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Antigos vizinhos regressam à zona onde moravam para um jantar entre ruínas

Viviam todos na mesma zona de Atareb, na província de Alepo, até os bombardeamentos ordenados por Bashar al-Assad ter reduzido o bairro a cinzas. Dezenas de homens regressaram agora para um jantar simbólico

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Estes homens são antigos vizinhos. Moravam nesta zona da cidade síria de Atareb, na província de Alepo, até ser bombardeada AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
A refeição foi organizada por uma organização local de jovens voluntários AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Membros dos Capacetes Brancos desinfetaram o local antes de ser estendida a toalha AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Enquanto esperam que o sol se ponha, para iniciar o “iftar” (a quebra do jejum do Ramadão), estes homens põem a conversa em dia AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Um jantar ao ar livre, rodeado por montes de entulho, na cidade síria de Atareb AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Porque é que a família de Tareq voltou por um dia para jantar nas ruínas da sua casa

Em duas cidades sírias, habitantes regressaram às casas de onde fugiram durante bombardeamentos, e que agora não passam de um amontoado de destroços, para quebrar o jejum do Ramadão. Um fotógrafo local, que registou esses momentos, explica ao Expresso o porquê destas refeições entre escombros

A guerra obrigou a família de Tareq Abu Ziad a fugir de casa, na cidade síria de Ariha. O cessar-fogo que se lhe seguiu possibilitou que regressasse ao que dela resta, ainda que por apenas um dia, para um ato simbólico: cumprir ali um “iftar”, a refeição após o pôr do sol com que os muçulmanos quebram diariamente o jejum do Ramadão.

Acomodados sobre três colchões de espuma, que ali estenderam após afastarem o entulho para abrir uma clareira, estão oito membros de uma mesma família: Tareq Abu Ziad, de 29 anos, a mulher, quatro filhos, a mãe e a irmã.

Ao centro, sobre um tapete, há copos e embalagens com comida que a família trouxe consigo. À volta, por companhia, apenas edifícios tão esventrados quanto o deles e memórias de tempos felizes.

“Esta família quis fazer esta refeição no meio de casas destruídas para mostrar ao mundo o grande sofrimento que se vivem em Idlib, e especialmente em Ariha”, diz ao Expresso Aaref Watad, o fotógrafo sírio que captou as imagens, algumas delas com recurso a um drone. “Eles queriam partilhar a sua história e, como eu sou jornalista, fizeram-me chegar essa vontade através de conhecidos em comum.”

FOTOGALERIA Família de Idlib quebra o jejum do Ramadão junto à sua casa destruída

Alojamento barato no meio dos destroços

Ariha é uma cidade da província de Idlib, no noroeste da Síria. Nove anos após o início da guerra, a região é um dos últimos focos de resistência ao regime de Bashar al-Assad.

Em finais do ano passado, quando Ariha estava nas mãos de grupos rebeldes e jiadistas, uma ofensiva militar desencadeada por tropas leais ao Presidente e apoiada pela Força Aérea russa provocou o êxodo de cerca de um milhão de pessoas, em poucas semanas.

“Ariha foi completamente destruída”, testemunha o fotógrafo, que vive na cidade de Al-Dana, perto da fronteira com a Turquia, na mesma província. “A maioria das casas foram bombardeadas.”

Com o calar das armas, muitos habitantes arriscaram regressar à cidade e procuraram alojamento barato entre as ruínas. Foi o caso desta família, que voltou a Ariha em abril. “Atualmente, a família vive na cidade, num local próximo da antiga casa”, diz Aaref Watad.

“Eles não têm quaisquer planos para reconstruir a casa. É muito caro e eles não têm meios. E além disso, não é clara a situação em Idlib, não sabemos se a guerra vai começar outra vez ou se vai terminar.”

Vizinhos que a guerra separou

Para leste de Idlib, a província de Alepo — igualmente fronteira à Turquia — é outro bastião da oposição ao regime sírio. Nesta região, o fotógrafo registou outra refeição entre ruínas.

Na cidade de Atareb, uma organização de jovens voluntários designada Maan, que opera em situações de emergência, promoveu uma refeição para antigos vizinhos numa rua agora ladeada por prédios esventrados.

Num espaço a céu aberto, foi estendida no solo uma toalha comprida para colocar embalagens com a comida, garrafas de água e iogurtes líquidos. Rodeados por montes de cascalho, dezenas de homens descalçaram-se antes de se sentarem no chão, à volta daquela mesa improvisada.

FOTOGALERIA Antigos vizinhos regressam à zona onde moravam para um jantar entre ruínas

“O objetivo foi reunir antigos moradores daquela rua perto das suas casas em ruínas para tomarem o ‘iftar’ em conjunto. E, ao mesmo tempo, mostrar o nível de destruição em Atareb”, conta o fotógrafo. “Todas estas pessoas continuam a viver no mesmo bairro ou perto. Vivem em casas que não foram danificadas.”

Antes do convívio, membros da Defesa Civil Síria — organização mais conhecida por Capacetes Brancos — desinfetaram o local contra a covid-19. Um novo drama dentro do drama.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

EUA deixam os curdos sozinhos, mais uma vez

Com a saída dos EUA do nordeste sírio, os curdos ficam sem aliados por perto e à mercê da mão castigadora da Turquia

Os apuros de Donald Trump dentro de portas parecem realçar uma certa impaciência do Presidente dos Estados Unidos na hora de lidar com problemas internacionais. Aconteceu no domingo passado, quando Trump anunciou a retirada das tropas norte-americanas em missão no nordeste da Síria. “Desde o primeiro dia em que entrei na política, tornei claro que não queria travar estas guerras intermináveis e sem sentido, em especial as que não beneficiam os EUA”, disse.

Três dias depois, a Turquia começava a bombardear a área desguarnecida pelos norte-americanos. Anunciada pelo Presidente Recep Tayyip Erdogan, a ofensiva “Fonte de Paz”, com fogo aéreo e de artilharia, visa áreas controladas pela milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG).

O jornal turco “Daily Sabah” noticiava, quinta-feira, que a “operação antiterrorista” já tinha “libertado” 11 aldeias nas imediações das cidades de Tal Abyad e Ras al-Ayn. Há mais de 60 mil pessoas em fuga e notícias de pelo menos 277 mortos. A Turquia diz que são “militantes”, os curdos dizem que alguns são civis.

Ressurgimento do Daesh

Nos EUA, a decisão de Trump e o que se lhe seguiu no terreno geraram críticas, até no campo republicano. “Os EUA estão a abandonar os nossos aliados curdos, que combateram o Daesh [autodenominado Estado Islâmico] e ajudaram a proteger a nossa pátria”, acusou a deputada republicana Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney. “A decisão ajuda os adversários da América — Rússia, Irão e Turquia — e abre caminho ao ressurgimento do Daesh.” Trump respondeu que os curdos não ajudaram os EUA durante a invasão… da Normandia, em 1944.

No barril de pólvora que a Síria se tornou após 2011, com a esperança de uma primavera árabe a degenerar num inverno sangrento, as forças curdas foram aliadas fiéis, profissionais e destemidas contra os extremistas. Na língua curda, peshmerga — como se intitulam os combatentes curdos — significa “os que enfrentam a morte”.

Passadeira aos turcos

No jornal israelita “Haaretz”, sexta-feira, Akil Marceau, ex-diretor da representação do governo regional do Curdistão iraquiano em Paris, decretou: “Qualquer esforço internacional que não resulte no estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre o norte da Síria e a proteção das suas minorias étnicas será uma cortina de fogo, na melhor das hipóteses — e na pior, uma faca nas costas” dos curdos. Em 1992, foi uma solução desse género que protegeu os curdos iraquianos de Saddam Hussein, após a Guerra do Golfo.

Às primeiras notícias da ofensiva turca, Trump comentou ser “má ideia” e acrescentou que Washington “não apoia” o ataque. Sobre o que faria se Erdogan acabar com os curdos, Trump respondeu: “Se a Turquia fizer algo que eu, na minha grande e ímpar sabedoria, considerar fora dos limites, destruirei e obliterarei toda a economia turca (já o fiz!).”

Por muito que Trump o tente iludir, a saída de cena das tropas americanas funcionou como “luz verde” para a investida turca sobre o nordeste da Síria. Ancara justifica a operação com a necessidade de criar uma “zona segura” — uma extensão de 400 quilómetros de comprimento e 30 de largura entre a fronteira e o rio Eufrates — para repatriar milhões de sírios refugiados na Turquia.

“É improvável que uma chamada ‘zona segura’ no nordeste da Síria, como a prevista pela Turquia, satisfaça os critérios internacionais para o regresso de refugiados”, reagiu Federica Mogherini, chefe da diplomacia da UE. Para Bruxelas, “o regresso de refugiados e deslocados internos aos seus locais de origem tem de ser seguro, voluntário e digno, quando as condições o permitirem. Qualquer tentativa de promoção de alterações demográficas é inaceitável. A UE não dará assistência em áreas onde os direitos das populações sejam ignorados”. Adivinha-se pois nova tragédia humana.

Um povo único

Etnicamente não-árabes — como turcos, iranianos, paquistaneses e afegãos —, os curdos são o maior povo sem Estado do mundo. Cerca de 30 milhões de pessoas vivem na intersecção de quatro países do Médio Oriente frequentemente desavindos: Turquia, Síria, Iraque e Irão. E sonham com um Curdistão independente.

Na Turquia, onde os curdos são entre 15% e 20% de uma população de 80 milhões, essa ambição é sentida como ameaça à segurança nacional. Abdullah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, ilegalizado e que EUA e UE consideram terrorista), é o inimigo público nº 1. Cumpre prisão perpétua, há 20 anos, na ilha-prisão de Imrali.

Com a retirada dos EUA da região de Rojava — o chamado Curdistão sírio, composto pelos enclaves de Afrin, Kobane e Yazira —, os curdos ficam entregues a si próprios. Não foi a primeira vez que viram um aliado virar-lhes costas. Talvez por isso um velho ditado curdo profetize: “Não temos amigos, apenas as montanhas.”

TRÊS TRAIÇÕES

I GUERRA MUNDIAL — Pelo Tratado de Sèvres (1920), Aliados e Império Otomano contemplam a criação de um Curdistão na atual Turquia. De fora ficam os curdos do Irão, do Iraque (tutelado por britânicos) e da Síria (franceses). Depois o assunto é esquecido

IRAQUE — Os EUA armam os curdos durante o Governo de Abdel Karim Kassem. Após este ser deposto, em 1963, cortam apoio à minoria e ajudam o novo Governo, que investiu contra os curdos

GUERRA DO GOLFO — Em 1991, Bush (pai) apela aos iraquianos que se envolvam na deposição de Saddam Hussein. No norte, os curdos corresponderam. Os EUA não avançam sobre Bagdade e Saddam massacra a minoria

(IMAGEM Bandeira do Curdistão Sírio WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

Um protetorado que custou sete anos de guerra

Avizinha-se o fim do conflito na Síria. Mas a presença militar da Rússia e do Irão está para durar

O fim da guerra na Síria está à distância de uma batalha. Idlib, uma província no noroeste, é o último quinhão de terra em posse de grupos rebeldes, alguns de orientação secular, a maioria islamitas. Por estes dias vive-se uma trégua na área, ditada por um acordo assinado a 17 de setembro entre a Rússia (o principal apoio do regime sírio) e a Turquia (o país vizinho mais exposto ao conflito).

O pacto prevê a criação de uma zona tampão de 15 a 20 quilómetros entre Lataquia e Alepo, províncias que ladeiam Idlib. Se tudo correr como planeado, essa zona desmilitarizada, desenhada para afastar forças governamentais e rebeldes, ficará estabelecida até à próxima segunda-feira.

Se, num primeiro momento, esta pausa nos combates teve o condão de conter uma ofensiva militar sírio-russa que parecia iminente sobre o último reduto rebelde, falta perceber se o silêncio das armas é o princípio do fim do conflito ou a calmaria que antecede a tempestade.

“Em Idlib alcançou-se uma trégua precária para evitar uma crise humanitária de consequências incalculáveis, já que nessa província vivem dois milhões e meio de pessoas”, comenta ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de Alicante (Espanha). “Mas nas próximas semanas poderá desencadear-se uma ofensiva militar para tentar quebrar a resistência.” Em todo o caso, “parece evidente que se está a entrar na última fase do conflito sírio”.

Bashar al-Assad controla atualmente dois terços do território da Síria e governa três quartos da população. Além de Idlib, também a área a norte do rio Eufrates — cerca de um quarto do país — escapa ao seu controlo. A zona está em paz, mas nas mãos de forças curdas, as chamadas Unidades de Proteção Popular (YPG), que contam com o apoio dos Estados Unidos. Os norte-americanos têm ali pelo menos 2000 efetivos.

A incógnita curda

Terminada a guerra, o futuro desta região será uma grande incógnita. “As milícias curdas aproveitaram a luta contra o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) para estenderem a sua influência para lá das zonas de maioria curda”, recorda o académico espanhol. “Chegaram a controlar a cidade árabe de Raqqa [os curdos não são árabes], cujos arredores acumulam uma grande riqueza em hidrocarbonetos.” Raqqa foi, durante anos, a capital do ‘califado’ decretado pelo temido e impiedoso Daesh em vastas áreas da Síria e do Iraque.

À semelhança do que aconteceu no Iraque, onde o fim da era de Saddam Hussein significou para a minoria curda mais autonomia do que aquela que tinha conquistado após a Guerra do Golfo (1990-91), os curdos sírios vão querer transformar as conquistas da guerra em ganhos políticos.

“O Partido da União Democrática curdo [PYD] vai tentar aproveitar esta posição de força sobre o terreno para arrancar concessões ao regime e conseguir que este aceite o estabelecimento de um Estado federal, como aconteceu no Iraque”, diz Álvarez-Ossorio. “Julgo que o mais provável é que Assad e os curdos não se enfrentem diretamente e alcancem uma solução negociada que obrigue o regime a conceder ampla autonomia aos curdos”, prossegue o docente.

A evolução da questão curda fará com que a Turquia — que combate, dentro de portas, um projeto separatista curdo — continue a seguir a situação na Síria com rédea curta. Neste conflito, “a Turquia apostou no campo perdedor e dificilmente manterá o enclave que controla, juntamente com o Exército Livre Sírio, a norte de Alepo. A intervenção militar turca justificou-se pela necessidade de evitar que as milícias curdas, que Ancara acusa de darem apoio ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão [PKK, turco], controlassem a fronteira. Mal o regime sírio seja capaz de dominar a fronteira, a Turquia poderá retirar os efetivos mediante garantias de segurança”.

Mas se a presença turca na Síria tem os dias contados, a Rússia e o Irão estão no país para durar. “A sua saída colocaria Assad numa situação vulnerável”, prevê Álvarez-Ossorio, autor do livro “Siria — Revolución, sectarismo y yihad” (publicado em 2016 e não traduzido em português). Acresce que o exército sírio está esgotado, “numa situação de extrema debilidade, pelo que continuará a precisar, durante muito tempo, do apoio das milícias xiitas enviadas pelo Irão [o Hezbollah libanês e grupos iraquianos, afegãos e paquistaneses] e também da polícia militar russa”.

A sombra da Líbia

Esta necessidade de uma ajuda militar externa duradoura e, sobretudo, a proliferação de grupos armados que agem em obediência à agenda de quem os financia — dos Estados Unidos aos Países do Golfo — obriga a uma comparação com a Líbia, onde, após o desaparecimento de Muammar Kadhafi (em 2011, ano em que deflagrou a guerra síria), a lei que se impôs no país foi a das milícias. Esta semana Ghassan Salame, chefe da missão da ONU na Líbia (UNSMIL), disse que ainda há 200 mil milicianos em ação no país. “Recebem salário do Estado, mas só recebem ordens de senhores da guerra”, disse.

“São casos muito diferentes”, explica Álvarez-Ossorio. “Na Líbia não existe um Estado central capaz de impor a sua autoridade sobre a totalidade do território, que está em mãos de diferentes milícias que controlam os poços de petróleo, o comércio e as rotas migratórias. No caso da Síria, o regime desarmou todas as milícias rebeldes à medida que restabelecia a sua autoridade sobre as partes de território que escapou ao seu controlo durante o conflito.”

Descida aos infernos

A guerra que se aproxima do fim espalhou a morte e condenou milhões de sobreviventes a um êxodo desesperado, internamente e através da fronteira. Arrasou o país e descaracterizou-o: perseguida pelos grupos radicais, a minoria cristã, por exemplo, passou de 10% para 3% da população. Em termos políticos, tornou subserviente uma entidade que já foi o centro do mundo árabe. Entre os anos 661 e 750, Damasco foi a capital do califado omíada, o segundo de quatro califados islâmicos estabelecidos após a morte de Maomé, que ia da Península Ibérica ao Afeganistão.

“A Síria de Assad converteu-se num protetorado russo-iraniano”, conclui Ignacio Álvarez-Ossorio. “Além das milícias xiitas comandadas pelo Irão, a Rússia aproveitou a conjuntura para ampliar a sua base naval de Tartus e construir a base aérea de Al-Hamaymin, que controlará durante os próximos 49 anos.”

REPRIMIU E RESISTIU. SERÁ JULGADO?

Bashar al-Assad recorreu a métodos brutais para reprimir o povo. Rússia e China protegem-no da perseguição da justiça

Do rol dos países mais fortemente afetados pelo movimento de contestação popular conhecido como Primavera Árabe, a Síria foi o único a manter o líder no poder. Ben Ali (Tunísia) desertou, Hosni Mubarak (Egito) foi afastado, Muammar Kadhafi (Líbia) foi morto na rua e Ali Abdullah Saleh (Iémen) saiu pelo próprio pé. Na Síria, Bashar al-Assad escapou inclusive à fúria de Donald Trump que, segundo “Medo: Trump na Casa Branca”, de Bob Woodward (sai em novembro na Dom Quixote), terá defendido o seu assassínio, porventura para marcar a diferença em relação a Barack Obama, que poupou Assad apesar de este ter pisado a “linha vermelha” (o uso de armas químicas), indiciando assim que talvez fosse “um mal menor”.

“Durante todos estes anos de guerra, praticaram-se muitos crimes de guerra e crimes contra a Humanidade por parte dos vários atores: assassínios, deportações, torturas, violações, desaparições, bombardeamentos sobre civis, destruição de hospitais, utilização de armas químicas…”, recorda Ignacio Álvarez-Ossorio, da Universidade de Alicante. “Segundo diferentes estimativas, o regime sírio e seus aliados são responsáveis por 90% das vítimas civis, repartindo-se as restantes entre o Daesh e os grupos rebeldes.”

90% das vítimas civis da guerra da Síria são atribuídas às forças afetas ao regime de Bashar al-Assad e seus aliados. Aos jiadistas do Daesh e demais grupos rebeldes são imputadas as restantes

Para Assad — que castigou o seu povo sitiando povoações, cortando abastecimentos, recorrendo a uma estratégia de terra queimada nas zonas rebeldes e a armas devastadoras para reprimir o mínimo resquício de contestação, como as bombas de barril (compostas por fragmentos metálicos e explosivos TNT) —, foi crucial a entrada em cena da Rússia. Os caças russos começaram a bombardear a 30 de setembro de 2015, quando Damasco acumulava perdas significativas.

A proteção russa à Síria estende-se à ONU. “Em 2016, a Assembleia Geral aprovou a criação de um mecanismo internacional para julgar os responsáveis pelos crimes desde março de 2011”, recorda o professor. “Não avançou grande coisa por falta de colaboração das autoridades e pelas reticências colocadas por Rússia e China [com poder de veto no Conselho de Segurança], temendo que o precedente se voltasse contra elas próprias no futuro.”

Pária no Ocidente, Assad terá escancaradas as portas de Moscovo, Teerão e Pequim.

JOGO REGIONAL

IRÃO — A sobrevivência de Assad (alauita, xiita) é quase uma questão de segurança nacional. Como o Hezbollah no Líbano, Assad garante a extensão da influência iraniana na região

ARÁBIA SAUDITA — Fomentou o wahabismo (sunismo conservador) apoiando grupos rebeldes. Derrotar Assad seria ganhar terreno ao arquirrival xiita Irão

TURQUIA — Com 910 quilómetros de fronteira com a Síria, está exposta ao conflito. Quer evitar a autonomia curda

QATAR — Contribuiu para fortalecer a frente extremista ao financiar grupos salafitas, como o Exército do Islão

ISRAEL — Enfrentou diretamente a Síria pela última vez em 1973. As manobras do Hezbollah e do Irão junto à fronteira obrigam a um alerta permanente

(Imagem: NICOLAS RAYMOND / FLICKR) 

Artigo publicado no Expresso, a 13 de outubro de 2018 e republicado parcialmente no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui