Hassan Nasrallah discursou esta sexta-feira, numa cerimónia alusiva ao Dia de Jerusalém, nos subúrbios de Beirute. O líder do Hezbollah defendeu que “a loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa”. Nasrallah disse que esta agressão marca um “antes” e um “depois” na região e que a frente libanesa está aberta a participar num ataque a Israel
Um pouco por todo o mundo muçulmano, assinalou-se, esta sexta-feira, o Dia de Jerusalém (Al-Quds, em árabe), um evento anual que visa expressar solidariedade com o povo palestiniano. Foi instituído há 45 anos pelo então Líder Supremo do Irão e fundador da República Islâmica, ayatollah Ruhollah Khomeini.
Este ano, o dia — sempre agendado para a última sexta-feira antes do fim do Ramadão — celebrou-se com tensão acrescida já que teve lugar escassos quatro dias após um ataque que voltou a abalar o Médio Oriente: o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, na Síria, atribuído a Israel.
“A resposta do Irão não respeitará um limite de tempo, os iranianos estão a pensar e a aprender, e certamente responderão”, alertou, esta sexta-feira o líder do grupo xiita libanês, Hassan Nasrallah, num discurso alusivo ao Dia de Jerusalém.
“Estai certos que a resposta do Irão ao bombardeamento do seu consulado em Damasco é inevitável”
Nasrallah disse que o ataque foi um “acontecimento significativo, que criou um ‘antes’ e um ‘depois’ em termos de consequências”.
“Em Israel, eles entraram em pânico e estão a abastecer-se de comida e água, não só no norte [próximo da fronteira com o Líbano], mas também no centro. O momento em que a resposta vai chegar depende da decisão do Líder Supremo [do Irão], e ela virá”, afirmou, numa intervenção transmitida por vídeo, numa cerimónia realizada no bairro de Dahiyeh, a sul de Beirute, capital do Líbano.
“A frente do Líbano não será fechada porque está altamente ligada a Gaza, esta é uma decisão firme”, ameaçou Nasrallah. “Estamos a travar uma batalha que escreverá a história da região.”
“Ainda não usamos as nossas principais armas”
No bombardeamento de Damasco, em que foram mortas onze pessoas, entre as quais sete membros dos Guardas da Revolução Iraniana, uma das vítimas foi o general iraniano Mohammad Reza Zahedi que “contribuiu para o desenvolvimento da resistência no Líbano”, realçou Nasrallah.
O líder do Hezbollah disse que a relação do Hezbollah com o Irão é “uma fonte de orgulho. Aqueles que devem sentir vergonha são os que procuram normalizar os laços com Israel”.
O Dia de Jerusalém aconteceu a dois dias de se assinalar meio ano da operação “Tempestade Al-Aqsa”, como o Hamas batizou o ataque a Israel, a 7 de outubro. Nasrallah considerou a investida “um acontecimento histórico que representou uma grande ameaça à sobrevivência da entidade sionista”.
“Alguns estão em negação em relação ao facto de Israel ter sido derrotado”, disse Nasrallah, acrescentando que, em meio ano de guerra, o Governo de Benjamin Netanyahu não foi capaz nem de destruir o Hamas nem de libertar os reféns.
“As atrocidades israelitas em Gaza são o resultado do fracasso e da falta de opções”
O líder do Hezbollah vaticinou que Netanyahu não tem opção que não seja acabar com a guerra, o que para ele será uma derrota. “A loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui
Mais uma linha vermelha foi ultrapassada na região do Médio Oriente. Teerão responsabilizou Israel pelo bombardeamento do seu consulado em Damasco, numa clara violação da sua soberania. O ataque vitimou mortalmente dois generais iranianos. “O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, defende um investigador iraniano
A guerra na Faixa de Gaza e as disputas geopolíticas em seu redor assemelham a região do Médio Oriente a um movimento de ondas sísmicas libertadas após um forte tremor de terra, com epicentro no território palestiniano e réplicas por toda a região.
Na fronteira israelo-libanesa, há trocas de fogo diárias entre o Hezbollah e as forças de Israel. A leste, o Iraque é palco de atritos frequentes entre as tropas dos Estados Unidos e milícias apoiadas pelo Irão. No mar alto, os rebeldes iemenitas hutis, solidários com os palestinianos, lançam mísseis de longo alcance contra embarcações comerciais associadas a Israel.
Noutra frente, num registo não declarado, Israel e o Irão combatem-se de forma indireta. A Síria é o teatro de operações onde Telavive e Teerão mais ficam frente a frente — o país tem fronteira com Israel e dá guarida a forças iranianas. E foi precisamente nesta nação árabe que, esta segunda-feira, os dois países escalaram significativamente a tensão entre ambos.
Pelas 17 horas em Damasco (15h em Portugal Continental), um bombardeamento atingiu com precisão o consulado iraniano na capital síria, reduzindo-o a escombros. O Irão acusou Israel, que não refutou a acusação, remetendo-se ao silêncio.
Violação de duas soberanias
“Para Teerão, este ataque foi uma violação do espaço soberano sírio e, mais ainda, do seu próprio espaço soberano, porque o consulado, ao abrigo das convenções de Viena, que foram ratificadas pelos três Estados envolvidos, é território iraniano”, explica ao Expresso o professor Tiago André Lopes, da Universidade Portucalense.
“Há a perceção de que Israel está a violar direito soberano”, acrescenta o especialista em Relações Internacionais. “E as violações de soberania não podem contar só quando são a Rússia ou a China a fazê-las. Uma violação de soberania é sempre uma violação de soberania.”
Num telefonema para o seu homólogo sírio, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amirabdollahian, responsabilizou Israel pelo que designou ser “uma violação de todas as convenções internacionais”.
Retaliação por ataque a base naval
O ataque em Damasco foi desencadeado horas depois de um drone ter alvejado uma base naval israelita em Eilat (sul), junto ao Mar Vermelho, numa ação reivindicada por uma milícia iraquiana apoiada pelo Irão (Resistência Islâmica no Iraque). O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, afirmou que o aparelho usado foi “fabricado no Irão” e que o ataque foi “dirigido pelo Irão”.
A retaliação a este incidente no sul de Israel fez-se sentir em Damasco. Segundo o embaixador iraniano na Síria, Hossein Akbari, o ataque “foi realizado por caças F-35” que dispararam seis mísseis contra o edifício. Só o portão ficou de pé, relatou à televisão pública iraniana.
No total, foram mortas 11 pessoas, incluindo sete membros dos Guardas da Revolução, dois deles com a patente de general. Mohammed Zahedi, veterano de 63 anos, liderou a Força Quds no Líbano e na Síria até 2016. Esta força, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro dos Guardas da Revolução que coordena o apoio de Teerão a grupos armados no Médio Oriente.
O regime israelita “deveria saber que, com tais ações desumanas, nunca alcançará os seus objetivos sinistros”, reagiu o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi. “E, dia após dia, testemunhará o fortalecimento da Frente de Resistência e a repulsa e o ódio das nações livres pela sua natureza ilegítima. Este crime covarde não ficará sem resposta.”
“O ataque de Israel ocorreu num local diplomático que é considerado território do Irão. O nível do ataque é tal que a mensagem dissuasora do Irão terá de ser muito forte”, disse ao Expresso Javad Heirannia, diretor do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão. “Mas não me parece que o Irão vá demonstrar essa reação de momento, porque faria com que a atenção à guerra em Gaza se voltasse para a guerra com o Irão. E traria a América para essa guerra, o que não é desejável para o Irão.”
O ataque ao consulado iraniano suscitou outra leitura nos bastidores do regime dos ayatollahs. “No Irão, há a ideia de que os Estados Unidos deram carta branca a Israel para fazer o que quiser. Há a perceção de que Israel é um proxy do braço armado dos Estados Unidos”, refere Tiago André Lopes.
Para esta perceção contribuíram declarações como as proferidas, sexta-feira passada, pelo ministro da Defesa de Israel. Yoav Gallant afirmou que “Israel está a fazer a transição da defesa para a perseguição ao Hezbollah; chegaremos onde quer que a organização opere, em Beirute, em Damasco e mais além”. E prometeu: “Onde quer que precisemos de agir, agiremos.”
“Para o Irão, Israel é sempre visto como uma espécie de instrumento”, acrescenta o investigador português. “O Irão não reconhece o Estado de Israel porque olha para Israel quase como uma espécie de colonato americano para os Estados Unidos terem um pé na região. O Irão olha para Israel do mesmo modo que a Rússia e a Sérvia olham para o Kosovo.”
Não foi a primeira vez que Israel atacou território sírio visando agentes com ligações ao Irão. Nos últimos dez anos, fê-lo com regularidade para abortar a entrega de armas enviadas por Teerão para aliados na região, seja o regime de Bashar al-Assad, na Síria, seja o grupo xiita Hezbollah, no Líbano.
Porém, “depois da guerra em Gaza, Israel atacou, sem precedentes, os principais comandantes da Força Quds. Normalmente, os alvos eram posições dos Guardas da Revolução e grupos aliados do Irão, mas recentemente Israel tem alvejado os altos comandantes dos Guardas da Revolução”, diz Heirannia.
“Israel está sob muita pressão interna e ao nível da opinião pública global”, diz o iraniano. “Uma guerra com o Irão reduzirá essa pressão e a atenção será direcionada para o Irão. Por outro lado, aproximará de Israel a América e os países ocidentais, que têm estado divididos como resultado da guerra de Gaza.” Em contrapartida, “a falta de reação por parte de Teerão levará Israel a tomar medidas mais severas contra o Irão.”
Tiago André Lopes defende que é provável que o Irão recorra aos seus proxies para retaliar o ataque que sofreu em Damasco. O contexto que envolve particularmente um deles — a Resistência Islâmica no Iraque, que visou Eilat esta semana — está atualmente efervescente.
“Os Estados Unidos estão a ser empurrados para fora do Iraque. O Governo de Bagdade está a negociar a saída das tropas americanas” — uns 2500 soldados que restam no país. “Este movimento, que também opera na Síria, poderá ser agora usado para dar uma espécie de contra resposta àquilo que aconteceu em Damasco.”
“A acontecer, o embate com Israel acontecerá sempre com uma capa, que será a proteção dos palestinianos”, conclui o professor da Portucalense. “A capa escolhida será sempre essa, porque o único outro grupo que poderia unir a região tem a oposição da Turquia que são os curdos. A questão dos curdos é mais difícil, a palestiniana é mais unificadora.”
(Bandeira do Irão junto aos escombros em que se transformou o consulado iraniano em Damasco, atingido por mísseis FIRAS MAKDESI / REUTERS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui
Em três meses, o conflito na Faixa de Gaza assumiu uma dimensão regional, com vários Estados a envolverem-se em trocas de fogo. A Palestina é o argumento útil, mas vários países atacam no interesse de agendas próprias
INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO
A ofensiva de Israel na Faixa de Gaza destapou o vespeiro da conflitualidade no Médio Oriente. Desde o início da guerra, a 7 de outubro, nove Estados da região já dispararam contra vizinhos. Se países como o Líbano e a Síria têm uma grande exposição ao problema israelo-palestiniano, atores internos no Iraque e no Iémen parecem agir por controlo remoto.
O Irão saiu da sombra e passou a protagonista, bombardeando três países, um deles o Paquistão, uma potência nuclear. A Turquia confirmou que mantém o foco na questão curda. E até a discreta Jordânia alvejou um vizinho.
Israel ➨ Faixa de Gaza
O ataque terrorista do Hamas a Israel, a 7 de outubro, entrou para a memória coletiva do povo judeu como uma espécie de 11 de Setembro, pela sua surpresa, dimensão, impacto emocional e pela vulnerabilidade que evidenciou um país reconhecido pela eficácia dos seus serviços de informação.
Israel retaliou contra a Faixa de Gaza, o território palestiniano controlado pelo grupo islamita, inicialmente com bombardeamentos aéreos posteriormente combinados com uma ofensiva terrestre. No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse à nação que Israel não parará até “destruir as capacidades do Hamas”.
Ainda que a maioria dos foguetes tenham sido intercetados pelo Iron Dome, o escudo defensivo de Israel, ou caído em descampados, o seu disparo revela capacidade desafiante do Hamas e é, para as comunidades israelitas próximas da fronteira, um reviver permanente do terror vivido a 7 de outubro.
Líbano ➨ Israel
Mal começou a guerra em Gaza, a fronteira norte de Israel tornou-se numa frente de conflito, com troca de fogo de parte a parte e vítimas mortais ocasionais dos dois lados. O sul do Líbano é um bastião do Hezbollah, uma milícia xiita (e também partido político, com deputados e ministros) cujo nascimento está intrinsecamente ligado à invasão israelita do sul do Líbano, em 1982, e subsequente ocupação, até ao ano 2000.
A luta contra a ocupação israelita da Palestina e também contra a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente são prioridades para o Hezbollah. Os ataques ao longo da fronteira com Israel são, por isso, frequentes, mas com a guerra em Gaza tornaram-se diários e mais intensos.
Israel ➨ Líbano
Para Israel, a sua fronteira norte é um local de tensão permanente desde que se retirou do sul do Líbano. Desde 7 de outubro, as forças israelitas têm não só alvejado posições do Hezbollah como também já atacaram nos subúrbios de Beirute, para eliminar um alto responsável do Hamas.
Este estado de guerra forçou a transferência de milhares de habitantes do norte de Israel para locais mais seguros.
Na fronteira entre Israel e Líbano, que foi demarcada pela ONU (Linha Azul), existe, desde 1978, uma missão de capacetes azuis (UNIFIL), que não tem, porém, dissuadido a troca de fogo de parte a parte.
Israel ➨ Síria
Os ataques israelitas em território sírio não são inéditos e, desde 7 de outubro, já ocorreram por diversas vezes, visando, entre outros, o Aeroporto Internacional de Damasco.
Os alvos de Israel, para além de posições do exército sírio, são prioritariamente grupos armados apoiados pelo Irão e combatentes do Hezbollah libanês, que foram cruciais para a sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad, após os protestos da Primavera Árabe e a guerra civil que se lhe seguiu.
A Síria mantém com Israel uma disputa territorial em torno dos Montes Golã, que Israel ocupou na guerra de 1967, anexou através de uma lei de 1981, mas que os sírios continuam a reivindicar.
Iémen ➨ Israel
No Iémen quem manda são os hutis, um grupo que conquistou o poder pela força em 2014, mas que não é reconhecido como um interlocutor legítimo pela comunidade internacional.
Estes rebeldes iemenitas, que controlam a costa ocidental do país, declararam apoio aos palestinianos e mostraram-no ameaçando navios em trânsito pelo Mar Vermelho com origem ou a caminho de portos em Israel.
Em retaliação ao assédio dos hutis às embarcações que percorrem esta via marítima, por onde passa 12% do comércio mundial, forças dos Estados Unidos e, por uma vez, também do Reino Unido já bombardearam posições dos hutis dentro do Iémen.
Irão ➨ Iraque
A 3 de janeiro, um duplo atentado suicida reivindicado pelo Daesh, na cidade iraniana de Kerman, provocou 94 mortos. O Irão retaliou esta semana e um dos alvos foi Erbil, na região autónoma do Curdistão iraquiano (norte), onde Teerão disparou 11 mísseis balísticos contra o que diz ser um centro de espionagem da Mossad (serviços secretos de Israel).
O Iraque, cuja população é maioritariamente xiita, como o Irão, ainda alberga tropas norte-americanas que ali ficaram após ajudarem no combate ao Daesh. Não raras vezes, os militares dos EUA investem contra milícias locais ligadas ao Irão e são eles próprios um alvo das mesmas, como tem acontecido desde 7 de outubro.
Esta semana, o primeiro-ministro do Iraque defendeu a saída das tropas norte-americanas do país.
Irão ➨ Síria
Paralelamente ao ataque na região iraquiana de Erbil, os Guardas da Revolução Islâmica, uma unidade de elite das Forças Armadas iranianas, atacaram também dentro da Síria, com a qual o Irão não tem fronteira.
Quatro mísseis balísticos foram lançados desde a província de Khuzestan, a oeste do Irão, na direção de posições do Daesh em Idlib, numa resposta direta aos atentados em Kerman.
Nesta região do noroeste da Síria, persiste ainda um foco rebelde de contestação ao regime sírio, que é apoiado pelo Irão. Neste ataque, noticiou a agência iraniana IRNA, Teerão disparou “nove mísseis de vários tipos” contra “grupos terroristas em diferentes áreas dos territórios ocupados na Síria”.
Turquia ➨ Iraque
O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem sido dos líderes mais vocais contra o primeiro-ministro de Israel, ao ponto de já ter dito que Benjamin Netanyahu “não é diferente de Hitler”. Mas paralelamente ao seu apoio à Palestina, há uma questão maior no posicionamento da Turquia na região: o independentismo curdo.
Dentro de portas, os curdos são uma ameaça separatista que Ancara tenta combater também nos países da vizinhança onde vivem minorias curdas.
No sábado passado, caças turcos alvejaram posições no Curdistão iraquiano (norte), onde a Turquia tem várias bases militares. Na véspera, um ataque a uma dessas bases atribuído ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla inglesa) provocou nove mortos entre os militares turcos.
Turquia ➨ Síria
Os curdos foram o alvo de bombardeamentos turcos também na Síria, dentro do mesmo espírito que levou Ancara a atacar no Curdistão iraquiano.
Segundo o Ministério da Defesa da Turquia, foi alvejado um total de 29 localizações — incluindo “cavernas, bunkers, abrigos e instalações petrolíferas” — associadas ao PKK e às Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa). Esta organização armada da região do Curdistão sírio teve um papel central na coligação liderada pelos EUA que derrotou o Daesh na Síria.
Dos quatro países do Médio Oriente que têm populações curdas — Turquia, Síria, Iraque e Irão —, a Síria é a que tem a minoria mais pequena.
Irão ➨ Paquistão
No dia seguinte a ter atacado no Iraque e na Síria, o Irão bombardeou também o Paquistão. Os dois países partilham uma fronteira de 900 quilómetros e um inimigo comum: os separatistas do Balochistão, uma região rica em gás e minérios, atravessada pela fronteira entre ambos.
Na terça-feira, o Irão usou drones e mísseis para alvejar posições do Jaish al-Adl, um grupo sunita composto por baloches envolvido em ataques dentro do Irão, numa área remota e montanhosa dessa região separatista. Morreram duas crianças e três civis ficaram feridos.
O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esclareceu que os alvos dos bombardeamentos não foram paquistaneses, mas “terroristas iranianos presentes em solo paquistanês”. A 15 de dezembro, 11 polícias iranianos tinham sido mortos num ataque a uma esquadra, perto da fronteira com o Paquistão.
Paquistão ➨ Irão
Islamabade respondeu ao ataque do Irão mandando chamar o seu embaixador em Teerão e disparando mísseis contra a província iraniana de Sistão e Balochistão. O bombardeamento, que teve como alvo outro grupo separatista — a Frente de Libertação Baloche —, provocou nove mortos (nenhum tinha nacionalidade iraniana).
Os ataques entre estes dois países originaram posições de condenação de parte a parte e acusações de violação da soberania, mas a relação não congelou.
No mesmo dia em que o Irão atacou o Paquistão, os dois países realizaram um exercício naval com navios de guerra, no Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. E no dia seguinte (véspera da retaliação do Paquistão), os dois ministros dos Negócios Estrangeiros deitaram água na fervura e conversaram ao telefone.
Esta sexta-feira, o Governo paquistanês anunciou que o seu país e o Irão concordaram em diminuir as tensões após a troca de violentos ataques esta semana.
“Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros concordaram que a cooperação e a coordenação no combate ao terrorismo e outras áreas de interesse comum devem ser reforçadas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, no final de uma chamada telefónica entre os dois governantes.
Jordânia ➨ Síria
Não foram razões políticas que estiveram na origem de bombardeamentos atribuídos à Jordânia em território sírio, mas, ao estilo de uma guerra sem regras, entre os dez mortos que o ataque provocou havia crianças.
O alvo, na quinta-feira, foi a província de Sweida, no sudoeste da Síria, uma zona não muito distante da fronteira com a Jordânia. Terá sido um esforço para atingir o tráfico de drogas — nomeadamente da anfetamina Captagon, usada pelos terroristas do Daesh para facilitar a matança — e perturbar o seu fluxo para dentro do reino hachemita.
As autoridades de Amã não se pronunciaram sobre o caso, mas é conhecido que, no passado, o país já recorreu a ataques desta natureza para atingir grupos dedicados ao narcotráfico, bem organizados e armados.
No ano passado, o Governo do Reino Unido defendeu que o Captagon é uma “tábua de salvação financeira” para a máquina de guerra do regime sírio.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui
Nove anos de bombardeamentos da Arábia Saudita não quebraram os hutis. Ao estilo de piratas modernos, armados até aos dentes, os rebeldes do Iémen transformaram o Mar Vermelho num campo de batalha, em nome da solidariedade com os palestinianos. Após serem bombardeados pelos Estados Unidos, esta segunda-feira alvejaram com um míssil um navio de carga americano. Para lá do impacto regional, esta escalada é uma ameaça ao processo de paz que vinha a ganhar forma no Iémen
INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO
A guerra na Faixa de Gaza, que cumpriu 100 dias no domingo, já pôs em ebulição países além de Israel e dos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Gaza). No sul do Líbano, o movimento xiita Hezbollah alimenta confrontos diários com tropas israelitas concentradas no norte do Estado judeu.
No Iraque, aumentaram as hostilidades entre milícias apoiadas pelo Irão e tropas dos Estados Unidos no país. Na Síria, membros dos Guardas da Revolução do Irão foram assassinados em bombardeamentos atribuídos a Israel. Mais recentemente, a guerra transbordou para o Mar Vermelho e inundou o Iémen.
Desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em retaliação pelo ataque do Hamas de 7 de outubro, os hutis do Iémen declararam apoio aos palestinianos, em palavras e ações. Este grupo rebelde — que tomou o poder pela força em 2014 e controla, atualmente, a costa ocidental do país — fê-lo direcionando o seu poder de fogo para navios em trânsito pelo Mar Vermelho, uma via de navegação crucial para o comércio mundial.
Ao estilo de piratas dos tempos modernos, equipados com drones e vários tipos de mísseis, os hutis escolheram como alvo embarcações que seguiam de e para portos de Israel. A ação mais espetacular ocorreu a 19 de novembro, quando sequestraram o cargueiro Galaxy Leader — com ligações ao empresário israelita Abraham “Rami” Ungar —, com uma abordagem ao navio feita por uma unidade de comandos hutis a bordo de um helicóptero.
Sexta-feira passada, Estados Unidos e Reino Unido alvejaram posições militares dos hutis no interior do Iémen. Numa declaração divulgada pela Casa Branca, o Presidente Joe Biden disse ter ordenado os bombardeamentos “em resposta direta a ataques sem precedentes realizados pelos hutis contra embarcações internacionais no Mar Vermelho”. Na véspera, as forças dos dois países tinham intercetado 21 drones e mísseis disparados pelos hutis.
No sábado, os Estados Unidos voltaram a atacar os hutis, desta vez a solo. No dia seguinte, os rebeldes responderam disparando um míssil de cruzeiro (que foi intercetado) na direção do contratorpedeiro USS Laboon, da Marinha dos Estados Unidos. Já esta segunda-feira, um navio de carga americano foi atingido por um míssil balístico atirado pelos hutis.
“Se o objetivo dos bombardeamentos [dos Estados Unidos e do Reino Unido] foi forçar os hutis a cessar os seus ataques no Mar Vermelho, não funcionará. Pouco depois dos ataques, os hutis prometeram retaliar ferozmente. Isto pode assumir a forma de ataques crescentes a navios americanos e britânicos ou atingir ativos dos Estados Unidos na região. De uma forma ou de outra, a situação provavelmente vai piorar”, analisou ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do Iémen na Universidade de Nova Iorque.
“Paradoxalmente, os hutis beneficiam com os bombardeamentos, uma vez que permitem que eles se aproveitem do seu sentimento pró-Palestina. Também ajuda-os a provar a sua narrativa de que o verdadeiro inimigo são os EUA. Os hutis há muito que construíram a sua legitimidade com base na hostilidade contra os Estados Unidos e Israel, pelo que estes ataques aumentam a sua popularidade — distraindo a população dos problemas internos.”
O Comando Central dos Estados Unidos — que dirige operações militares com países aliados em apoio dos interesses de Washington e cuja prioridade é “deter o Irão” — rotulou os ataques a infraestruturas militares dos hutis de medidas defensivas destinadas a diminuir a capacidade bélica dos rebeldes. Mesmo a um nível operacional, a eficácia dos bombardeamentos ocidentais é questionável.
Desde março de 2015, os hutis têm sido alvo de uma campanha militar da Arábia Saudita — a Operação Tempestade Decisiva —, que começou com bombardeamentos aéreos, prosseguiu com um bloqueio naval ao Iémen e uma invasão terrestre. Em resposta, a infraestrutura petrolífera saudita foi fortemente atingida por ataques hutis.
Nove anos depois do seu início, contudo, a ofensiva de Riade não enfraqueceu os hutis, não os privou de um arsenal potente nem os inibiu de uma postura desafiante. O grupo controla a parte ocidental do Iémen, incluindo o Estreito de Bab al-Mandeb, à entrada do Mar Vermelho.
Quem são os hutis?
A investida saudita no Iémen começou cerca de meio ano depois de os hutis irromperem pela capital, Saná, e conquistarem o poder, a 21 de setembro de 2014. Começou então uma guerra civil num dos países mais pobres do mundo, com várias reivindicações separatistas, um braço ativo da Al-Qaeda e onde se passa fome e uma criança morre a cada dez minutos.
O objetivo de Riade passou por depor os hutis e devolver o poder ao governo do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi, reconhecido pela comunidade internacional. Em vão.
Na histórica disputa pela hegemonia no Médio Oriente — entre a Arábia Saudita (monarquia árabe sunita) e o Irão (república persa xiita) —, os hutis estão na esfera de influência de Teerão, o que torna o Iémen uma peça importante no xadrez das rivalidades regionais. Mas quem são os hutis?
O grupo tem origem na região de Sa’dah, no noroeste do Iémen, negligenciada pelo poder central, durante décadas, em termos políticos, económicos e sociais. Sa’dah é o centro espiritual do zaidismo, uma corrente do Islão xiita.
Nos anos 80, a região tornou-se ainda mais periférica, quando a Arábia Saudita promoveu a disseminação do sunismo radical no país, marginalizando os crentes zaiditas. Esta situação levou à emergência de um movimento de resistência — designado por “Juventude que Acredita” —, que aliava revivalismo religioso e ativismo social.
A sua agenda foi formatada por um clérigo zaidita e membro do Parlamento do Iémen, de seu nome Hussein Badreddin al-Houthi. Com a cabeça a prémio e uma recompensa choruda anunciada pelo governo iemenita pela sua captura, a 10 de setembro de 2004 as autoridades confirmaram a sua morte, em confrontos com as forças de segurança do país.
O seu grupo armado, formalmente designado “Ansar Allah” (Apoiantes de Deus), passou a ser conhecido, informalmente, pelo seu nome de família: os “hutis”.
Irão assobia para o lado
Para os hutis, o Irão era um apoio crucial para a sua manutenção no poder. Para a Arábia Saudita, o grupo tornou-se uma ameaça xiita no calcanhar da Península Arábica esmagadoramente sunita. “Ao longo dos anos, a relação dos hutis com o Irão tornou-se inegavelmente mais forte. Teerão ajudou-os com armas, tecnologia para mísseis guiados antitanque e informação”, diz Veena Ali-Khan.
“Neste momento, é difícil identificar o papel preciso do Irão na escalada do Mar Vermelho, por as provas serem limitadas. No entanto, parece improvável que os hutis tenham escalado a situação a tal ponto sem aprovação ou envolvimento do Irão. Em última análise, isto faz parte da estratégia de Teerão de negação plausível, através da qual podem usar os hutis para escalar, mantendo ao mesmo tempo a posição pública de que não têm nada que ver com os ataques.”
Em abril de 2022, as Nações Unidas mediaram com sucesso uma trégua nos combates no Iémen que comprometeu os rebeldes hutis, o Governo internacionalmente reconhecido e milícias aliadas deste último. Este cessar-fogo, prorrogado duas vezes, expirou em outubro desse ano, mas as partes continuaram a respeitá-lo, numa atitude que indicia vontade — ou urgência — em resolver o conflito.
No atual adensar da tensão em torno do Iémen, a Arábia Saudita anunciou que acompanha a situação com “grande preocupação” e apelou à “contenção e prevenção da escalada”, noticiou a agência oficial saudita. Riade é um aliado fundamental dos Estados Unidos, que fornecem cerca de 80% do total das importações de armamento dos sauditas.
No Iémen, “o cessar-fogo de facto permanece em vigor, mas não existe documento oficial que o vincule. À medida que a probabilidade de uma escalada regional aumenta a cada dia, a fragilidade do processo de paz do Iémen torna-se evidente”, defende a investigadora.
“A Arábia Saudita apresentou uma proposta ao Enviado Especial da ONU para o Iémen [o diplomata sueco Hans Grundberg] no final do ano passado, dando um passo positivo. No entanto, não houve qualquer anúncio sobre o cronograma da aplicação do acordo entre hutis e sauditas, nem sobre para quando se espera o início das conversações intra-iemenitas. Até estes detalhes serem definidos, os iemenitas permanecerão no limbo.”
O apoio que os hutis recebem do Irão inscreve os rebeldes iemenitas no chamado “eixo da resistência”, que serve os interesses da República Islâmica na região, e de que fazem parte também o libanês Hezbollah e o palestiniano Hamas.
Mas a sua identidade xiita não significa que os hutis vão cair sob a influência iraniana por omissão, já que só a Arábia Saudita poderá dar garantias de um cessar-fogo de longo prazo. Os hutis têm, pois, margem para conversar com os dois gigantes e refazer as suas alianças regionais.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui
Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana
Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.
IÉMEN
Acordo é bom, mas falta ouvir os locais
Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.
“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”
No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.
“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”
Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.
Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.
Síria
Guerra não acabou, mas Assad manda
A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.
Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.
Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.
“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”
Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.
Líbano
Polarização e crise não são prioridades
O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.
Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.
Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.
A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.
“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”
Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.
Iraque
Arena de diálogo para amaciar
Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.
Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.
Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.
Bahrain
A curta distância dos dois gigantes
Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.
Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.
Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.
Quem fica a perder?
ISRAEL
O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”
TURQUIA
“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.