Profissionais de saúde venezuelanos e lusodescendentes a residir em Portugal sentem-se frustrados por não poderem ajudar no combate à pandemia. A barrar-lhes a entrada nos hospitais está uma burocracia complexa que demora a dar respostas
Queriam estar nos hospitais, a trabalhar as horas que fossem possíveis para ajudar a salvar vidas. São profissionais de saúde formados na Venezuela — médicos das mais variadas especialidades, enfermeiros, bioanalistas, farmacêuticos — que, face a dificuldades no país de origem, imigraram recentemente para Portugal para iniciar uma nova etapa. Mas as portas dos hospitais portugueses estão-lhes barradas.
“É frustrante termos vontade de ajudar — porque para isso fomos preparados — e termos de ficar em casa”, desabafa ao Expresso a lusodescendente Raquel Pinheiro, de 40 anos. Na Venezuela, trabalhava como médica anestesista; em Portugal, onde chegou em outubro, ganha a vida a arrumar quartos num hotel em Aveiro. “Uma pandemia é uma situação muito grave. Há muitas pessoas a morrer, nós queremos ajudar, somos profissionais, temos habilitações.”
Como Raquel, dezenas de profissionais de saúde venezuelanos e lusodescendentes desesperam por não ver reconhecidos os seus diplomas académicos. O processo da anestesista — que tem nacionalidade portuguesa — foi iniciado na Direção-Geral do Ensino Superior há meio ano.
“Compreendo perfeitamente que os países tenham as suas regras, e eu tenho de as acolher. Mas eu não vim para viver às custas de ninguém, vim com vontade de trabalhar”, como há décadas aconteceu com o pai, quando rumou à Venezuela aos 17 anos. “Vim com vontade de fazer aquilo para que fui preparada.”
Exame marcado para abril… de 2021
Christian de Abreu, um lusodescendente de 36 anos que vive em Esposende (distrito de Braga), vive a mesma angústia há quase um ano. Filho de madeirenses, estudou Medicina na Universidade dos Andes durante seis anos e meio e exercia na área da Medicina do Trabalho; em Portugal ganha a vida nas obras.
Christian chegou a Portugal em maio passado — a mulher e os dois filhos ficaram no país — e logo iniciou o pedido de reconhecimento das habilitações junto da Direção-Geral do Ensino Superior. O processo foi encaminhado para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra que ficou encarregue de apreciar o seu caso, para o que Christian teve de pagar um emolumento no valor de 900 euros.
Em circunstâncias normais, começaria este abril a prestar as provas exigidas: uma escrita e uma prática de Medicina e um exame de língua portuguesa. Neste contexto de pandemia, os exames foram adiados para novembro próximo, janeiro e abril de 2021.
“Eu estou na disposição de fazer todas as provas que pedirem, mas agora estamos em luta contra o coronavírus”, diz ao Expresso. “Se é preciso demonstrar se sabemos ou não de medicina ponham-nos a trabalhar num hospital supervisionados por médicos portugueses, e eles dirão se temos ou não conhecimento.”
Para além do trabalho na frente de combate, estes profissionais dão outros exemplos do que poderiam estar atualmente a fazer: acompanhar os pacientes que estão em casa, recolher amostras para análise, colaborar nas triagens, trabalhar no atendimento telefónico nas linhas do SNS24.
Espanha aqui ao lado
A 14 de março, Christian enviou uma carta ao Governo em nome de um conjunto de profissionais na sua situação, que estima serem à volta de 100. Nela recordam o repto da Ordem dos Médicos a todos os médicos para que reforçassem o Sistema Nacional de Saúde, dizem “presente” e apelam ao Governo para “que encontre um mecanismo” que agilize o seu processo. O gabinete do primeiro-ministro acusou a receção da carta e encaminhou-a para o gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido.
A viver uma quarentena profissional forçada, muitos destes profissionais vão pensando na possibilidade de se mudarem para outro país da União Europeia. Em Espanha, numa medida excecional de combate à pandemia, o Governo de Pedro Sánchez autorizou a contratação de médicos cujos títulos ainda não estavam homologados, abrindo a porta a 2000 médicos venezuelanos — já exerciam no país cerca de 5000.
A ideia de rumar a Espanha ou Itália já passou pela cabeça de Raquel. A anestesista vive na Gafanha da Boa Hora com o marido venezuelano e os dois filhos gémeos de nove anos. Foi neles que pensou quando decidiu deixar o país onde nasceu e é neles que pensa quando, mais desanimada, sonha em aproveitar a janela de oportunidade aberta pela pandemia e tentar a sua sorte noutro país. “Há dias em que olho para o céu e digo para mim: vou. Mas depois olho para os meus filhos e penso na responsabilidade que tenho”, em especial para com um deles que já foi operado ao coração. “Sinto-me entre a espada e a parede.”
Várias provas de obstáculos
Contactado pelo Expresso, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior explica o procedimento que está em causa. “As entidades competentes para proceder ao reconhecimento de graus académicos, que não sejam alvo de reconhecimento automático (o que ocorre nos graus da área da medicina), são as instituições de ensino superior que conferem o grau ou diploma naquela área de formação.”
Obtida a equivalência por parte de uma escola médica, há outro obstáculo a superar antes de ser possível a inscrição na Ordem dos Médicos: “Demonstrar que sabe comunicar em português (oral e escrito) sendo aprovado na prova de comunicação que a Ordem dos Médicos faz em parceria com o Instituto Camões”, explica ao Expresso fonte da instituição.
Após estarem inscritos na Ordem, os médicos ficam habilitados a exercer como clínicos gerais. Se quiserem exercer uma especialidade, têm de percorrer uma nova prova de obstáculos desta vez dentro da Ordem. “No caso de quererem a equivalência a uma especialidade, a situação é avaliada pela direção do respetivo Colégio” da especialidade.
Em 2019, foram 14 os médicos inscritos na Ordem com formação obtida na Venezuela. Na última década, 2014 foi o ano com menos inscrições (9) e em dois anos (2016 e 2018) foram inscritos 15 médicos venezuelanos. É esse o sonho de Christian também. “Há muita gente parada que poderia ajudar e Portugal beneficiaria muito com isso”, diz. “A burocracia tem de morrer com a covid.”
(IMAGEM PUBLIC DOMAIN PICTURES)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui