Arquivo de etiquetas: Sérvia

O rastilho voltou a acender-se no barril de pólvora chamado Kosovo

No norte do território, confrontos entre populações sérvias e polícias albaneses feriram 30 membros da força militar internacional. A NATO vai enviar mais 700 efetivos

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da Sérvia WIKIMEDIA COMMONS

Aos quinze anos de vida, o Kosovo faz jus à problemática região dos Balcãs, onde se insere, e acumula tensão atrás de tensão. Subsistem feridas abertas desde que esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) cortou amarras com a Sérvia (cristã), de forma unilateral, a 17 de fevereiro de 2008. Os problemas sentem-se com particular intensidade no norte do Kosovo, onde populações de origem sérvia resistem a obedecer às autoridades de Pristina. Esta semana, a violência voltou-se contra a missão da NATO, no território há 24 anos.

1. O que está na origem da mais recente tensão?

Um imbróglio político saído das eleições locais de 23 de abril, em quatro municípios do norte do Kosovo, onde a maioria da população é de origem sérvia: Leposavic, Mitrovica Norte, Zubin Potok e Zvecan. Estes sérvios, que não reconhecem o Governo de Pristina (capital do Kosovo) e são informalmente apoiados pelo de Belgrado (Sérvia), boicotaram o escrutínio, reduzindo a taxa de afluência às urnas para míseros 3,47%. Dos 45.095 eleitores, votaram 1566 albaneses e 13 sérvios. Todos os autarcas eleitos são albaneses e têm a legitimidade ferida. “Foram eleitos por apenas 3,5% dos eleitores. Não têm credibilidade alguma”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que foi conselheiro militar do representante especial no Kosovo do secretário-geral das Nações Unidas, entre 2005 e 2009.

2. O que levou à erupção de violência esta semana?

Na segunda-feira, os autarcas eleitos tentaram assumir funções. “O primeiro-ministro do Kosovo, de forma abusiva, resolveu levar avante a tomada de posse desses autarcas, com a proteção da polícia do Kosovo”, continua o militar. No exterior dos edifícios concentraram-se populações sérvias em protesto. A violência entre a polícia albanesa e populações sérvias eclodiu com maior intensidade em Zvecan, cerca de 45 quilómetros a norte de Pristina, onde o autarca eleito obteve 114 votos num universo de 6998 eleitores. “No meio da manifestação, houve disparos feitos pela polícia do Kosovo, foram feridos sérvios e a partir daí a situação ficou descontrolada”, diz Cunha. Além de 52 manifestantes, ficaram feridos 30 militares da Força do Kosovo (KFOR) — 19 húngaros e 11 italianos —, uma missão militar internacional de manutenção da paz liderada pela NATO e presente no território desde 1999.

3. Entre as eleições e os confrontos, nada foi feito?

No mês passado, a União Europeia chamou a si a tarefa de mediar o estabelecimento da Associação de Municípios de Maioria Sérvia, um órgão aceite por Belgrado e Pristina no Acordo de Normalização assinado a 19 de abril de 2019 (que não contempla o reconhecimento do Kosovo independente pela Sérvia), mas que nunca foi avante. “Discordo fundamentalmente da proposta”, atirou o primeiro-ministro kosovar, Albin Kurti, nas negociações em Bruxelas, em que participaram o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic, e o alto-representante da UE para Relações Exteriores, Josep Borrell. “A proposta representa o desejo de uma República Srpska no Kosovo.” A República Srpska é a entidade política sérvia na Bósnia-Herzegovina, que desafia repetidamente a legitimidade do Estado.

4. Por que razão a violência se voltou contra a NATO?

“A força internacional protegeu a ocupação dos edifícios pelos autarcas albaneses e os sérvios entenderam que essa atuação da KFOR foi contra eles”, explica Raul Cunha. No papel, a KFOR tem por missão “manter um ambiente seguro e protegido”. Porém, neste episódio, “a sua atuação perturbou até a segurança. A KFOR, em vez de dizer ao primeiro-ministro do Kosovo para retirar de lá os autarcas, protegeu os edifícios, onde também já estava a polícia do Kosovo”. O militar português recorda que, na época em que o Kosovo estava ainda sob a tutela das Nações Unidas (1999-2008), “havia o cuidado de colocar polícias sérvios nos municípios onde os sérvios eram maioria, mas agora não. Se mandam para lá as forças de intervenção da polícia kosovar, está visto que vai haver problemas. Se a seguir vai a KFOR proteger as forças de intervenção da polícia do Kosovo, pior ainda”.

5. A NATO vai enviar mais 700 soldados. O que muda?

Esse contingente significa um reforço substancial dos cerca de 4000 efetivos (de 28 países) atualmente em missão. Mas, alerta Raul Cunha, “não resolve nada”. Além da polícia, no território há as Forças de Segurança do Kosovo, uma espécie de exército. “Estou convencido de que as forças da NATO não terão capacidade para as enfrentar. Se colocarmos na equação o exército da Sérvia, então os 700 homens da NATO vão resolver zero. É um sinal de força, mas para quê? O que tem de acontecer é a desmobilização de toda a tensão, o que só será possível se houver pressão por parte de quem tem essa capacidade, que são os Estados Unidos, sobre o Governo do Kosovo, levando-o a cumprir aquilo que está acordado.”

6. Como reagiram os EUA, sólido aliado do Kosovo?

Entre o coro de condenações à violência e apelos à inversão na escalada, foi surpreendente a posição dos Estados Unidos, que foram dos primeiros países a reconhecerem a independência do Kosovo e que têm estado ao seu lado desde então. “A decisão do Governo do Kosovo de forçar o acesso aos prédios municipais aumentou as tensões de forma drástica e desnecessária”, reagiu o secretário de Estado, Antony Blinken. O Kosovo “deve garantir que os autarcas eleitos cumpram as suas funções de transição em locais alternativos fora dos prédios municipais e deve retirar as forças policiais das imediações”. Em paralelo, Washington cancelou a participação do Kosovo em exercícios militares da NATO. Pristina acusou a “reação exagerada” do amigo americano.

7. Porque é o Kosovo tão importante para a Sérvia?

A pergunta poderia ser endereçada ao tenista sérvio Novak Djokovic, que esta semana, após vencer a primeira partida no torneio de Roland-Garros, escreveu na lente da câmara que transmitia em direto: “O Kosovo é o coração da Sérvia. Parem com a violência.” Ao mesmo tempo que apelou à trégua, o nº 1 do mundo deitou combustível na fogueira ‘anexando’ o Kosovo. Para qualquer sérvio, o Kosovo é a terra de origem da sua nacionalidade. “Há território no Kosovo que devia continuar na Sérvia. É como se nós ficássemos sem Guimarães para ficar integrado na Galiza”, compara Cunha, que aponta o dedo ao Ocidente. “Aquando do cessar-fogo após os 78 dias de bombardeamentos da NATO à ex-Jugoslávia, em 1999, em defesa dos albaneses do Kosovo, celebrou-se o Acordo de Kumanovo, que previa que militares da Sérvia garantissem a segurança de populações sérvias no Kosovo e, sobretudo, de lugares de culto: mosteiros ortodoxos, igrejas, o patriarcado. A KFOR nunca deixou que regressassem.”

8. Que solução para o Kosovo?

“O Kosovo não faz sentido como país, faz sentido se a maioria do território do Kosovo se juntar à Albânia”, defende Cunha, autor do livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita”. Enquanto esta ou outra fórmula não convencerem as partes, a questão continuará a minar a afirmação internacional dos dois países: sem pleno reconhecimento internacional, o Kosovo não consegue aderir à ONU; sem reconhecer o Kosovo, a Sérvia não entra na UE.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Ruas bloqueadas no Kosovo, forças em prontidão na Sérvia: as razões de fundo da mais recente tensão numa relação turbulenta

Catorze anos após o Kosovo declarar unilateralmente a sua independência da Sérvia, a minoria sérvia do país continua a desafiar as autoridades de Pristina. O recurso a camiões para bloquear estradas do território, em protesto contra decisões das autoridades kosovares, mais não é do que uma forma de afirmação da soberania de Belgrado sobre partes do país

Mapa do Kosovo com as comunidades sérvias assinaladas a azul e as albanesas a amarelo, integrante do Acordo de Bruxelas de 2013, que foi o primeiro acordo de princípios relativo à normalização das relações entre a Sérvia e o Kosovo WIKIMEDIA COMMONS

Antes da invasão russa da Ucrânia, a última grande guerra na Europa foi travada no território da antiga Jugoslávia. O desmembramento deste Estado originou sete novos países, processos de independência sangrentos e feridas que não cicatrizam — a mais grave das quais chama-se Kosovo.

Esta antiga província sérvia de maioria albanesa (muçulmana) declarou a sua independência da Sérvia (cristã ortodoxa) de forma unilateral em 2008. Desde então, o reconhecimento internacional tem sido a grande prioridade da diplomacia kosovar.

O país já solicitou adesão à União Europeia (mas não é reconhecido pela totalidade dos 27 membros) e sonha com o estatuto de primus inter pares na comunidade internacional (mas ainda não faz parte das Nações Unidas).

Quanto à sua segurança, está dependente da presença militar internacional no território (como a KFOR, a missão da NATO que está no Kosovo desde 1999).

No terreno, o Kosovo é um território envolto em tensão permanente. Esta terça-feira, a temperatura subiu uns graus após populações da minoria sérvia do país erguerem novas barricadas nas ruas da região de Mitrovica (norte), numa ação de protesto que dura há semanas.

Horas antes, a Sérvia havia colocado exército e polícia em “completo estado de prontidão de combate”, temendo que as autoridades do Kosovo pudessem recorrer à força para retirar as barricadas e desobstruir as ruas que ligam as zonas sérvia e albanesa da cidade.

“Todas as medidas serão tomadas para proteção do povo sérvio no Kosovo”

Bratislav Gasic, ministro do Interior da Sérvia

O recurso a grandes camiões atravessados nas ruas e outras formas de barricadas é uma forma de protesto recorrente, em especial na parte norte do Kosovo, onde vive uma minoria de cerca de 50 mil sérvios.

Estes não reconhecem o Estado do Kosovo e declaram lealdade à Sérvia. No dia a dia, sentem-se motivados a cumprir as leis ditadas por Belgrado e rejeitam com orgulho as ordens que emanam de Pristina.

Distribuição das populações sérvias no Kosovo, em 1948 WIKIMEDIA COMMONS

A origem da atual tensão entre Sérvia e Kosovo reside num procedimento burocrático decidido, em agosto, pelo Governo do Kosovo que determinou que os carros dos sérvios kosovares passariam a ter matrículas com as letras RKS (uma sigla decorrente do nome do país: República do Kosovo).

Esta nova lei contraria a prática em vigor desde 1999, segundo a qual as viaturas da minoria sérvia circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina.

Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado — até agora. No mês passado, autarcas sérvios de municípios do norte, juízes e centenas de polícias demitiram-se em protesto contra esta lei das matrículas.

“O Kosovo não pode dialogar com gangues criminosos e a liberdade de movimento deve ser restabelecida. Não deve haver barricadas em nenhuma estrada”, defendeu o Governo kosovar, num comunicado divulgado na segunda-feira.

O documento acrescenta que a polícia do Kosovo está em condições de remover as barricadas, aguardando apenas autorização da força de manutenção de paz da NATO no território (KFOR).

A pensar na neutralidade a que a KFOR está obrigada, a Sérvia, por seu lado, solicitou à NATO a deslocação de mais de 1000 efetivos para o norte do Kosovo para proteger os sérvios kosovares de eventuais situações de assédio por parte dos albaneses.

Para acentuar a tensão, tudo acontece numa época festiva e especialmente sagrada para os sérvios. Em jeito de prenúncio de uma possível escalada, na segunda-feira, o Kosovo recusou a entrada no país ao Patriarca Porfírio da Sérvia.

A dias de os sérvios (tal como os russos) celebrarem o seu Natal, a 7 de janeiro, o líder da Igreja Ortodoxa Sérvia tencionava levar aos sérvios kosovares uma mensagem de paz. No atual contexto, qualquer intenção de paz bem pode transformar-se num rastilho para a guerra.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Esta quinta-feira há reunião em Bruxelas, mas a tensão segue dentro de momentos

Os líderes da Sérvia e do Kosovo reúnem-se, esta quinta-feira, em Bruxelas. O encontro acontece três semanas após medidas decretadas pelo Governo de Pristina terem sido mal recebidas pela minoria sérvia do território, levando-a a bloquear estradas e colocando a missão da NATO em alerta. A tensão pode repetir-se no final do mês, se a conversa entre Aleksandar Vucic e Albin Kurti se transformar num diálogo de surdos

O Kosovo é uma ferida aberta na Europa que ameaça não cicatrizar. Esta quinta-feira, as principais partes em contenda terão uma nova oportunidade para suturar alguns golpes recentes, num encontro ao mais alto nível, entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, que decorrerá em Bruxelas.

Este diálogo segue-se a uma recente escalada da tensão entre Belgrado e Pristina que levou a minoria sérvia do Kosovo — um território de maioria albanesa — a atravessar camiões nas ruas e a bloquear pontos de passagem na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas barricadas ergueram-se em protesto contra duas medidas que o Governo de Pristina queria aplicar à minoria sérvia.

A tensão esfumou-se momentaneamente, após as autoridades kosovares aceitarem adiar um mês a entrada em vigor das novas regras, reagendada para 1 de setembro. A cedência foi tornada pública após interferência de Jeffrey Hovenier, o embaixador norte-americano no país.

Os Estados Unidos, que têm sido um parceiro do Kosovo desde a primeira hora, foram dos primeiros países a reconhecer a independência do território — até então uma província da Sérvia de maioria albanesa —, declarada de forma unilateral a 17 de fevereiro de 2008.

Se as autoridades do Kosovo insistirem na aplicação das medidas, “provavelmente, volta a acontecer o mesmo. Esta tensão é recorrente, não foi a primeira vez que aconteceu”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que esteve em missão no Kosovo por duas vezes (em 2000 com a NATO e de 2005 a 2009, com a ONU). “Quando as Nações Unidas foram para o Kosovo, tiveram de substituir as placas de matrícula das suas viaturas. Mas os sérvios, sobretudo da região norte, recusaram sempre fazê-lo.”

Os resistentes do norte

No centro da mais recente revolta dos sérvios kosovares — que se estima correspondam a 5% da população total de 1,8 milhões —, estão dois novos regulamentos. Um deles obrigava os cidadãos sérvios que entrassem no Kosovo, por via terrestre ou aérea, a terem de andar com um documento de identificação emitido pelas autoridades de Pristina, em substituição do comprovativo passado por Belgrado. Esta seria uma medida de reciprocidade já que é o que acontece com os kosovares que visitam a Sérvia.

A outra nova lei decretava a obrigatoriedade dos carros dos sérvios kosovares passarem a ter matrículas com as letras RKS. Desde 1999 que as viaturas desta minoria circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina. Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado nos quatro municípios do norte onde vive parte importante da minoria sérvia.

“As autoridades do Kosovo têm soberania nominal sobre a totalidade do território, no que são militarmente apoiadas pelas forças da KFOR/NATO”, explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense. “Contudo, existe uma minoria sérvia, especialmente concentrada nas zonas à volta de Mitrovica (norte), que resiste em reconhecer as autoridades de Pristina e que é informalmente apoiada por Belgrado.”

Não foi a primeira vez que os sérvios kosovares bateram o pé nas ruas a novas propostas legislativas. “Tivemos uma situação semelhante em setembro de 2021. As barricadas duraram quase duas semanas. Seguiu-se um acordo de desescalada que falhou”, recorda ao Expresso Milica Andrić-Rakić, analista na ONG New Social Initiative, com sede em Mitrovica. “Um destes regulamentos foi aplicado duas vezes no passado sem quaisquer tensões. Uma terceira tentativa de aplicar a mesma coisa sem um acordo resultará no mesmo cenário. Mas sinto que a pressão da comunidade internacional para que ambos os lados negoceiem é agora maior.”

As medidas da polémica têm caráter burocrático, mas mexem com o nacionalismo das comunidades a que se destinam. Catorze anos após a separação do Kosovo em relação à Sérvia, está amplamente demonstrado que o sentimento de pertença não se impõe por decreto.

Milica Andrić-Rakić é sérvia kosovar e não hesita quando o Expresso lhe pergunta se se sente mais sérvia ou kosovar. “Eu não desenvolvi uma identidade cívica kosovar. Isso é algo bastante difícil para mim porque a minha comunidade tem tido graves problemas com diferentes Governos do Kosovo”, admite.

“Este tipo de tensões são comuns. Já aconteceram com governos anteriores e relativamente a diferentes questões. Mas tornaram-se mais frequentes com o [atual] Governo de Albin Kurti, que adotou uma abordagem mais rígida no que diz respeito àquilo que deseja negociar com a Sérvia.” Tido como um político da linha radical, Kurti foi em tempos designado de “Che Guevara do Kosovo”.

A falta de identificação da comunidade sérvia é apenas uma parte da complexidade desta questão. No livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita” (Edições Colibri, 2019), Raul Cunha vai às origens da relação umbilical entre o povo sérvio e o Kosovo: “O território do Kosovo foi o berço do Estado Medieval Sérvio. Esta região é considerada pelos sérvios como sendo a terra de origem da sua nacionalidade (o Kosovo e Metohija). (…) Na altura da formação do denominado Estado Medieval Sérvio, o território foi povoado na sua quase totalidade por uma população cristã ortodoxa. Torna-se natural assinalar o Kosovo como um território sérvio através da simples análise dos seus topónimos — todas as localidades têm nomes sérvios, inclusive a palavra Kosovo que provém da palavra sérvia kos, que significa melro ou pássaro negro”.

Ao Expresso, o militar destaca ainda a dimensão religiosa do problema, recordando que “a sede do patriarcado da igreja sérvia é em Peć, no Kosovo”, cuja população é esmagadoramente muçulmana. “Para mim, não faz sentido haver dois territórios com o mesmo povo, a mesma língua, mas que correspondem a países diferentes: o Kosovo e a Albânia. O Kosovo faz sentido como parte da Albânia”, diz Raul Cunha, admitindo a necessidade de haver uma divisão do território para contentar (e acalmar) as populações que não aceitem essa integração.

Um protetorado da ONU e da NATO

Hoje, o Kosovo goza de um estatuto invulgar face ao direito internacional. Dezenas de países reconhecem-no como um Estado soberano, mas dezenas de outros — com a Sérvia à cabeça — insistem que a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU ainda está em vigor e que é esse o quadro legal que vincula as partes. “Teoricamente, pelo direito internacional, o Kosovo ainda é um território sob administração das Nações Unidas”, explica Raul Cunha.

Aprovada em 1999, na sequência de 78 dias de bombardeamentos aéreos da NATO à Jugoslávia, em socorro da população albanesa do Kosovo reprimida pelo regime de Slobodan Milosevic — de que era porta-voz o atual Presidente sérvio, Aleksandar Vucic —, esta resolução estabeleceu as condições para que o Kosovo se tornasse de facto num protetorado da ONU. O território foi colocado sob administração da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK, ainda hoje em funções), com o objetivo de assegurar a administração civil. No terreno, era apoiada por uma missão da NATO (KFOR), que tinha a incumbência de garantir um ambiente seguro no território.

Esta solução seria transitória, até que as partes acordassem um estatuto final para o Kosovo, que ainda não aconteceu. Aos 14 anos de vida, a paz continua frágil e o país — reconhecido por Portugal — parece continuar necessitado dessas âncoras internacionais. Aquando da recente tensão, a KFOR — que tem atualmente 3770 tropas no terreno — emitiu um comunicado reconhecendo a gravidade da situação e afirmando-se preparada para intervir “se a estabilidade estiver comprometida”.

Uma questão coloca-se, pois, com legitimidade: estará a estabilidade do Kosovo refém da presença militar internacional? “Sim”, responde Raul Cunha. “A estabilidade do Kosovo depende sempre da decisão da NATO em continuar a defendê-lo. O Kosovo não teria qualquer hipótese contra as forças sérvias. Penso que a presença militar da NATO no território sentencia uma solução militar por parte da Sérvia. Seria um passeio para os sérvios.”

(IMAGEM Bandeiras da Sérvia e do Kosovo EURACTIV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Os candidatos que atrapalham a Ucrânia

A Ucrânia tem pressa em aderir à UE. Mas cinco países já estão na corrida. Um deles há mais de 20 anos

Mapa da Ucrânia colorido com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

A Ucrânia está em acelerada aproximação à União Europeia (UE) e o seu Presidente parece estar já em posse do calendário. “A fase final da grande maratona diplomática, que deve terminar dentro de semana e meia, começou hoje”, disse Volodymyr Zelensky há cinco dias, depois de ter recebido em Kiev a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Nesta maratona estamos realmente com a UE, em equipa, e essa equipa tem de vencer. Estou certo de que em breve receberemos uma resposta sobre o estatuto de candidato para a Ucrânia.”

Zelensky aponta ao Conselho Europeu da próxima semana, em Bruxelas, que irá discutir a urgência ucraniana em aderir à UE. A invasão russa precipitou também pedidos de adesão da Geórgia e da Moldávia. Entre os 27, António Costa tem sido dos dirigentes que mais tem contrariado o apelo às emoções do Presidente ucraniano, que pressiona por uma integração rápida. Em entrevista ao “Financial Times”, o primeiro-ministro português defendeu, esta semana, que Bruxelas arrisca criar “falsas expectativas” à Ucrânia. Talvez tenha em mente a morosidade do processo de Portugal, que, sem a complexidade geopolítica da Ucrânia, demorou nove anos a entrar na então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Na maratona em que Zelensky transformou o processo ucraniano há já cinco atletas em prova: o oitavo país muçulmano mais populoso do mundo e quatro dos Balcãs Ocidentais. Três estão em fase de negociações e dois esperam — e desesperam — pelo início formal do processo.

SÉRVIA E MONTENEGRO: Sprint até à meta

Estes países, que resultaram do desmembramento da antiga Jugoslávia, têm o estatuto de candidato à UE há 10 e 12 anos, respetivamente. Ambos têm negociações abertas com Bruxelas, mas a Sérvia (sete milhões de habitantes) enfrenta obstáculos políticos. À cabeça, a questão do Kosovo, com potencial para bloquear o processo. Belgrado não reconhece a independência da sua antiga província de maioria albanesa, como não o fazem cinco membros da UE, incluindo Espanha e Grécia.

O atual contexto de guerra na Ucrânia veio acrescentar complexidade ao dossiê sérvio. Tradicional aliado da Rússia (ambos de matriz cristã ortodoxa), Belgrado resiste a aplicar sanções a Moscovo. “É nossa expectativa que essas sanções também sejam apoiadas por todos os que se veem como candidatos à adesão à UE”, alertou, há uma semana, o chanceler alemão, Olaf Scholz, de visita à Sérvia. “Não respondemos a pressões dessas, em que alguém nos ameaça e temos de fazer alguma coisa…”, respondeu-lhe o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic.

O processo do Montenegro (600 mil habitantes) é bem menos trabalhoso. Este país, que ascendeu à independência em 2006 (separando-se da Sérvia por referendo), já conseguiu abrir negociações em todos os 33 capítulos previstos, tendo encerrado três.

TURQUIA: O atleta cansado que ameaça desistir

O sonho europeu da Turquia remonta ao longínquo ano de 1987, quando pediu adesão à CEE. Em 1999 obteve o estatuto de candidato. Membro da NATO e parceiro estratégico da UE em matéria de migrações, segurança e contraterrorismo, este processo começou a baquear face à agenda turca em matéria de democracia, Estado de direito e direitos humanos. Em 2018 as negociações congelaram.

Se a adesão turca nunca foi consensual dentro da UE — desde logo pelo peso demográfico do país (84 milhões de habitantes), que o colocava ao nível da poderosa Alemanha, e pela sua matriz muçulmana —, o atual contexto de guerra veio afastar ainda mais Ancara e Bruxelas. Não pela equidistância turca em relação a Kiev e Moscovo, mas perante a resistência à entrada da Finlândia e Suécia na NATO.

MACEDÓNIA DO NORTE E ALBÂNIA: Sem esperança de apanhar os da frente

Como aconteceu com Portugal e Espanha, a UE entendeu que as adesões da Albânia (três milhões de habitantes) e da Macedónia do Norte (dois milhões) deviam correr em paralelo, ainda que os macedónios tenham abordado as autoridades europeias muito antes dos albaneses: o pedido da Macedónia data de 2004 e o da Albânia de 2009. São candidatos desde 2005 e 2014, respetivamente.

A UE exigiu trabalho extra à Albânia, nomeadamente em áreas como o sistema judi­cial, a Administração Pública, os serviços de informação e o combate à corrupção e ao crime organizado.

Skopje foi solidária com Tirana e esperou. O inverso coloca-se agora, com o dossiê macedónio a marcar passo devido a objeções da Bulgária, que inviabiliza a unanimidade no Conselho. Já em 2019 a mudança de nome — de Antiga República Jugoslava da Macedónia para República da Macedónia do Norte — visou apaziguar a Grécia, que tem uma região chamada Macedónia.

Estão em causa obstáculos de natureza identitária relacio­nados com o reconhecimento mútuo de línguas, factos históricos que Macedónia e Bulgária reivindicam e a nacionalidade de alguns heróis. Em outubro, o Presidente búlgaro, Rumen Radev, disse que o seu país pode viabilizar a adesão se Skopje parar com o “apagamento subtil” da identidade dos macedónios búlgaros.

TRÊS PERGUNTAS A.. Isabel Santos

Eurodeputada, relatora do Parlamento Europeu para o processo de adesão da Albânia

A guerra deve tornar a adesão da Ucrânia prioritária?
Estamos a discutir a atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia quando há outros Estados que apresentaram candidatura, como a Moldávia e a Geórgia, e quando há expectativas criadas nos países que já têm esse estatuto. Alguns esperam há anos que seja marcada a primeira Conferência Intergovernamental (CIG), que é só o começo de um longo processo de negociações, de abertura e encerramento de diferentes dossiês, que levam a mudanças legislativas e reformas nos países até que ocorra o ato de adesão. A Comissão reconheceu, no fim de 2019, que a Macedónia do Norte e a Albânia tinham cumprido todas as condições para agendar a CIG.

Dada a objeção búlgara à Macedónia, não se pode separar esse processo do albanês?
É possível. Houve um momento em que a Macedónia parecia mais bem posicionada do que a Albânia, e a Macedónia foi solidária. Agora é ao contrário. Tenta-se manter uma certa solidariedade. Não está fora de questão que no futuro se venha a separar os processos. A Bulgária tem tido uma posição muito renitente em relação à Macedónia do Norte, baseada em argumentos profundamente nacionalistas e até pouco racionais. A Albânia alcançou todas as metas que lhe foram exigidas para avançar. É uma situação injusta.

Esta guerra pode levar a UE a recear alargar-se para Leste?
Não deve. O alargamento tem sido um processo de garantia de estabilidade, paz e desenvolvimento. Devemos continuá-lo. Olhando para os Balcãs e a sua história trágica, percebemos quão importante é este alargamento para a região, mas também para a estabilidade europeia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

Um país jovem, governado por jovens mas onde os jovens pensam em emigrar

As principais instituições políticas do Kosovo, o país europeu com a população mais jovem, estão nas mãos de trintões e quarentões. “Os jovens começaram a acreditar que há uma possibilidade de prosperidade no Kosovo e que não precisam de pensar em emigrar para a Europa ou para os Estados Unidos”, diz ao Expresso uma investigadora kosovar

O Kosovo é um país que leva a sua juventude ao exagero. É uma das nações mais recentes em todo o mundo — só é superado pelo Sudão do Sul —, tem a população mais jovem da Europa e tem as principais estruturas do poder político nas mãos de trintões e quarentões.

A Presidente do país, Vjosa Osmani, tem 38 anos; o primeiro-ministro, Albin Kurti, tem 46. E muitos dos outros membros do Governo, que tomou posse a 22 de março, nasceram da década de 1980, como os titulares das pastas das Finanças, da Justiça e da Economia. Os ministros mais velhos são de 1971.

“O primeiro-ministro, o Presidente e o presidente do Parlamento têm todos menos de 50 anos. A idade média dos ministros do Governo é de 40 anos. É uma nova geração de políticos, mas uma característica distintiva é que as três principais posições do Estado são ocupadas por pessoas que podem ser jovens em idade, mas não são novas na política”, diz ao Expresso a kosovar Engjellushe Morina, investigadora no Conselho Europeu de Relações Externas (ECFR).

“Kurti e Osmani estão na cena política do Kosovo há mais de 20 anos: Kurti desde 1997, quando liderou os protestos estudantis [na Universidade de Pristina, contra o regime jugoslavo de Slobodan Milosevic, que entre outras coisas os impedia de estudar albanês] e Osmani desde 2007, quando se tornou assessora do então Presidente Fatmir Sejdiu. Juntos, Kurti e Osmani conseguiram conquistar a velha guarda (velha não em idade, mas em termos de liderança partidária) composta sobretudo por pessoas que lutaram na guerra de 1999”.

A independência do Kosovo foi um parto longo e difícil. Após o desmembramento da Jugoslávia, no início da década de 1990, o Exército de Libertação do Kosovo pegou em armas e travou a luta pelo sonho independentista daquela província sérvia de esmagadora maioria albanesa. Em 1999, a NATO bombardeou posições sérvias durante 78 dias em apoio às populações kosovares reprimidas pelas forças leais a Belgrado.

“O Kosovo conquistou a independência a 17 de fevereiro de 2008. E os principais líderes do Exército de Libertação do Kosovo assumiram a liderança do país”, recorda ao Expresso a economista albanesa Isilda Mara, do Instituto de Viena para os Estudos Económicos Internacionais (WIIW). “Eles também eram muito jovens quando carregaram esse fardo sobre os ombros.”

Treze anos após a independência, o reconhecimento do Kosovo como Estado soberano continua a ser o principal cavalo de batalha das autoridades de Pristina. Mais de 100 países já o fizeram, mas alguns outros, politicamente na órbita da Sérvia  como a Rússia e a China — resistem a fazê-lo.

Recentemente, dois episódios revelaram como a afirmação da soberania kosovar é um desafio quotidiano. A 26 de fevereiro, a então ministra dos Negócios Estrangeiros kosovar, Meliza Haradinaj-Stublla (de 36 anos), enviou uma carta a um alto responsável da Netflix protestando contra o facto de os subscritores da plataforma de streaming residentes na República do Kosovo serem obrigados a localizar-se… na Sérvia.

A 31 de março, as seleções de futebol de Kosovo e Espanha enfrentaram-se numa partida de qualificação para o Mundial do Qatar. Espanha, a braços com a ambição independentista da Catalunha, não reconhece o Kosovo e, para não ser admoestada pela UEFA e pela FIFA, a federação espanhola acedeu a que a bandeira kosovar fosse hasteada no Estádio de la Cartuja, em Sevilha, e que o hino fosse tocado.

Porém, nos documentos oficiais e no áudio do estádio, a equipa kosovar foi identificada como “Federação de Futebol do Kosovo”, “território do Kosovo” ou somente “Kosovo”, mas nunca pelo nome oficial — República do Kosovo.

https://twitter.com/SEFutbol/status/1369263459192479753

Com o reconhecimento internacional transformado numa preocupação a tempo inteiro, o encanto daqueles que libertaram os kosovares do jugo sérvio foi-se perdendo à medida que os problemas do quotidiano foram ganhando dimensão.

  1. A taxa de desemprego é elevada sobretudo entre os jovens.
  2. A falta de desenvolvimento económico traduz-se numa grande dependência das remessas dos emigrantes.
  3. A corrupção, o crime organizado e o nepotismo estão em alta.
  4. O isolamento do país é uma realidade. Além de muitos países não reconhecerem o Kosovo, a UE ainda não isenta de visto os seus cidadãos.

A vez da meritocracia

Nas últimas eleições legislativas, a 14 de fevereiro passado, o partido de Albin Kurti — o Vetëvendosje (que em albanês significa Autodeterminação), de esquerda — obteve a confiança de 49,95% dos eleitores, conquistando 58 deputados num Parlamento de 120. Desde a independência, nunca um partido obtivera tanta confiança popular.

“Kurti fez uma campanha muito apelativa, especialmente para as gerações mais novas. Os jovens começaram a acreditar que há uma possibilidade de prosperidade no Kosovo e que não necessitam de pensar em emigrar para a Europa ou para os Estados Unidos”, diz Engjellushe Morina.

POPULAÇÃO DO KOSOVO

1.932.774
Total de habitantes do Kosovo, em julho de 2020

41%
dos kosovares têm idades até aos 24 anos, 42% têm entre 25 e 54 e 17% têm 55 ou mais anos

“Há uma crença acrescida de que é possível que as coisas funcionem e que é possível o envolvimento em movimentos que levem à mudança”, continua a investigadora kosovar. “A meritocracia começou também a ganhar terreno no Kosovo — algo que se tinha perdido nas últimas décadas, pois apenas os mais próximos dos círculos de poder e outros grupos de interesse poderiam ganhar e ter benefícios.”

“O espírito está em alta”, concorda Isilda Mara, “no sentido em que a nova liderança — com pessoas jovens, energia renovada e uma nova visão — trabalhará duramente pelos jovens e também para consolidar o novo Estado do Kosovo.”

Com o seu partido a conquistar quase 50% dos votos, Kurti personifica essa esperança, ainda que o seu percurso seja demonstração de uma singularidade na política kosovar… a duas semanas das eleições, o Tribunal Supremo decidiu que Kurti não poderia ir a votos, porque em 2018 fora condenado a 18 meses de prisão (pena suspensa). Três anos antes, era ele deputado, Kurti arremessara gás lacrimogéneo em plena sala do Parlamento para inviabilizar a votação de uma polémica demarcação da fronteira com o Montenegro.

Agora, “o Tribunal Supremo decidiu que Kurti não poderia candidatar-se a deputado, decisão que, no entanto, não o impedia de se tornar primeiro-ministro caso o seu partido vencesse, o que veio a acontecer”, explica Isilda Mara. “O Vetëvendosje ganhou e, enquanto líder do partido, ele pode ser primeiro-ministro”, mesmo sem ter sido eleito deputado.

Mas nem sempre a política “leva a melhor” sobre a justiça. A 5 de novembro de 2020, Hashim Thaçi demitiu-se da presidência do país após ter sido formalmente acusado de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade pelo Tribunal Especial para o Kosovo, com sede em Haia.

Thaçi terá de prestar contas pelos anos em que assumiu responsabilidades nas fileiras do Exército de Libertação do Kosovo. É ainda o passado de guerra a ensombrar o futuro do país.

(FOTO Esta bandeira do Kosovo, feita com mais de 127.400 origamis, valeu à autora, a artista kosovar Arbnora Fejza Idrizi, a entrada para o Guinness Book ARMEND NIMANI / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui