A pandemia acelerou o processo de integração dos drones no espaço aéreo civil. Hoje andam no ar em ações de vigilância, a desinfetar áreas urbanas e a transportar medicamentos. O Expresso falou com um investigador que deita água na fervura da euforia e alerta para os perigos da utilização de drones em grande escala
Tempos de crise incentivam a procura de soluções inovadoras para as novas dificuldades da vida, e a pandemia provocada pelo novo coronavírus não é exceção. Da necessidade de — mais confinados — continuarmos ligados uns aos outros resultou a popularidade de serviços de videoconferências como o Zoom. Da urgência em travar a disseminação do vírus brotaram discussões sobre aplicações nos telemóveis para vigiar contactos com doentes de covid-19. E da necessidade de controlar a pandemia, muitos drones (veículos aéreos não-tripulados) passaram a andar em espaço aéreo onde, até há muito pouco, havia apenas helicópteros e aviões.
“A tecnologia é vista cada vez mais como a panaceia para todos os problemas”, diz ao Expresso Bruno Oliveira Martins, investigador do Peace Research Institute de Oslo (PRIO), na Noruega. “Neste clima de estado de emergência generalizado, os drones têm sido utilizados num grande número de funções. Quem tem observado o seu desenvolvimento nos últimos anos sempre antecipou que à medida que a tecnologia fosse evoluindo haveria novas funções que poderiam ser desempenhadas. Neste momento, tudo isso está a materializar-se, um pouco por todo o mundo.”
Em Portugal, a PSP e a GNR usaram drones para controlar o cumprimento do estado de emergência, entre 18 de março e 1 de maio, captando imagens e emitindo mensagens sonoras. Na Coreia do Sul e na Índia, aparelhos com borrifadores acoplados são utilizados para desinfetar áreas urbanas. Na China e Arábia Saudita, drones equipados com câmaras térmicas permitem detetar pessoas com alta temperatura corporal. Na Polónia e no Gana, já foram usados para transportar testes à covid-19.
Com grande naturalidade é fácil imaginar, neste contexto de pandemia, drones em massa nos céus de qualquer cidade em atividades de entregas ao domicílio. “Mas será que queremos mesmo isso?”, questiona o investigador. “Para que os drones voem, precisam de localização por satélite, por norma GPS, deixam uma enorme pegada digital. Eu não tenho a certeza de querer ter as minhas compras numa base de dados…”
O investigador recorda a edição de 6 de maio de 2017 da prestigiada revista “The Economist”, que considerava que os dados pessoais tinham ultrapassado o petróleo como “recurso mais valioso do mundo”. No desenho que ilustrava a capa, seis gigantes tecnológicas (Amazon, Uber, Microsoft, Google, Facebook e Tesla) surgiam instaladas em plataformas petrolíferas.
“A circulação dos nossos dados numa economia paralela, que se alimenta deste capitalismo de vigilância, é extremamente difícil de perceber para o cidadão comum”, explica. “A ideia de que há um sistema de email gratuito é falsa. O Gmail não é gratuito — não o pagamos com dinheiro, pagamo-lo com os nossos dados pessoais, que depois são comercializados nesse mercado paralelo que se alimenta de milhões e milhões e milhões de dados para desenvolver novas tecnologias. A maior parte das pessoas não tem consciência disto.”
Hora de ponta à volta do edifício
Além da pegada digital, Bruno Oliveira Martins identifica dois outros obstáculos à massificação de drones-estafeta. “Até podemos pensar que, precisados de ir à farmácia, seria excelente se um drone trouxesse o medicamento a casa. Mas se vivermos num prédio com mais 50 pessoas e todas pensarem da mesma maneira, inevitavelmente vão acontecer acidentes.”
Por outro lado, para haver trânsito de drones em grande escala, “o espaço aéreo teria de ser compartimentado, com corredores utilizados por drones para um determinado serviço e uns metros acima para outros serviços, o que é extremamente complicado”.
Todo este tecno-otimismo deve, pois, ser tratado com moderação, já que, à semelhança de qualquer fármaco produzido para curar maleitas, também os drones têm contra-indicações. “A proliferação de drones no espaço aéreo civil abre um sem-número de questões, sobretudo ao nível da privacidade e do armazenamento e tratamento de dados”, diz o investigador do PRIO. “Muitas vezes, tendemos a prestar menos atenção a estas questões, porque colocamos muito otimismo na tecnologia.”
Mais ainda num contexto de ameaça à saúde pública, em que os drones são percecionados como estando do lado certo do combate. “Sempre que existe um sentimento generalizado de insegurança, as pessoas estão dispostas a baixar a guarda ou a tolerar coisas que não aceitariam num contexto de normalidade”, explica Bruno Oliveira Martins.
CNPD rejeitou pedido do Governo
No caso português, o investigador destaca o papel da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) relativamente ao uso de drones durante o estado de emergência. “Quando a PSP pediu autorização ao Ministério da Administração Interna [MAI] para utilizar drones, solicitou na prática um cheque em branco. Quando o MAI consultou a CNPD, esta deu parecer negativo. Depois, quando o MAI autorizou a utilização de drones, fê-lo para fins muito mais delimitados. Vemos neste processo bastante simples como as coisas podem descambar.”
Bruno Oliveira Martins alerta para o perigo de, passado o período de exceção, a situação não voltar exatamente ao ponto em que estava antes da emergência, e exemplifica com a política de assassínios seletivos usada sobretudo por Estados Unidos e Israel. Se há anos era prática excecional, realizada em grande secretismo e para alvos de altíssimo valor, hoje tornou-se prática comum. “É um exemplo de algo que era altamente excecional e se normalizou. Passada a exceção, não se voltou ao ponto em que se estava antes.”
Prevenir abusos passa por estar vigilante — dos partidos políticos ao cidadão comum —, ainda que, nos dias que correm, todos sejam, de alguma forma, parte do problema. “Com os nossos Instagram, Facebook, Twitter, o recurso ao Google Maps para tudo e para nada, nós próprios alimentamos a cultura de vigilância”, conclui o investigador.
“Hoje é extremamente difícil vivermos desligados e isso faz com que percamos a sensibilidade em relação a questões que são efetivamente complicadas. Por essa razão, todos temos o dever de tentar ter um espírito crítico em relação a estas questões.”
(VECTORPORTAL)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui