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EUA cedem à Rússia e aceitam que Assad continue no poder

Barack Obama chegou a defender, alto e bom som, que “Assad tem de partir”. A paralisação do processo de paz para a Síria e o aumento da ameaça jiadista obrigaram Washington a rever a sua posição, cedendo às exigências da Rússia

O futuro de Bashar al-Assad será determinado pelo povo sírio. Esta tem sido uma intransigência da Rússia relativamente ao conflito na Síria que, esta terça-feira, os Estados Unidos aceitaram.

“Os Estados Unidos e os seus parceiros não procuram uma alteração de regime”, afirmou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, em Moscovo, após um encontro com o Presidente Vladimir Putin. Esta posição representa uma inversão relativamente à política seguida pelos EUA desde o verão de 2011, altura em que o Presidente Barack Obama defendeu: “Assad tem de sair” do poder.

A cedência norte-americana surge na sequência de “um grande dia de negociações”, como o qualificou Sergei Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, país que tem sido um aliado consistente do Presidente da Síria. Kerry afirmou que, neste momento, o foco não deve incidir sobre as diferenças bilaterais sobre o futuro imediato de Assad, mas antes na facilitação de um processo de paz que leve os sírios “a tomar decisões sobre o futuro da Síria”.

O chefe da diplomacia norte-americana anunciou a realização de uma conferência sobre a Síria no final desta semana, em Nova Iorque. “Ninguém deveria ser forçado a escolher entre um ditador e ser atormentado por terroristas”, referindo-se ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Contudo, a exigência da oposição síria de que Assad deve deixar o poder mal as conversações de paz comecem não será pré-condição.

Provas autênticas e condenatórias do regime

Horas após o anúncio da nova posição dos Estados Unidos relativamente a Bashar al-Assad, a organização humanitária Human Rights Watch (HRW) divulgou o relatório “If the Dead Could Speak: Mass Deaths and Torture in Syria’s Detention Facilities” (Se os mortos pudessem falar: mortes em massa e tortura nos centros de detenção da Síria), que denuncia “crimes contra a humanidade” realizados pelo Governo sírio.

O relatório resulta de uma análise a 28.707 fotografias que documentam a morte de 6786 detidos às mãos das autoridades de Damasco. Durante a investigação, que durou nove meses, a HRW localizou e entrevistou 33 familiares e amigos de 27 vítimas cujos relatos foram posteriormente confirmados; 37 antigos detidos que testemunharam mortes de presos; e quatro desertores que trabalharam em centros de detenção governamentais ou hospitais militares onde a maioria das fotografias foram tiradas.

“Confirmamos meticulosamente dezenas de histórias e acreditamos que as fotografias de Cesar apresentam provas autênticas — e condenatórias — de crimes contra a humanidade na Síria”, afirmou Nadim Houry, vice diretor da HRW para o Médio Oriente, num comunicado divulgado esta quarta-feira. “Cesar” é o nome de código de um militar sírio desertor que, em agosto de 2013, fez sair da Síria, de forma clandestina, 53.275 fotografias. As imagens foram entregues a um grupo opositor ao regime sírio (Movimento Nacional Sírio) que posteriormente as fez chegar à HRW.

“Os países que se vão encontrar visando possíveis negociações de paz na Síria — incluindo a Rússia, o maior apoiante do Governo sírio — devem fazer do destino de milhares de detidos na Síria uma prioridade”, refere o comunicado da organização humanitária. “Devem insistir para que o Governo sírio dê aos investigadores internacionais acesso imediato a todos os centros de detenção e que os serviços secretos da Síria acabem com os desaparecimentos forçados e a tortura de detidos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui

O dia em que a Rússia sugeriu o afastamento de Assad e o Ocidente ignorou

Corria o ano de 2012 e ainda não se tinha ouvido falar do autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Nos corredores das Nações Unidas, em Nova Iorque, o embaixador russo sugere um plano que passa pelo afastamento de Bashar al-Assad do poder. EUA, Reino Unido e França ignoraram, convencidos que o ditador sírio não duraria muito mais tempo

“O Ocidente chora pelos refugiados por um dos olhos e pelo outro faz-lhes pontaria com armas.” A acusação foi feita pelo Presidente da Síria durante uma entrevista a órgãos de informação russos divulgada esta quarta-feira. Bashar al-Assad acusa os países ocidentais de interferência no conflito e diz que só sairá do poder quando o povo sírio quiser e não mediante pressão do Ocidente.

A guerra na Síria dura há mais de quatro anos e está na origem de grande parte da atual pressão migratória sobre as fronteiras europeias. Na segunda-feira, em entrevista à BBC, o general norte-americano John Allen, enviado presidencial especial para a coligação liderada pelos EUA de combate ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh), defendeu que o fim dos conflitos na Síria e no Iraque é crucial para a resolução da crise migratória. Allen defendeu também que Bashar al-Assad “tem de sair” do poder.

Precisamente o afastamento do ditador sírio esteve no centro de um plano sugerido pela Rússia (aliada do regime de Damasco), em fevereiro de 2012 — numa altura em que o terror do Daesh ainda não tinha irrompido. Segundo o britânico “The Guardian”, a proposta foi ignorada pelo Ocidente, noticiou na terça-feira.

Os três pontos do plano russo

A informação foi revelada por Martti Ahtisaari, ex-Presidente da Finlândia e Nobel da Paz 2008. Era 22 de fevereiro e Ahtisaari tinha sido enviado pelo grupo The Elders, fundado por Nelson Mandela, para se reunir com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido). O encontro com o embaixador russo na ONU, Vitaly Churkin, foi “o mais intrigante”, confessa.

“Eu conhecia Vitaly Churkin”, recorda Ahtisaari. “Discordamos em muitos assuntos mas conseguimos falar abertamente. Eu expliquei-lhe o meu papel naquelas conversações e ele disse: ‘Martti, sente-se. Eu digo-lhe o que devíamos fazer’. E falou em três coisas: Um — não devíamos entregar armas à oposição. Dois — devíamos iniciar um diálogo imediatamente entre a oposição e o Assad. Três — devíamos arranjar uma forma elegante de Assad afastar-se.”

Oportunidade perdida

O diplomata finlandês disse ter transmitido a proposta russa às delegações de Estados Unidos, Reino Unido e França. “Nada aconteceu. Julgo que estes três países, e muitos outros, estavam convencidos que Assad seria deposto dentro de algumas semanas”, disse Ahtisaari ao “Guardian”. “Foi uma oportunidade perdida em 2012.”

Oficialmente, Moscovo continua a defender o regime de Damasco, tendo enviado para a Síria tropas e tanques em defesa de Bashar al-Assad. As forças leais ao Presidente controlam menos de metade do território sírio, sobretudo em redor das cidades costeiras de Latakia e Tartus (ocidente), onde, nesta última, a Rússia tem uma base naval. A capital, Damasco, é disputada por tropas do regime e forças da oposição (não jiadistas).

Na terça-feira, numa cimeira sobre segurança realizada no Tadjiquistão, o Presidente russo Vladimir Putin apelou aos Estados Unidos e à União Europeia que se unam à Rússia e a Bashar al-Assad numa aliança contra o Daesh. “É óbvio que sem as autoridades sírias e os militares que estão ativamente no terreno, sem o Exército sírio que está a combater o Daesh, será impossível conduzir os terroristas para fora da Síria e de toda a região”, defendeu Putin.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de setembro de 2015. Pode ser consultado aqui

O início de uma nova era

Moscovo quer recuperar a influência perdida no seu
‘estrangeiro próximo’. As dinâmicas separatistas agravam-se

ILUSTRAÇÃO LEFTEAST

Qualquer que seja o desfecho para esta crise no Cáucaso, outras se seguirão. “Abriu-se um ciclo de instabilidade e vamos ter de lidar ao longo da próxima década com uma sucessão de outras crises. Criou-se uma dinâmica de confronto que substituiu a de cooperação que se tinha desenvolvido com a Rússia depois do fim da Guerra Fria”, disse ao Expresso o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado (ler entrevista).

Desde que o Presidente russo, Dmitri Medvedev, assinou, na terça-feira, os decretos que reconhecem as independências das repúblicas georgianas da Ossétia do Sul e da Abkházia que o velho continente voltou a ser cenário de fronteiras tensas e vigiadas. Em nome da presidência francesa da União Europeia (UE), Bernard Kouchner adiantou, na quinta-feira, que “estão a ser ponderadas sanções” contra a Rússia.

Na segunda-feira reunirá, em Bruxelas, um Conselho Europeu extraordinário com as relações UE-Rússia como ponto único da agenda. Medvedev já marcou posição: “Se a Europa quiser uma degradação das relações, vai tê-la naturalmente. Mas se quiser salvaguardar as relações estratégicas, o que é totalmente do interesse da Rússia e da Europa, tudo vai correr bem”.

Na quinta-feira, o primeiro-ministro Vladimir Putin ignorou a postura de Estado e disparou contra os Estados Unidos, acusando-os de terem provocado o conflito na Geórgia para “beneficiar um candidato” à Casa Branca. A teoria flui nos corredores do Kremlin, atento, nos últimos meses, às tiradas hostis à Rússia do republicano John McCain. Chegou a apelar à sua expulsão do G8.

O mal-estar russo

Paralelamente à teoria da conspiração russa, várias outras razões confluem para este ‘despertar’ da retaliação russa. Desde logo, o acordo de instalação de um sistema antimíssil norte-americano
na Polónia e na República Checa, que constitui um elemento dissuasor de qualquer tentativa militar russa no seu “estrangeiro próximo” a antiga área de influência da ex-União Soviética.

O Presidente russo prometeu uma resposta militar à ‘ousadia’ norte-americana, o que parece estar já em curso. Na quinta-feira, o Ministério russo da Defesa confirmou o êxito dos testes de um míssil balístico intercontinental (RS 12 Topol) “capaz de superar as tecnologias de defesa” antimíssil inimigas. EUA e Rússia estão em marcação cerrada e atentos às movimentações recíprocas. Esta semana ainda, o Estado-Maior-General das Forças Armadas russas questionou o recente aumento da actividade da NATO no Mar Negro, com dez navios de guerra ali estacionados e outros oito a caminho.

A penetração da NATO no território da antiga URSS, com a adesão dos três países bálticos, em 2004, levou a Rússia a bater no fundo. “A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais: impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nos dois países, aberta com as ‘revoluções coloridas’”, disse ao Expresso Carlos Gaspar, director do Instituto Português de Relações Internacionais.

Desde 1991, a Rússia tem usado as tensões separatistas para exercer pressão ao largo das suas fronteiras. Tradicional aliada da Sérvia, a Rússia nunca poderia ficar indiferente à autoproclamada independência do Kosovo, festejada nas ruas de Pristina com muitas bandeiras americanas… “Ao reconhecermos a independência da Ossétia do Sul e da Abkházia fizemos o que outros fizeram com o Kosovo”, disse Medvedev.

A dinâmica secessionista nos países limítrofes à Rússia está lançada. Ao Expresso, o general Loureiro dos Santos defende que os russos estão apostados em “intimidar” — mais por via diplomática que militar, embora esta última hipótese siga em aberto. De resto, à Rússia não faltam trunfos para ‘bater o pé’ na cena internacional: é essencial à aprovação de sanções ao Irão no Conselho de Segurança da ONU; os EUA dependem do corredor russo para abastecimento das suas tropas no Afeganistão; e dispõe dos recursos energéticos de que o Ocidente depende.

Artigo escrito com Cristina Peres.

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de agosto de 2008

ENTREVISTA INTEGRAL A CARLOS GASPAR

Director do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)

Não estamos perante uma nova Guerra Fria, mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia

Qual é a estratégia da Rússia?
A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais — impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nesses dois países, aberta pelas “revoluções coloridas”.

A breve prazo, a Rússia poderá incentivar outras independências ao longo da sua fronteira?
Desde 1991 que as tensões separatistas são usadas pela Rússia para manter uma pressão no seu “estrangeiro próximo”, designadamente na marca europeia (Transnístria) e na marca caucasiana (Abcásia, Ossetia do Sul).

Como poderão reagir os Estados Unidos e a União Europeia?
As respostas dos Estados Unidos e da União Europeia são diferentes. A administração republicana não mostrou a menor vontade de intervir no conflito e limitou-se a secundar as “démarches” europeias e a apoiar a Geórgia, sem deixar, por isso, de criticar o seu comportamento. A União Europeia quis apresentar-se como mediador, para parar as acções militares, ao mesmo tempo que parece disposta a iniciar conversações sobre o estatuto futuro da Ossétia do Sul e da Abcásia, embora não seja evidente a sua capacidade para moderar a estratégia russa.

Qual a importância do processo de independência do Kosovo neste “despertar” russo?
O precedente do Kosovo é um pretexto. As autoridades russas tinham anunciado que usariam o precedente nos casos da Ossétia do Sul e da Abcásia. Mas as afinidades são aparentes… Não existem resoluções do Conselho de Segurança a condenar as autoridades georgianas por perseguirem as suas minorias; não estavam em curso conversações com as mesmas autoridades para salvaguardar os direitos dos ossetas na Geórgia; nem há uma história recente de repressão georgiana das suas minorias.

Estamos perante uma Nova Guerra Fria?
Não estamos perante uma nova Guerra Fria. Mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia, depois de ter falhado a sua transição para a democracia. Por um lado, é preciso impedir a repetição do síndroma de Weimar — a ressurgência da Rússia como uma grande potência dominada pelo ressentimento da sua derrota na Guerra Fria e pela decomposição do seu império e determinada a demonstrar o seu poder pelo recurso à força. Por outro lado, é preciso evitar qualquer ambiguidade que possa convencer as autoridades russas que o seu comportamento intimida as democracias ocidentais. A intervenção russa na Geórgia deve ter um preço: os Estados Unidos, a Alemanha e a União Europeia deixaram de poder ter confiança nas autoridades russas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de agosto de 2008. Pode ser consultado aqui