também não tem prisões onde os condenados possam cumprir a sentença. “Mas há acordos celebrados com Estados, como por exemplo com a Holanda”, explica a docente. “Através desses acordos, a Holanda disponibiliza-se a receber um determinado número de pessoas para cumprir pena nas suas prisões.”

Recolher provas para levar a tribunal

Da recolha de provas até à emissão de um mandado de captura podem passar anos. Mas ceder à morosidade da justiça teria o mesmo efeito de uma rendição voluntária ao agressor.

A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan QC, anunciou a abertura de uma investigação oficial aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por um conjunto de países, atualmente 41. Para que o processo avance, “é preciso que o Estado da nacionalidade dos alegados responsáveis pelos crimes aceitem a jurisdição, o que não é possível, porque são russos e a Rússia não aceita, ou então que o Estado em cujo território tiveram lugar os crimes, a Ucrânia, aceite a jurisdição”, explica Maria Assunção Pereira.

Paralelamente, também a Procuradoria-Geral da Ucrânia está a recolher dados sobre crimes de guerra. Há um site no qual qualquer cidadão pode registar os seus achados. “Desde o início da guerra, registamos mais de 4000 crimes militares, crimes de guerra”, disse esta segunda-feira a procuradora-geral do país. O objetivo da iniciativa é documentar factos para poder apresentar provas diante dos tribunais ucranianos e também do TPI.

A procuradora Iryna Venediktova esclareceu que ainda não foram verificadas as denúncias referentes a Bucha (execuções sumárias e valas comuns) e Mariupol. Nesta cidade do sudeste da Ucrânia, onde se estima que 90% dos edifícios tenham sido destruídos, foi bombardeado um teatro onde estava instalado o maior abrigo antiaéreo da cidade e onde estavam refugiadas centenas de pessoas. No seu exterior, uma palavra escrita em russo, visível a partir do céu, alertava para a presença de civis no local: dizia “crianças”, mas não deteve o fogo russo.

Apesar de não ser signatária do TPI, a Ucrânia reagiu à ameaça russa à sua soberania e adaptou a sua posição em relação ao TPI. Através de uma declaração emitida em 2015, a Ucrânia passou a reconhecer a jurisdição do TPI em matéria de “alegados crimes” praticados pela Rússia no seu território desde 20 de fevereiro de 2014.

Neste dia, mais de 50 manifestantes antigoverno foram mortos na Praça Maidan, em Kiev, tomada pelo movimento Euromaidan, que defendia a aproximação da Ucrânia à União Europeia. Este massacre atribuído à polícia ucraniana precipitou a queda do governo pró-russo, a invasão e posterior anexação russa da Península da Crimeia e constituiu o tiro inicial para a guerra separatista no leste da Ucrânia.

As memórias (e o exemplo) de Nuremberga

A forma como, após a II Guerra Mundial, oficiais nazis e guardas dos campos de concentração conseguiram escapar aos julgamentos de Nuremberga e esconderem-se em múltiplos países é hoje apontado como uma vulnerabilidade que se pode repetir.

Recorda Maria Assunção Pereira: “Depois de Nuremberga, foram apontadas várias deficiências a esse tribunal. Logo em 1948, a Assembleia Geral [da ONU] convidou a Comissão de Direito Internacional, que era um órgão subsidiário, a ponderar o interesse da criação de um tribunal de natureza penal e de caráter permanente. Mas, apesar de tudo o que tinha sido reconhecido em Nuremberga, houve, por um lado, a Guerra Fria (que levou a que não houvesse entendimento) e, por outro lado, a ideia (enfatizada no princípio da proibição do uso da força, na Carta das Nações Unidas) de que qualquer tribunal que fosse criado tinha que ter competência para julgar o crime de agressão. Mas como isso tocava com as competências do Conselho de Segurança também não se conseguiu fazer nada. Foi preciso esperar pelo fim da Guerra Fria”.

A trágica década de 1990 daria motivos suficientes para a reorganização da justiça internacional. Em 1993, foi estabelecido, através de uma resolução do Conselho de Segurança, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, com competência para julgar os crimes mais graves aí ocorridos. Com o mesmo espírito, foi criado, no ano seguinte, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Só em 1998 é que foi adotado o Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional com os contornos hoje em vigor.

Existe o direito, existem instituições, mas pode faltar vontade política em que se faça justiça. Para além da Rússia, até países como os Estados Unidos, a China e Israel não assinaram ainda o Estatuto de Roma. “O TPI só pode julgar se considerar que não há vontade ou capacidade dos Estados para julgarem”, conclui Maria Assunção Pereira.

“Parece que alguém está a dizer: ‘Os meus não podem ser julgados porque mesmo no meu país não há garantias de que sejam julgados devidamente’. Nos Estados Unidos, por exemplo, há várias situações de indivíduos acusados de crimes de guerra a serem julgados em comissões administrativas. Isso não é um tribunal. Então no mandato de Donald Trump, foi uma hostilidade absolutamente paranóica contra o TPI.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui

Negociações “substanciais” ou oportunidade para Putin ganhar tempo? “Perceber os russos é sempre muito complicado”

Russos e ucranianos deram uma hipótese à diplomacia e reuniram-se, frente a frente, em Istambul. A Ucrânia disse estar disposta a aceitar um estatuto de neutralidade, pediu que a porta da adesão à UE ficasse aberta e aceita remeter para negociações futuras o estatuto da Crimeia e do Donbas. Os russos disseram que vão entregar as propostas a Putin. Os especialistas admitem um passo em frente, o da via diplomática que finalmente se abre. Mas alertam que é cedo para respirar de alívio

Intervenção do Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, diante de russos e ucranianos, a 29 de março de 2022, em IstambulREPUBLIC OF TÜRKIYE DIRECTORATE OF COMMUNICATIONS

A cidade turca de Istambul acolheu, esta terça-feira, uma ronda de negociações entre russos e ucranianos facto que, por si só, indicia uma evolução no processo de conversações ‘em parte incerta’ que as partes vinham mantendo quase desde o início da invasão.

Frente a frente, as duas delegações ouviram o Presidente da Turquia dizer, presencialmente, que “um cessar-fogo é benéfico para todos” e apelar à “obtenção de resultados concretos”. Segundo Recep Tayyip Erdogan, “uma paz justa não terá um derrotado”. Afirmações óbvias que, porém, ainda não conseguiram impor-se nos 34 dias que já dura a invasão russa da Ucrânia.

“A entrada em cena de Erdogan é reflexo do que se está a passar na guerra, e que força a Rússia a tentar encontrar alguma forma para sair do conflito sem perder totalmente a face”, diz ao Expresso Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “A aceitação da mediação turca é simbólica e demonstrativa dessa disposição para encontrar algum compromisso face ao impasse no terreno.”

Objetivos mínimos

São vários os indícios de que a Rússia está cada vez mais longe dos objetivos a que se propôs inicialmente:

— A “operação especial militar” na Ucrânia, previsivelmente rápida, já dura há mais de um mês.

— A “desnazificação” da Ucrânia, que passava pela entrada das tropas russas em Kiev e pela substituição do atual Governo por um Executivo pró-Kremlin, falhou.

— Mariupol, cuja conquista permitiria à Rússia o controlo sobre uma faixa terrestre entre a Rússia Continental e a península da Crimeia, anexada em 2014, continua a resistir.

“Face a tudo isto, e ao potencial desgaste que isto causa política e economicamente a longo prazo na Rússia, esta percebe que tem de arranjar solução. A Rússia foi derrotada ao nível daqueles que eram os seus objetivos iniciais”, diz Bernardo Teles Fazendeiro. “Queria impor esta nova ordem na Ucrânia e não conseguiu.”

Ucrânia aceita neutralidade

Mas de Istambul saíram indícios de que a posição negocial da Ucrânia está a ir ao encontro das pretensões russas. Segundo o negociador-chefe ucraniano, David Arakhamia, o seu país concordará com um estatuto de neutralidade se houver um “acordo internacional” que garanta a sua segurança.

Esse compromisso seria assinado por vários países, ao estilo de uma espécie de fiadores, que Arakhamia enumerou: Estados Unidos da América, China, França, Reino Unido (membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU), e também Turquia, Alemanha, Polónia e Israel.

“Queremos um mecanismo internacional de garantias de segurança onde esses países atuem de forma semelhante ao artigo 5.º da NATO, e ainda com mais firmeza”, acrescentou o ucraniano. Ao abrigo desse artigo, um ataque a um Estado membro é encarado como um ataque a toda a Aliança Atlântica.

Zelensky fala muito. E Putin, que quer?

Paralelamente, a Ucrânia exige que a Rússia deixe aberta a porta da adesão à União Europeia e está na disposição de “excluir temporariamente” de um acordo com a Rússia a península da Crimeia (anexada por Moscovo em 2014) e os territórios do Donbas (sob controlo de forças separatistas pró-Rússia). O estatuto da Crimeia, em específico, seria resolvido ao longo de conversações bilaterais que decorreriam por um período de 15 anos.

“Não sabemos detalhes. Mas subentende-se, entre linhas, que a Ucrânia pode desistir do Donbas como território ucraniano”, comenta ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho.

“Do lado russo, é mais difícil saber o que querem, porque não comunicam. Zelensky está sempre a falar, está sempre a aparecer e a ser muito claro sobre o que pretende. Do lado russo, não há essa comunicação. Mas é importante lembrar que Putin, ao contrário de Zelensky, não tem como primeira prioridade a questão da perda de vidas humanas. Os russos estão a perder muitos soldados, mas não é isso que vai motivar Putin a sentar-se à mesa das negociações. O que o motiva é a evolução no terreno, a dificuldade em atingir os seus objetivos de guerra.”

Os seis temas quentes entre Rússia e Ucrânia

  • Neutralidade da Ucrânia;
  • Desarmamento e garantias mútuas de segurança;
  • Processo a que a Rússia chama “desnazificação”;
  • Remoção de obstáculos à utilização generalizada da língua russa na Ucrânia;
  • Estatuto do Donbass, onde ficam os territórios separatistas de Donetsk e Luhansk;
  • Estatuto da Crimeia.

Em Istambul, pela voz do chefe da delegação e conselheiro presidencial, Vladimir Medinsky, a Rússia reconheceu ter havido “discussões substanciais” e que Kiev apresentou propostas “claras”, que serão “estudadas muito em breve e submetidas ao Presidente” Vladimir Putin.

Paralelamente, realçou a decisão do Ministério da Defesa russo, anunciada em paralelo às negociações — com o objetivo de “aumentar a confiança mútua e criar as condições necessárias para novas negociações” — de “reduzir radicalmente a atividade militar nas direções de Kiev e Chernihiv”, no norte da Ucrânia. “Não é um cessar-fogo, mas é essa a nossa aspiração, alcançar gradualmente uma desescalada do conflito, pelo menos nestas frentes.”

“Perceber os russos é sempre muito complicado”, nota Sandra Fernandes. “Dá a ideia de que querem negociar, até porque se percebe que a invasão está a patinar, mas não pára, o que causa imenso terror. Sexta-feira passada, declararam que iriam concentrar-se no Donbas, mas hoje estão a bombardear Mykolaiv [no sul, junto a Odessa] de forma brutal.”

Da imposição à aceitação

Ainda que a Rússia pareça ter passado de uma estratégia de imposição (da situação no terreno) para uma de aceitação (da negociação), há sempre outras leituras possíveis. “Penso que o principal objetivo de Putin é ganhar tempo”, diz a docente da Universidade do Minho.

“Ir para a mesa da negociação é sempre um ganhar de tempo face ao que são os objetivos, a eventual alteração dos objetivos e a preparação de novos objetivos. A Rússia ainda não está numa posição de força [ao nível do controlo territorial] e a Ucrânia também ainda não perdeu tudo. Estamos numa situação intermediária, entre dois momentos, e nesse sentido os dois estão a jogar com aquilo que conseguem.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

Rússia revê estratégia: “libertação” do Donbas passa a ser a prioridade

O Ministério da Defesa da Rússia reconheceu a morte de 1351 militares, na Ucrânia

As forças russas na Ucrânia estarão na iminência de realizar uma mudança de estratégia na sua ofensiva. Esta sexta-feira, o Ministério da Defesa russo esclareceu que a primeira fase da “operação especial militar” — como Moscovo designa a invasão da Ucrânia — está “praticamente concluída”.

De agora em diante, esclareceu Sergey Rudskoy, vice-chefe de Estado General das Forças Armadas da Rússia, o objetivo principal será a “libertação completa” do território de Donbas, de que fazem parte as regiões de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

O Ministério da Defesa da Rússia alega que as forças separatistas, radicadas no Donbas, controlam atualmente 93% do território na região de Luhansk e 54% em Donetsk.

Escreve o diário espanhol “El País” que, a confirmar-se, esta mudança de estratégia, significa “uma redução dos objetivos militares iniciais, que, nas palavras do Presidente russo, Vladimir Putin, passavam pela ‘desnazificação’ da Ucrânia”.

O Ministério da Defesa reconheceu também a morte de 1351 soldados, nas suas hostes. E acrescentou que as forças separatistas apoiadas por Moscovo controlam 93% da região de Luhansk e 54% de Donetsk. Três dias antes do início da invasão da Ucrânia, a Rússia reconheceu a independência destas duas regiões ucranianas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2022. Pode ser consultado aqui