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A Rússia não está isolada no seu ataque à Ucrânia: estes são os seis países que estão solidários com Moscovo

A condenação generalizada à invasão russa de território da Ucrânia não teve repercussão num conjunto de países. A maioria deles é castigada, há anos, por sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos

BIELORRÚSSIA

A entrada de tropas russas na Ucrânia concretizou-se por três frentes, uma das quais a partir de território bielorrusso. O país liderado por Aleksandr Lukashenko, que está no poder desde 1994 — longevidade que lhe vale o epíteto de “o último ditador da Europa” —, é um sólido aliado da Rússia.

Entre 10 e 20 de fevereiro, a realização de exercícios militares entre forças russas e bielorrussas contribuiu fortemente para a escalada da tensão na região. E com razão, já que no dia depois de terminarem, Moscovo reconheceu a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, ao que se seguiu a invasão da Ucrânia.

A permanência das tropas russas em território bielorrusso terminadas as manobras militares conjuntas indiciava o pior. A Bielorrússia deve lutar pela “sua independência” e contra a “ditadura”, apelou então a líder da oposição Svetlana Tikhanovskaya — tida pelo Ocidente como a vencedora das presidenciais de 2020 e que vive exilada —, considerando que a soberania do seu país estava ameaçada pela presença militar russa.

No próximo domingo, poderá ser dado mais um passo no crescente domínio de Moscovo sobre Minsk. Os bielorrussos estão convocados para se pronunciarem num referendo sobre alterações à Constituição e entre os assuntos em questão está a possibilidade de o Presidente Lukashenko autorizar a instalação de armas nucleares russas naquela antiga república soviética.

VENEZUELA

“A Venezuela está com Putin e com a Rússia, está com as causas corajosas e justas do mundo, e vamo-nos aliar cada vez mais”, reagiu, de forma inequívoca, Nicolás Maduro, às notícias da invasão russa da Ucrânia. O Presidente venezuelano acrescentou que a NATO e os Estados Unidos querem acabar militarmente com a Rússia por estarem “habituados a fazer o que querem no mundo”.

Na semana passada, quando da passagem por Caracas do vice-primeiro-ministro russo Yuri Borisov, os dois países assinaram um acordo de cooperação militar. Maduro defendeu que este compromisso “confirmou o caminho para uma poderosa cooperação militar entre Rússia e Venezuela para defender a paz e a soberania”.

As relações entre Moscovo e Caracas estreitaram-se sobretudo com Hugo Chávez, o antecessor de Maduro que ocupou o Palácio de Miraflores entre 1999 e 2013. Então, o venezuelano aproveitou o boom do petróleo, de que a Venezuela é produtora, e comprou aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

Para a Venezuela, a Rússia é um mercado que permite contornar o efeito das sanções internacionais decretadas ao país. Este alinhamento entre os dois países já se fez sentir noutras crises. Em 2008, a Venezuela foi dos poucos países a reconhecer a independência das regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul, em território da Geórgia.

SÍRIA

O grande aliado da Rússia na conturbada região do Médio Oriente tornou-se o segundo Estado em todo o mundo a reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A decisão confirma a solidez da relação entre estes dois países.

É na Síria — em Tartus — que Moscovo tem a sua única base militar que lhe permite o acesso aos mares quentes (no caso o Mediterrâneo) e por isso navegáveis. A conservação deste local estratégico, num país que está em guerra desde 2011, justifica o apoio direto e incondicional da Rússia a Bashar al-Assad, que deve a Vladimir Putin a sua permanência no poder.

No atual contexto, foi a vez do regime sírio colocar-se ao lado das opções belicistas de Moscovo. “A Síria apoia a decisão do Presidente Vladimir Putin de reconhecer as repúblicas de Luhansk e Donetsk”, afirmou Faisal Mekdad, o ministro sírio dos Negócios Estrangeiros. “O que o Ocidente está a fazer contra a Rússia é igual ao que fizeram contra a Síria durante a guerra terrorista.”

À semelhança da Venezuela, também a Síria reconheceu, no passado, as ex-repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como Estados independentes.

NICARÁGUA

Daniel Ortega, na presidência da Nicarágua desde 2007, esteve com a Rússia desde a primeira hora desta crise. “O Presidente Putin deu hoje um passo com o qual o que fez foi reconhecer algumas repúblicas que, desde o golpe de 2014, não reconheceram os governos golpistas [na Ucrânia] e estabeleceram o seu governo e lutaram”, disse na segunda-feira, na sequência do reconhecimento russo da independência de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

Ao mencionar o golpe de 2014, Ortega referia-se à deposição do então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, na sequência das manifestações populares que duraram meses e que ficaram conhecidas como Euromaidan. Este protesto saiu, pela primeira vez, às ruas de Kiev na noite de 21 de novembro de 2013, após a decisão do Governo de suspender a assinatura de um Acordo de Associação entre a Ucrânia e a União Europeia (UE). Hoje, Yanukovych vive exilado na Rússia.

Para o líder da Nicarágua, a UE e os Estados Unidos “vêm cercando e ameaçando a Rússia” desde 2014. “A Ucrânia está a procurar uma maneira de entrar na NATO, e entrar na NATO é dizer: vamos à guerra com a Rússia. Isso explica porque a Rússia age do jeito que age. Está simplesmente a defender-se.”

A boa relação entre a Rússia e a Nicarágua decorre muito da experiência guerrilheira de Daniel Ortega, na década de 1980, nas fileiras da Frente Sandinista (marxista). Na cadeira do poder, continua a verbalizar a sua oposição à influência dos Estados Unidos na América Central e — como o revela o problema da Ucrânia — em todo o mundo.

Os EUA, por seu turno, consideraram fraudulentas as eleições presidenciais de 7 de novembro do ano passado, na Nicarágua — que oficialmente Ortega venceu com 76% dos votos — e impuseram sanções a representantes do Estado.

CUBA

É outro país castigado por sanções internacionais, que vive sob embargo dos Estados Unidos desde 1958. Já com a ofensiva russa sobre a Ucrânia em curso, uma delegação parlamentar da Rússia, encabeçada pelo presidente da Duma (Parlamento), Vyacheslav Volodin, realizou uma visita de dois dias à ilha que é governada pelo Partido Comunista há mais de 60 anos.

“A determinação dos Estados Unidos em impor a progressiva expansão da NATO até às fronteiras da Federação Russa constitui uma ameaça à segurança nacional deste país e à paz regional e internacional”, defendeu o Ministério cubano dos Negócios Estrangeiros, num comunicado divulgado pouco antes da chegada dos políticos russos. “Cuba defende uma solução diplomática através do diálogo construtivo e respeitoso.”

https://twitter.com/cubaminrex/status/1496694614954237958

A visita à ilha caribenha foi facilitada por uma decisão, esta semana, da câmara baixa da Duma, no sentido de adiar para 2027 o pagamento devido por Havana de algumas tranches da dívida cubana. Em causa está uma verba de 2300 milhões de dólares (2000 milhões de euros), concedidos pela Rússia a Cuba entre 2006 e 2019, para investimentos nas áreas da energia, dos metais e em infraestruturas de transportes.

NAURU

Antes de qualquer explicação, impõe-se localizar este país no mapa-mundo. Independente do Reino Unido desde 1968, Nauru é uma ilha do Pacífico que, em 1999, aderiu às Nações Unidas. Nesta organização, Nauru representa também os interesses da Ossétia do Sul, uma ex-república separatista da Geórgia que autoproclamou a sua independência em 2008, prontamente reconhecida pela Rússia.

A relação privilegiada entre Nauru e a Ossétia do Sul começou a ganhar forma em 2009 quando a pequena ilha seguiu a posição de Moscovo e também procedeu ao reconhecimento da soberania desse território, e também da Abecásia.

Hoje, esse precedente faz com que Nauru seja apontado como já tendo reconhecido a independência das regiões secessionistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, embora não haja conhecimento de qualquer declaração governamental nesse sentido.

A expectativa surge em função da relação próxima que Nauru tem desenvolvido com a Rússia. Para um território com poucos recursos, qualquer assistência económica é sempre bem-vinda e gera consequências políticas — foi o que aconteceu entre os dois países. O início desta proximidade terá sido uma conferência de doadores, em 2005, organizada pelas autoridades de Nauru para apresentação da sua Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e angariação de financiamento. A Rússia correspondeu como nenhum outro país.

A relação foi sendo sucessivamente alimentada com outros cheques. Segundo o jornal russo “Kommersant”, em 2009 — pouco antes da ilha reconhecer a independência das duas repúblicas do Cáucaso —, Moscovo desembolsou 50 milhões de dólares (45 milhões de euros) em ajuda humanitária a Nauru.

(FOTO Visita de Vladimir Putin e Bashar al-Assad, Presidentes da Rússia e da Síria, à Catedral Ortodoxa de Damasco, a 7 de janeiro de 2020, na Síria KREMLIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um conflito com vários outros dentro

A Síria é hoje um campo de batalha onde países terceiros não se inibem de atacar quando sentem os seus interesses em perigo

O ano 2021 leva pouco mais de dois meses e a Síria já foi bombardeada por dois países. A 28 de fevereiro, Israel disparou rockets sobre o sul de Damasco, num ataque lançado dos Montes Golã contra alvos ligados ao Irão. Dois dias antes, foram os Estados Unidos a alvejar infraestruturas utilizadas por uma milícia apoiada pelo Irão, no leste da Síria. O ataque foi justificado como resposta ao disparo de mísseis contra posições norte-americanas no vizinho Iraque.

Dez anos após o início da guerra na Síria, assinalados a 15 de março, o país está transformado num amplo campo de batalha onde Estados com interesses na região não se inibem de atacar quando sentem os seus objetivos em perigo.

“Nos últimos dez anos, a guerra civil degenerou num conflito por procuração envolvendo várias potências regionais e internacionais, cada qual visando a defesa ou a promoção dos seus interesses neste Estado-chave do Médio Oriente”, diz ao Expresso o historiador Eugene Rogan. “Porém, nenhum dos poderes que intervieram na Síria tem meios para resolver o conflito sozinho ou fornecer o nível de ajuda necessário à reconstrução de um país arruinado. Terão de trabalhar em conjunto se quiserem recuperar a Síria e torná-la um país estável numa região conturbada”, prossegue este professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford.

Interferências externas

Localizada na interseção de três continentes (Europa, Ásia e África), contígua a grandes potências do Médio Oriente (como Turquia, Israel e Iraque) e debaixo do radar de Arábia Saudita e Irão (interessados em estender a sua influência), a Síria reflete hoje uma série de disputas regionais.

Se, há dez anos, o conflito começou com manifestações populares pacíficas contra o regime autocrático de Bashar al-Assad — no espírito do movimento da “Primavera Árabe” que varreu o Médio Oriente —, nos anos que se seguiram espartilhou-se por guerras internas que transformaram a Síria num rendilhado de territórios controlados pelo regime, por fações rebeldes antirregime, pelos peshmergas curdos e por grupos jiadistas, todos apoiados a partir do exterior.

A Rússia é o principal apoio de Bashar al-Assad, que sobreviveu à guerra mas continua sem ganhar a aceitação do seu povo

Muitas contendas continuam por sanar. Da cidade de Ad-Dana, na província de Idlib (noroeste) — último bastião da resistência ao regime, junto à fronteira com a Turquia, onde oficialmente vigora um cessar-fogo acordado por russos e turcos em março de 2020 —, Aaref, sírio de 27 anos, descreve ao Expresso a situação no terreno.

“Idlib está relativamente tranquila. Os bombardeamentos são intermitentes. De vez em quando, aviões militares russos sobrevoam e bombardeiam algumas zonas. A cada dez dias, mais ou menos, as forças do regime lançam projéteis de artilharia sobre cidades e aldeias, em especial em zonas montanhosas. Ao nível da segurança, a situação melhorou um pouco: não há atentados e o ritmo das detenções policiais acalmou bastante.”

Russos e turcos no terreno

Os caças russos de que fala Aaref visam redutos do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh). Esta semana, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos contabilizou mais de 280 operações aéreas russas e 43 jiadistas mortos em menos de 100 horas. Também a Turquia tem tropas no terreno, atentas às movimentações dos separatistas curdos sírios e ao efeito de contágio que possam ter junto dos independentistas curdos turcos.

De aliada da Síria, a Rússia é hoje seu principal apoio e garante da liderança de Bashar al-Assad. O Presidente sobreviveu à guerra, mas continua sem ganhar a aceitação do seu povo. “Dez anos após o início da revolução, as populações anseiam pela queda do regime de Assad e por uma Síria livre de todas as tiranias”, diz Aaref. “A guerra não terminará enquanto este regime não desaparecer e os refugiados não regressarem ao país.”

Mais de 12 milhões de refugiados e deslocados internos traduzem a imensa tragédia humana em que a Síria se tornou

Cerca de 5,6 milhões de refugiados e 6,6 milhões de deslocados internos traduzem a imensa tragédia humana em que a Síria se transformou. Acrescem 390 mil a 595 mil mortos e a fatura da reconstrução de um país reduzido a escombros, orçada em mais de 250 mil milhões de dólares (210 mil milhões de euros).

“A situação está difícil para as populações. Há deslocados por todo o lado, os campos ficam inundados no inverno, no verão a densidade populacional torna a situação dramática e insuportável”, diz Aaref. “A ajuda e a assistência são escassas.”

“É improvável que a Síria fique refém da agenda de um ou de outro país, mas antes da capacidade da comunidade internacional para superar divisões de longa data e trabalhar em conjunto para resolver o conflito e financiar a reconstrução”, conclui Eugene Rogan. “Não é preciso ir além dos atuais esforços internacionais na Líbia para ver a necessidade de cooperação internacional, e as dificuldades que isso acarreta.”

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Chipre, Síria, Líbia, Nagorno-Karabakh… a Turquia está em todas. Com que objetivo?

A Turquia participa atualmente em vários conflitos nas imediações do seu território. Desígnio nacional por parte de um país que há 100 anos era um império? Ou sonhos de um Presidente que pensa e age como um sultão?

No imenso território que nos dias de hoje corresponde ao antigo Império Otomano, o país que herdou esse legado civilizacional está envolvido em múltiplas disputas nas imediações do seu território. Umas contendas acenderam-se mais recentemente, outras são antigas, como o problema de Chipre, que decorre da invasão turca em 1974 e da criação da República Turca de Chipre do Norte no terço norte da ilha.

Este domingo os cipriotas turcos realizaram a segunda volta das eleições presidenciais e o grande vencedor foi… Recep Tayyip Erdogan, o Presidente turco. Nos boletins de voto, Ersin Tatar, de 60 anos, foi o mais votado, com 52% dos votos — era o candidato apoiado por Ancara. Primeiro-ministro há menos de ano e meio, é um nacionalista defensor do atual status quo da ilha: dois Estados separados.

Tatar derrotou o atual Presidente, Mustafa Akinci, de 72 anos, que prometera trabalhar no sentido da reuni cação com a República de Chipre — a parte grega da ilha, membro da União Europeia — sob o teto de uma federação. A concretizar-se, seria o fim da tutela turca sobre Chipre do Norte.

Oficialmente, a Turquia reconhece a República Turca de Chipre do Norte como país independente. É, aliás, o único Estado a reconhecê-lo. Na prática, trata-a quase como uma província. A 6 de outubro, a reabertura da praia de Varosha — ‘terra de ninguém’ na linha verde que separa os dois Chipres — foi uma demonstração turca de ‘quero, posso e mando’, que mina a mais pequena perspetiva de negociações entre cipriotas turcos e cipriotas gregos.

A reabertura de Varosha acontece numa altura em que a Turquia mantém outra contenda com a Grécia nas águas do Mediterrâneo Oriental: os dois países — membros da NATO — disputam o acesso a reservas de gás e reivindicam áreas marítimas que se sobrepõem.

No mês passado, a Turquia apresentou o que designou por doutrina Pátria Azul (Mavi Vatan, em turco), que visa assegurar o controlo das áreas marítimas em redor das suas costas. Este imperativo tem originado momentos de grande tensão no Mediterrâneo Oriental e, frequentemente, as atividades de perfuração realizadas pelos turcos colocam em estado de alerta os militares gregos.

Foi o que aconteceu em julho passado, quando Ancara despachou o navio de exploração sísmica ‘Oruc Reis’ para uma área que a Turquia reclama ser sua, entre Chipre e a ilha grega de Creta, mas que cipriotas e gregos dizem sobrepor-se às suas Zonas Económicas Exclusivas. O ‘Oruc Reis’ foi escoltado por navios de guerra turcos.

A questão de Chipre e as tensões no Mediterrâneo Oriental são apenas dois de vários teatros onde a Turquia está ativa. Num ano atípico, em que a esmagadora maioria dos países está tomada pela batalha contra a covid-19, a Turquia mostra as garras e multiplica-se em intervenções fora de portas.

Há tropas turcas a operar na Síria, com quem a Turquia partilha mais de 800 quilómetros de fronteira. Têm um olho nas movimentações da minoria curda síria (que Ancara acusa de conluio com os curdos turcos, que aspiram à secessão) e o outro na contenção de eventuais novas vagas de refugiados a caminho do seu território. A nível político, a Turquia é, juntamente com Rússia e Irão, um dos promotores do Processo de Astana, a maratona de negociações que tenta pôr fim ao conflito sírio.

Ao lado do Qatar, contra a Arábia Saudita e Emirados

Há também militares turcos na Líbia, um dos palcos da rivalidade entre Turquia e Qatar por um lado (em apoio do Governo sedeado em Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas) e Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (ao lado do general Khalifa Haftar, que lidera uma ofensiva a partir do leste do país).

O interesse da Turquia pela Líbia redobrou a partir do momento em que foram descobertas novas jazidas de gás no Mediterrâneo Oriental. A 28 de novembro de 2019, o próprio Erdogan e o primeiro-ministro líbio, Fayez Sarraj, assinaram dois acordos que foram mal recebidos em capitais da região: um sobre segurança e cooperação militar e o outro relativo à delimitação da fronteira marítima.

“A política externa da Turquia baseia-se numa abordagem anti-status quo. A liderança turca acredita que o status quo atual em todas essas regiões é contrário aos interesses da Turquia”, afirma ao Expresso Emre Kursat Kaya, investigador do EDAM, think tank com sede em Istambul. “Mas isso não é novo. Erdogan partilha essa crença com a tradicional elite militar secular kemalista [apoiante do laicismo instaurado pelo fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk], que está de regresso desde 2016”, quando Erdogan foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado.

“Portanto, é importante olhar para as políticas de Ancara através de uma abordagem mais homogénea do que focar apenas o Presidente. O que mudou nos últimos anos é o facto de haver mais espaço na região, decorrente da ausência dos Estados Unidos e da relutância da União Europeia, e do aumento da capacidade económica, cultural e militar da Turquia.”

Ao lado do Azerbaijão em Nagorno-Karabakh

Mais recentemente, a Turquia tem ganho protagonismo na região do Cáucaso, onde um dos seus grandes aliados — Azerbaijão — disputa há décadas com a Arménia o controlo do enclave de Nagorno-Karabakh, de maioria arménia mas integrado em território azeri. Ancara tem sido acusada de contribuir para reacender o conflito, sobretudo após estatísticas revelarem que este ano já exportou seis vezes mais equipamento militar para o Azerbaijão, designadamente drones, lançadores e munições.

Em tempos, o ex-Presidente azeri Heydar Aliyev descreveu a relação entre o Azerbaijão e a Turquia como “uma nação, dois Estados”. Hoje, além dessa proximidade histórica e cultural, Ancara quer diversificar as suas fontes de fornecimento energético: este ano o Azerbaijão tornou-se o principal fornecedor de gás da Turquia.

Muito deste protagonismo turco decorre da retirada dos Estados Unidos de algumas regiões. “Não só a Turquia, mas outros atores regionais, como os Emirados Árabes Unidos e o Irão, beneficiaram claramente do não-envolvimento dos EUA”, diz Emre Kursat Kaya. “Há um vácuo de poder na região e, uma vez que nenhuma grande potência quer preenchê-lo, estamos a testemunhar uma luta pelo poder regional.”

Superar o fundador

Esta agenda combativa consagra a Turquia como potência regional atenta que aproveita cada foco que se acende para reclamar influência. O investigador do EDAM admite que o Presidente turco tenha objetivos pessoais a perseguir.

“Em primeiro lugar, há um aspeto político interno óbvio em qualquer envolvimento turco. Erdogan é conhecido por ser capaz de reconhecer o estado de espírito do público e de agir em conformidade. Nenhuma iniciativa de política externa turca dos últimos cinco anos foi feita ao arrepio da opinião pública”, diz. “Em segundo lugar, após quase duas décadas na liderança do país, a base eleitoral do Presidente compara-o a Atatürk, o fundador da República Turca. Há uma rivalidade indireta entre eles, e o Presidente Erdogan beneficiaria com a imagem de defensor dos interesses turcos no exterior.”

Erdogan ocupa a presidência da Turquia desde 2014 — antes, foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014. Cumpre o segundo mandato, que, ao abrigo da Constituição, será o último. Mas Erdogan é um líder com fama de sonhar — e agir — como um sultão, pelo que as próximas eleições presidenciais, marcadas para 2023, estão no seu horizonte.

“As eleições presidenciais agora estão vinculadas às eleições parlamentares. Portanto, teoricamente, Erdogan ou o Parlamento poderiam convocar eleições antecipadas a qualquer momento, o que obrigaria Erdogan a candidatar-se de novo”, explica ao Expresso Nicholas Danforth, especialista das relações entre a Turquia e os EUA no think tank German Marshall Fund.

“Erdogan já apresentou a sua teoria sobre porque deveria ter permissão para voltar a concorrer em 2023. Suspeito que um tribunal constitucional composto por juízes nomeados por ele estaria inclinado a endossar essa posição.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

Família de Idlib quebra o jejum do Ramadão junto à sua casa destruída

Na cidade de Ariha, província de Idlib, uma família que viu a sua casa ser arrasada por bombardeamentos regressou ao local para quebrar o jejum do Ramadão. Com esta refeição simbólica quis recordar tempos felizes e mostrar ao mundo o sofrimento que se vive na Síria, nove anos após o início da guerra

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Uma família de oito pessoas regressou ao que resta da sua antiga casa, na cidade síria de Ariha, para partilhar uma refeição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Esta família teve de fugir de casa quando forças do regime sírio, apoiado por bombardeamentos aéreos russos, atacaram Ariha AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
À volta desta mesa estão um casal com quatro filhos, mais a mãe e a irmã do homem AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Ariha é uma cidade da província de Idlib, um dos últimos bastiões da oposição a Bashar al-Assad AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Esta família síria voltou a viver na mesma cidade, num sítio próximo à sua antiga casa AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Afastado o entulho, estende-se colchões para acomodar a família e tornar possível a refeição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Uma presença humana quase impercetível no meio de tanta destruição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui