A Gâmbia tem um sistema de votação único no mundo. Em vez de boletins em papel, os eleitores votam com recurso a berlindes. O sistema não é perfeito, mas é altamente popular. Porém, à medida que a democracia se consolida neste país da África Ocidental, após 22 anos de ditadura, organizar eleições torna-se um crescente pesadelo logístico

Na esmagadora maioria dos países, um berlinde é um objeto recreativo, usado tanto em jogos tradicionais como em brincadeiras de criança. Na Gâmbia, porém, é um assunto de Estado.
É com berlindes que os cidadãos votam nas eleições. Em vez de usarem boletins de voto em papel ou terminais para voto eletrónico, os gambianos colocam berlindes em bidões metálicos personificados para cada candidato.
É assim há mais de 60 anos, “para todo o tipo de eleições, até mesmo referendos”, diz ao Expresso Sait Matty Jaw, professor de Ciência Política na Universidade da Gâmbia. “É um sistema altamente fiável e bem compreendido pelas pessoas, por isso utilizamo-lo para todas as eleições.”

Concebido para facilitar a vida às pessoas analfabetas no exercício dos seus direitos democráticos, este sistema de votação remonta aos tempos coloniais. “Foi introduzido pelos britânicos em 1962. A Gâmbia estava dividida entre uma colónia e um protetorado”, entre 1821 e 1965, quando obteve a independência, acrescenta o académico gambiano.
“De um lado, havia pessoas formadas, mas a maioria da população que vivia no protetorado não tinha formação. Portanto, precisávamos de um sistema que as pessoas pudessem compreender facilmente e depois votar. Criou-se uma plataforma igual para todos.”

Como se vota na Gâmbia?
Em cada assembleia de voto, são colocados bidões que funcionam como ‘urna de voto’. Cada recipiente tem colados a fotografia e o nome de um candidato e o logótipo do seu partido. O bidão é pintado com a cor do partido em causa para facilitar a identificação.
O bidão está fechado com um tampo, o qual está perfurado por um pequeno tubo com um buraco. As latas são colocadas num compartimento (‘a cabine de voto’) para garantir a privacidade do ato eleitoral.
Depois de validar a elegibilidade do eleitor, a mesa entrega-lhe um berlinde. Ele dirige-se à cabine de voto e, escolhido o candidato, insere a pequena esfera pelo buraco aberto no tubo inserido no tampo.

No interior do latão, há um mecanismo equipado com um pequeno sino, que toca assim que é atingido pelo berlinde. O som assemelha-se ao toque da campainha de bicicleta e é audível não só para o eleitor como para quem está de serviço na mesa de voto.
Para não haver barulhos a interferir com o som do sino, no fundo dos bidões é colocada areia ou serragem. E, no dia das eleições, não é autorizada a circulação de bicicletas nas imediações dos locais de voto.
O tilintar do sino indica à assembleia que mais um voto foi depositado. Para o eleitor, aquele “tlim” assegura-lhe que o seu voto entrou. É também uma garantia de segurança para os escrutinadores já que, na eventualidade de alguém, à socapa, tentar inserir vários berlindes no latão, é de imediato descoberto.
Uma desvantagem deste sistema é não permitir que os eleitores votem em branco sem que seja do conhecimento público. Ou seja, se o sino não se ouvir, indica regra geral a quem espera no exterior que quem está dentro não escolheu qualquer candidato.
Outro senão deste sistema é não conseguir impedir a tempo que um eleitor mal intencionado tente destruir os selos do bidão, na privacidade do gabinete de voto.

“Terminada a votação, os votos são contados na hora, no local. Os berlindes são despejados para tabuleiros [personalizados para o efeito] e todos podem ficar de pé a assistir à contagem. Por isso, é muito difícil roubar”, diz Sait Matty Jaw.
Contar berlindes é mais rápido do que escrutinar votos em papel. O risco de erro é menor, como menores são os custos da organização, uma vez que, ao contrário dos boletins em papel, os berlindes são aproveitados de umas eleições para as outras. Ao gerar menos lixo, o escrutínio com berlindes é também mais amigo do ambiente.
Terminada a contagem, os berlindes voltam para dentro do bidão, não vá haver necessidade de recontagem. Depois, lata e tubo são selados.

“Desde 1962, isto faz parte da nossa cultura política, da evolução política do país e, por isso, há um apego a este sistema com berlindes. As pessoas estão habituadas e sabem que é único, por isso a maioria dos gambianos quer mantê-lo, apesar da origem colonial”, diz Sait Matty Jaw, que é também diretor executivo do Center for Research and Policy Development (CRPD).
Este think tank gambiano foi fundado em 2018, para responder à crescente necessidade de investigação, advocacia e formação, num contexto pós-autoritário. “Focamo-nos na governação democrática, nos direitos humanos e na justiça social”, lê-se no site da organização.
“As pessoas sentem-se confortáveis com este sistema. É altamente fiável porque o país usa-o desde 1962. E não importa se o eleitor tem formação ou não, toda a gente pega num berlinde e coloca-o no barril. Tem algum tipo de significado cultural para as pessoas, uma vez que é aquilo a que estão habituadas.”

Em determinados círculos gambianos, discute-se, no entanto, a hipótese de se substituir este sistema pelo mais universal voto em papel. “Tem havido discussões. Penso que serão defendidas sobretudo pela Comissão Eleitoral Independente (CEI), para quem o sistema de berlindes é um pesadelo em termos logísticos, dada a quantidade de bidões necessários”, explica o professor da Universidade da Gâmbia.
“Mas não é só uma questão logística. O país está a abrir-se, a democracia está a fazer o seu caminho e há cada vez mais pessoas a participar na política. Por exemplo, nas últimas eleições presidenciais [a 4 de dezembro de 2021], tivemos seis candidatos. E temos atualmente cerca de 20 partidos políticos. Então, imagine se todos estes partidos políticos apresentarem candidatos às eleições…”, diz.
“Os preparativos são um grande fardo. Por isso, tanto a CEI como um grande número de partidos políticos são a favor dos boletins de voto em papel. Mas resta saber como se convence as pessoas de que os boletins são mais seguros… Para já, elas preferem o sistema de berlindes.”

A democracia na Gâmbia foi restabelecida em 2016, após 22 anos de ditadura. Nesse ano, Yahya Jammeh, o líder autoritário, sujeitou-se a eleições e perdeu para Adama Barrow, o atual Presidente (reconduzido pelas eleições de 2021), num desfecho que a BBC qualificou de “resultado eleitoral chocante”. Neste país, o Presidente é eleito à primeira para um mandato de cinco anos.
O ditador Jammeh recusou aceitar o resultado e acabou por seguir para o exílio na Guiné Equatorial, onde Teodoro Obiang, que tem 82 anos, é Presidente há 45. Desde então, a Gâmbia tem pela frente o desafio da consolidação democrática.
“Estamos a fazer a transição de 22 anos de ditadura para a democracia”, conclui Sait Matty Jaw. “Já passaram oito anos e ainda não conseguimos uma nova Constituição. Existe um projeto no Parlamento, mas tem havido problemas em chegar a acordo. Isso está a criar problemas à nossa transição efetiva para a democracia.”
Neste contexto, uma reforma eleitoral está longe de ser uma prioridade. “Agora que vamos a caminho das eleições presidenciais de 2026, não creio que vá haver qualquer medida para mudar o sistema de voto. No futuro próximo, ainda teremos o berlinde.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui