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Feira de Voluntariado em Matosinhos é montra do que de “mais bondoso e bonito” se faz em Portugal

Pelo menos 117 organizações não governamentais com provas dadas na área social e humanitária participam, este fim de semana, numa Feira de Voluntariado, em Matosinhos. O evento, aberto e destinado ao público, incluirá uma ação de recolha de lixo pelas ruas da cidade até à praia e um programa de conferências. André Villas-Boas, por exemplo, irá falar sobre como a paixão pelos carros deu origem a um projeto “do bem”

Partilhar, inspirar, envolver. À semelhança do lema olímpico “Mais rápido, mais alto, mais forte”, que motiva atletas dos quatro cantos do mundo, estes três verbos são o norte de uma Feira de Voluntariado que decorre, este fim de semana, em Matosinhos.

A iniciativa, que decorrerá na Quinta de Monserrate – Clube, visa promover o contacto entre organizações de ação social e humanitária, com trabalho desenvolvido em Portugal e no estrangeiro, e um público curioso e motivado para ajudar.

Num espaço verde circundante a oito campos de padel, pelo menos 117 organizações não governamentais terão um espaço físico para divulgar o seu trabalho, passar mensagem aos visitantes e captar apoios.

Ao estilo de vitamina de motivação, um conjunto de personalidades ligadas a ONG ou simplesmente dedicadas a causas vai partilhar experiências, em duas tardes de conferências, a partir das 15h.

15 testemunhos, 15 exemplos

Da lista de 15 palestrantes fazem parte o treinador André Villas-Boas (que canalizou a sua paixão por carros e ralis para fundar a Race for Good), Pedro Geraldes (organizador da TEDxPorto), Jorge Rosado (da Palhaços d’Opital, que realiza ações de diversão para idosos em ambiente hospitalar) ou Constança Vasconcelos Dias (da Just a Change, que reconstrói casas para pessoas necessitadas).

No domingo de manhã, a partir das 11h, o ativista alemão Andreas Noe (mediaticamente conhecido como Trash Traveler) orientará uma ação de recolha de plásticos, beatas e outros resíduos, que seguirá pelas ruas de Matosinhos, na direção da praia.

No programa das conferências, haverá também testemunhos na primeira pessoa de personalidades que são, em si mesmas, demonstrações de superação.

São disso exemplos Catarina Oliveira, uma nutricionista paraplégica que se tornou ativista pela igualdade de acesso a pessoas com cadeiras de rodas; ou o cigano romeno Cristian Georgescu, que assume o seu passado de toxicodependência e é hoje presidente da organização Saber Compreender, que apoia pessoas em situação sem-abrigo.

Esta Feira do Voluntariado é uma iniciativa da organização Prémios Coração e o Mundo. Fundada pelo médico Gustavo Carona, experiente em missões humanitárias internacionais, tem por objetivo, nas palavras do próprio, “fundir a credibilidade da melhor ajuda social e humanitária, com a criatividade que fará a bondade chegar ao grande público e contagiar todo e cada cidadão a fazer um bocadinho mais por um Mundo com mais Coração”.

(ILUSTRAÇÃO PUBLIC DOMAIN PICTURES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui

Feridas sociais minam a projeção internacional

O sistema de castas é ilegal, mas o preconceito existe. Várias questões culturais fragilizam ‘a maior democracia do mundo’

A Índia é um país muito jovem e também com altos níveis de pobreza ARUN SANKAR / AFP / GETTY IMAGES

O país mais populoso do mundo, simultaneamente o sétimo em área, é um complexo xadrez com várias etnias e religiões, regiões com pretensões separatistas, poder político central nacionalista e perseguições a minorias. E ainda um sistema de castas que condiciona a distribui­ção do trabalho pela população e engrena o elevador social.

SOCIEDADE POR CASTAS

A discriminação que Gandhi não resolveu

Há séculos que a sociedade indiana está estratificada em castas. Este sistema emana do Código de Manu, parte de um conjunto de livros bramânicos que são a base do hinduísmo. A linhagem sanguínea, e não a posse de bens, determina a pertença a uma casta. Há milhares, agrupadas em quatro grandes grupos: os brâmanes, mais sábios (sacerdotes, professores, filósofos), criados, segundo a mitologia hindu, a partir da cabeça de Brama, o deus que criou o Universo; os xátrias, guerreiros (soldados, polícias, governadores) que nasceram dos braços de Brama; os vaixás surgiram das pernas (comerciantes) e os sudras dos pés do deus (camponeses, artesãos, operários). Na base da pirâmide estão os dalits, os mais miseráveis, aos quais Madre Teresa de Calcutá dedicou a vida. Criados do pó que Brama pisou, recolhem lixo e limpam lavabos.

Após a independência, o sistema de castas foi ilegalizado, mas sobreviveu na forma de tradição e preconceito. Para combatê-lo, um mecanismo de discriminação positiva reserva empregos públicos aos grupos inferiores. “O problema é a integração das castas inferiores nas mais altas. Não são consideradas iguais. É um grande problema para a mobilidade social”, diz Amit Singh, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Mas factos provam que o sistema não é estanque. A atual Presidente da Índia, Draupadi Murmu, escolhida por eleição indireta, é uma mulher dalit. E há os dalit millionaires, que aproveitaram a abertura económica para fazer milhões. Em 2018, ao “El País”, Tushar Gandhi, bisneto de Mahatma, diz que livrar os dalits do estigma de intocáveis foi um fracasso que o ícone da resistência pacífica carregou até ao fim da vida: “O sistema de castas estava tão arraigado nesta cultura que o assédio continua, 70 anos depois.”​

VIOLÊNCIA ÉTNICA

O preço da marginalização

Na Índia, cerca de 104 milhões de pessoas (8,6% da população) pertencem a tribos. Por estes dias, o Estado de Manipur (Nordeste) — que, como Caxemira, era um “Estado principesco” à época da colonização britânica — é prova de que a convivência sonhada por Gandhi (assassinado por um radical hindu) é uma ilusão. Pelo menos 60 pessoas morreram em confrontos entre grupos étnicos. Prédios, veículos e dezenas de igrejas foram incendiados. Cerca de 35 mil pessoas ficaram desalojadas. A origem da violência remonta a 3 de maio, quando milhares de membros das tribos kuki e naga, que vivem nas montanhas de Manipur e são “tribos reconhecidas” pela Constituição, saíram à rua em protesto contra a possibilidade de o mesmo estatuto ser atribuído ao grupo maioritário no Estado: os meiteis (não tribal), que vivem no vale fértil.

Tal significaria que as quotas de empregos públicos para kukis e nagas (sobretudo cristãos) teriam de ser partilhadas com essa comunidade hindu. Militares e polícias foram mandados em peso para as ruas e o acesso à internet foi cortado. “A separação é a única resposta”, defendeu um kuki, falando com o jornal “The Guardian”. “Isto é uma limpeza étnica do povo da montanha. Só podemos sentir-nos seguros como minoria se tivermos o nosso próprio Estado.”

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Agenda nacionalista hindu ao ataque

Desde que estreou, a 5 de maio, “The Kerala Story” tornou-se um êxito de bilheteira na Índia. Este filme hindu conta a história de um grupo de mulheres de Querala que se converteu ao islão e aderiu ao grupo terrorista que proclamava o Estado Islâmico. A associação entre religião e terrorismo, vista na Índia como provocação hindu à minoria muçulmana de 200 milhões, levou à proibição do filme em alguns Estados india­nos e nos cinemas do Reino Unido. A Comunidade Hindu de Portugal chegou a anunciar três sessões em Lisboa, cancelando-as depois de o anúncio gerar reações nas redes so­ciais. “A mensagem geral deste filme não coincide com a sua missão religiosa e cultural”, justificou depois a Comunidade. Tecnicamente, a Índia é um país laico, mas a agenda supremacista hindu do Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata), do primeiro-ministro, Narendra Modi, tem potenciado inimizades entre hindus e muçulmanos. A tensão máxima localiza-se em Caxemira, único Estado de maioria muçulmana.

EROSÃO DA DEMOCRACIA

Tiques autocráticos contra os críticos

Os alertas renovam-se a cada novo relatório sobre o estado da democracia no mundo: a Índia já só é uma democracia parcial. Opositores, académicos, jornalistas que critiquem ou indisponham as autoridades de alguma forma têm sido criminalizados ao abrigo de legislação contra o terrorismo e a sedição, esta última uma herança colonial britânica. Por enquanto, no Ocidente a passadeira continua a estender-se, sem reservas, para receber o líder da “maior democracia do mundo”. A 22 de junho, Modi será recebido por Joe Biden na Casa Branca e a 14 de julho será o “convidado de honra” de Emmanuel Macron no dia da Tomada da Bastilha.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui ou aqui

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A doença tirou-lhe mobilidade e afastou-o das missões humanitárias, mas Gustavo Carona não se deixou vencer: vêm aí os “Óscares da Bondade”

Quando Gustavo Carona apresentou o projeto a Marcelo Rebelo de Sousa, a ideia não germinou. Agora que tem todo o tempo do mundo, privado de trabalhar pela doença, o sonho ganhou vida. Dezenas de voluntários estão já envolvidos na concretização dos “Prémios Coração e o Mundo”, destinados a reconhecer o trabalho sério e credível, muitas vezes invisível, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social. “Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”, diz o médico ao Expresso

“E o Prémio Coração e o Mundo vai para…” Nos últimos meses, é muito provável que o médico Gustavo Carona tenha “ouvido” esta frase, várias vezes, durante o sono. Afinal, ela remete para o projeto que o toma a tempo inteiro desde que foi forçado a deixar de trabalhar, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, há dois anos.

Com uma doença incurável que lhe provoca dor crónica e o condena a passar grande parte do dia deitado, este intensivista de 42 anos foi ao arquivo dos sonhos para dar sentido aos dias e prosseguir com as ações humanistas que sempre o entusiasmaram.

Numa das gavetas, do cérebro e da secretária, tinha guardado um projeto a que chamou, em tempos, “Prémios Coração e o Mundo”, uma espécie de “Óscares da Bondade”, como o próprio caracteriza em conversa com o Expresso. O médico idealizou-os como forma de reconhecimento do trabalho sério e credível, mas muitas vezes invisível aos olhos do grande público, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social.

“Acredito muito numa cultura de mérito e acredito que nos moldamos pela premiação. Se transportarmos isto para a linguagem empresarial, é só óbvio que o que se premeia é aquilo que depois as pessoas procuram. Nesse sentido, pareceu-me que premiar a bondade, com a vontade de construir uma sociedade com valores mais humanísticos, tem sido uma estratégia pouco utilizada”, diz.

“Há pessoas tão bonitas… Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”

A ideia foi verbalizada pela primeira vez durante as reuniões do Grupo de Reflexão para o Futuro de Portugal, promovidas por Marcelo Rebelo de Sousa, entre 2018 e 2022. Carona era um dos “40 portugueses nascidos depois do 25 de Abril de 1974, a viverem no país e no estrangeiro, preferencialmente sem participação política, com percursos de sucesso, independência e rasgo”, como a iniciativa é descrita no site da presidência.

“Apresentei a ideia ao Presidente da República. Não deu em nada, mas ficou na minha cabeça. E agora saiu cá para fora.”

“Prémios Coração e o Mundo” é o projeto que ocupa Gustavo Carona desde que deixou de poder trabalhar RUI DUARTE SILVA

O foco na bondade e na compaixão decorre muito da experiência de mais de uma dúzia de missões humanitárias realizadas, desde 2009, ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, dos Médicos do Mundo e da Cruz Vermelha Internacional, em zonas de carência extrema como a Síria, a República Democrática do Congo, o Afeganistão ou o Sudão do Sul.

Já tive experiências muito fortes de contacto com realidades de extrema pobreza em África, no Médio Oriente, em situações máximas de desespero, no meio da guerra, e senti uma enormíssima empatia pelo sofrimento destas pessoas. Eu compreendo que quem nunca lá esteve não tenha essa empatia. Não me sinto especial, o que sinto é que fui exposto a circunstâncias especiais.”

Com o mesmo ímpeto com que, durante anos, disponibilizou o seu tempo para correr mundo em socorro dos que mais sofrem, a 13 de novembro passado, Carona divulgou um vídeo nas redes sociais lançando a ideia dos “Prémios Coração e o Mundo” e pedindo ajuda para a concretizar.

O que se seguiu foi avassalador. O vídeo foi somando centenas de milhares de visualizações e as caixas de mensagens do médico viram-se inundadas com milhares de sugestões de nomes de organizações com trabalho digno de ser reconhecido ou simplesmente recados de amigos, conhecidos ou gente seduzida pelo apelo a disponibilizar-se para ajudar.

“A ideia pegou e eu fiquei super nervoso”, confessa. “E agora? Será que tinha conhecimento para montar uma coisa destas? Na verdade, só sei ser médico, tudo o resto é sonho. Comecei a acreditar quando vi pessoas de uma enormíssima qualidade a dizerem: ‘estou dentro, quero ajudar’.”

Foi o caso da realizadora Ana Rocha de Sousa, vencedora de um Leão do Futuro, no Festival de Cinema de Veneza, com o filme “Listen”. A cineasta ofereceu-se para fazer o guião da gala “Prémios Coração e o Mundo”, que já captou o interesse de duas televisões.

O sofá da sala e a cama no quarto tornaram-se as novas secretárias de escritório de Gustavo Carona RUI DUARTE SILVA

Carona pensou no que tinha pela frente e começou a distribuir trabalho pelas mãos solidárias que se lhe estendiam. Para rastrear os milhares de comentários nas redes e agrupar as organizações sugeridas por categorias, pediu ajuda à Beira Aproxima, uma associação humanitária formada por estudantes de Medicina da Universidade da Beira Interior, com sede na Covilhã, vocacionada para realizar missões de voluntariado em países em desenvolvimento, da qual o médico portuense é padrinho.

Este apuramento é essencial para que, posteriormente, um júri composto por “pessoas com décadas de ação humanitária”, dirigentes de organizações experientes na área social e humanitária, já consagradas a nível nacional, selecione 68 organizações — quatro por 17 categorias — que serão as protagonistas da gala “Prémios Coração e o Mundo”.

As 17 categorias que irão a votos são: habitação, arte de intervenção, terceira idade, pessoas com deficiência, pessoas em situação de sem-abrigo, direitos das mulheres, pobreza, direitos LGBT+, jornalismo, além-fronteiras – Saúde, além-fronteiras – Educação, refugiados e imigrantes, alterações climáticas, pessoa, crianças e adolescentes em risco, racismo e defesa dos animais.

“Porque é que nos estamos sempre a queixar de que a sociedade é fútil, se aquilo que premiamos é futilidade? Se premiarmos bondade e humanidade, a sociedade vai ser mais bondosa, mais humana”

Este projeto não pretende ocultar os problemas, visando “também mostrar a beleza das soluções. Claro que há coisas tristes, mas passam a ser as coisas mais bonitas do mundo se nós olharmos de coração aberto e fizermos parte da ajuda”.

Gustavo Carona e o inseparável Zaidu, um dos seus dois cães, na sua casa, em Matosinhos RUI DUARTE SILVA

No espetáculo que se projeta, o público será chamado a votar para distinguir uma organização em cada categoria. Será um reconhecimento meramente simbólico já que o objetivo é que todas as 68 associações recebam um prémio monetário de igual valor.

“O vencedor receberá uma estatueta. Mas, para tentarmos manter um princípio de equidade, para contrapormos o facto de, por um lado estarmos a pôr organizações a competir entre si, e por outro, todas fazerem um trabalho incrível, vamos premiar monetariamente todas de igual forma”, explica Carona. Cada uma à sua maneira, todas contribuem para “o verdadeiro impacto”.

Fruto de uma exposição mediática que já leva alguns anos, primeiro decorrente das missões humanitárias e, mais recentemente, de múltiplas intervenções públicas a propósito da pandemia, Carona chegou facilmente à fala com um conjunto de figuras públicas pedindo-lhes que apadrinhassem/amadrinhassem a iniciativa e tentassem contagiar outros pares, ou simplesmente divulgassem a ideia dos Prémios nas suas redes sociais.

Como que a comprovar esta dinâmica, a conversa com o Expresso é interrompida pela chegada de uma SMS com boas notícias. É enviada pelo ex-futebolista Tarantini (Rio Ave), informando ter já garantida a adesão ao exército de voluntários de dois outros futebolistas internacionais.

Um exército de voluntários

Do sonho à realidade, este exército de voluntários tem ainda muito trabalho pela frente: a construção de um site (prestes a surgir), a constituição de uma associação para efeitos de questões administrativas, campanhas de angariação de fundos e de patrocinadores, além da produção do espetáculo.

“Às vezes digo que quero que isto seja sexy. Porquê? Não podemos ter uma plateia de pessoas a bater palmas com muita pena dos pobrezinhos… Isto tem de envolver artistas bons, conhecidos, mas também que tenham ação humana na sua forma de estar. E toda a apresentação da gala que seja alegre, que seja a projeção de sorrisos pelo bem que estas pessoas fazem à nossa sociedade”, diz.

“Não acham bonito premiar as pessoas mais humanas da nossa sociedade?”

Corrida a cortina da gala, Carona gostava que “as associações se sentissem orgulhosas do seu trabalho e fossem reconhecidas por uma grande fatia dos portugueses por aquilo que fazem. Elas precisam de ser incentivadas. Essa seria a conquista”.

(FOTO PRINCIPAL Gustavo Carona passa grande parte do dia deitado, a única posição que o alivia das dores crónicas RUI DUARTE SILVA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

À espera que a barba cresça para tentar fintar os talibãs

Perseguido pelo regime, um afegão revela o seu plano de fuga do país. Um relato dramático a partir de Cabul

Said estima que o pesadelo tenha durado uns 40 minutos. Uma eternidade para quem sentia a morte à distância de poucos metros. Por volta das 11 da noite, um grupo de homens identificados com os talibãs bateu à porta da casa dos seus pais em Cabul, capital do Afeganistão. Vinham buscá-lo.

“Eram dois carros. Um estava parado à nossa porta e o outro à entrada da rua. Junto à porta havia três homens e mais dois ao fundo da rua”, recorda ao Expresso este afegão, de 36 anos, descrevendo o que observou através da câmara de vigilância instalada junto à entrada da casa dos pais.

Nervoso, Said ligou a pedir ajuda a amigos, que o aconselharam a não abrir a porta. Por aqueles dias já se sabia o que podia significar uma visita noturna dos talibãs. “Aparecem à noite e levam pessoas de suas casas. Dois ou três dias depois, os cadáveres são despejados num lugar qualquer.”

Os talibãs precisam de integrar as suas forças numa forma de organização centralizada, o que se tem revelado difícil

Perante a insistência dos talibãs, foi a mãe quem levantou a voz para lhes responder de dentro de casa. Questionada acerca do paradeiro do filho, respondeu que não se encontrava ali e que nem sequer estava no país. Os homens não acreditaram, disseram ter informações de que Said estava naquela casa, mas acabaram por abandonar o local.

Foi na casa dos pais que Said se refugiou quando os talibãs assumiram o poder no Afeganistão, após entrarem em Cabul, a 15 de agosto, sem a mínima resistência. Sabia que tinha a cabeça a prémio por ter colaborado com as tropas estrangeiras, que, na perspetiva talibã, “ocuparam” o país durante 20 anos. “A minha família está em risco. Os meus irmãos dizem que tomam conta dos meus pais mas que eu tenho de me salvar sozinho.”

Dólares para subornar

Sem sair de casa desde a assustadora visita dos talibãs, há cerca de duas semanas, Said tem procurado gizar uma forma de se pôr a salvo. A fronteira com o Paquistão está a pouco mais de 200 quilómetros de distância, o que deverá levar umas quatro horas por estrada. Said quer chegar ao ponto de passagem de Torkham, mas para lá chegar precisa de passar despercebido…

Conta, para isso, com a ajuda e cumplicidade de um amigo. “Optei por falar a uma só pessoa. Muita gente envolvida dá sempre problemas. Este meu amigo é de confiança.” Motorista de camiões, Ajmal tem experiência em movimentar-se na zona de Torkham. Pediu a Said que pusesse de parte uns 500 dólares (€433) para dar a um facilitador, na fronteira. Enquanto esse dia não chega, Said deixa que a barba cresça para disfarçar a sua aparência. “Eles conhecem-me. Vou tentar modificar a minha expressão.”

O Expresso conheceu Said em 2011, em Cabul. Na altura, este afegão estudava na Faculdade de Medicina Curativa do Instituto de Ensino Superior Ariana, uma instituição privada em Jalalabade (Leste), perto da fronteira com o Paquistão. Foi ele o guia numa visita a uma escola daquela região conservadora — frequentada por rapazes e raparigas — que beneficiou de financiamento português. “Lembras-te que te pedi que fizéssemos uma visita rápida? Aquelas montanhas em frente à escola estavam cheias de talibãs. Haveria perigo se tivéssemos demorado muito.”

Dificuldade em centralizar

Desde que regressaram ao poder — o novo Governo do Emirado Islâmico do Afeganistão foi anunciado a 7 de setembro —, os responsáveis talibãs procuraram obter reconhecimento internacional adotando um discurso de moderação, oposto ao extremismo impiedoso que caracterizou a sua primeira passagem pelo poder, entre 1996 e 2001.

Entre outras garantias, prometeram uma amnistia para quem colaborou com as forças estrangeiras. Mas o quotidiano dos cidadãos revela-se muito diferente, com muitos talibãs empenhados em vingar essa traição pelas próprias mãos.

“Os talibãs funcionam mais como uma rede espalhada do que como uma estrutura hierárquica robusta”, explica ao Expresso Haroun Rahimi, professor de Direito na Universidade Americana de Cabul. “Agora no poder, precisam de integrar as suas forças, verticalmente, numa forma de organização centralizada. Isso tem-se revelado difícil.”

Said vai partilhando vídeos e fotos macabros, publicados pelos afegãos nas redes sociais, para exemplificar as atrocidades do dia a dia. Perseguições nas ruas, casas rebentadas à bomba, homens executados a tiro ou espancados em sessões de tortura intermináveis.

Num dos últimos vídeos enviados ao Expresso, os corpos de dois homens enforcados oscilam lentamente do ramo de uma árvore. “Uns dizem que eram membros do Daesh [o autodenominado Estado Islâmico, inimigo dos talibãs], outros dizem que eram inocentes”, diz Said. “Este massacre não vai terminar. Os talibãs são muito selvagens, não têm compaixão por ninguém.”

É a um destino cruel destes que Said quer escapar, ainda que tenha de deixar para trás a mulher e três filhos menores. Se conseguir chegar a Islamabade, capital do Paquistão, irá começar outra luta: bater à porta de embaixadas ocidentais (que no Afeganistão estão encerradas), contar a sua história, apresentar documentação e esperar que lhe abram a fronteira para recomeçar a vida em outro país. A salvo. “A vida no Afeganistão já não é possível. Apenas se contam os momentos de dor, tristeza e morte.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

Adeus a um dos símbolos da Revolução: Cuba prepara-se para acabar com a caderneta de racionamento

Faz parte dos domicílios cubanos há quase 60 anos, mas está de saída. O pequeno “caderno de abastecimento”, com que os cidadãos adquirem produtos básicos a preços subsidiados, tem fim anunciado. Um economista cubano explica ao Expresso qual parece ser a futura estratégia do regime de Havana: subsidiar pessoas e não produtos

Ultrapassada a era dos Castro, Cuba continua a trilhar o caminho da mudança. Sem data concreta na agenda, as autoridades de Havana preparam-se para acabar com um dos principais símbolos da Revolução comunista de 1959 — a libreta de abastecimiento.

Este pequeno caderno, que nas últimas décadas é presença constante nas casas cubanas, garante a cada família o acesso a um cabaz básico de produtos subsidiados pelo Estado, a esmagadora maioria deles importada.

“O caderno de abastecimento foi criado em 1962, dura há muito tempo. No princípio, foi uma coisa justa e creio que sim, ajudou a distribuir entre todos os produtos que o Estado podia produzir ou importava”, explica ao Expresso o economista cubano Omar Everleny. “Mas na realidade é um símbolo da escassez do Estado, que teve de subsidiar os produtos que ali se vendem, durante muito tempo.”

Na lista de produtos comparticipados há arroz, ovos, açúcar, frango, massa, sal, azeite, café, leite, pão, dietas especiais para crianças, grávidas e doentes. Estima-se que o Estado cubano gaste anualmente cerca de 1000 milhões de dólares (850 milhões de euros) com este sistema, no qual estão inscritas quase quatro milhões de famílias, e que já não colhe a unanimidade de outros tempos.

À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento
À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

“Hoje a libreta é também um símbolo de desigualdade, já que se entrega o mesmo a um aposentado do Estado, com poucos rendimentos, e a uma pessoa que tem um negócio e vai de férias para o estrangeiro”, comenta Everleny, antigo professor catedrático na Universidade de Havana. “Por isso, acredito que o Estado passe a uma fase em que prefira subsidiar pessoas e não produtos.”

Durante a presidência de Raúl Castro (2008-2018), o irmão de Fidel qualificou o mecanismo de obsoleto. Para reduzir subsídios, cortou alguns artigos do cabaz básico — batata, grão-de-bico, cigarros, charutos, sabonetes e pasta dos dentes —, que passaram a ser vendidos apenas no mercado livre. Raúl considerava que o mecanismo, “com os anos, tornou-se uma carga insuportável e um desincentivo ao trabalho”.

Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba
Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O fim da caderneta foi abordado na quinta-feira passada pelo atual Presidente cubano, no programa televisivo “Mesa Redonda”, criado por Fidel Castro. Miguel Díaz-Canel esclareceu que a libreta deixará de existir após a conclusão da anunciada reforma monetária que o regime de Havana tem em vista, visando eliminar uma das duas moedas oficiais que circulam na ilha.

No território, coexistem o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC). O CUP é a moeda em que os cubanos recebem salários e pensões e equivale, atualmente, a quatro cêntimos do dólar. O CUC é a moeda usada pelos turistas e por quem trabalha no sector do turismo, a galinha dos ovos de ouro da economia cubana. Criado em 1994, o CUC é paritário ao dólar norte-americano e não é aceite em muitas lojas e farmácias. Havana quer acabar com o CUC e ficar com o CUP como moeda única de Cuba.

Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo
Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

O Presidente cubano garantiu que a reforma monetária não irá pôr em causa a continuidade de grandes conquistas da Revolução, como a saúde e a educação universal gratuitas. Díaz-Canel assegura que nenhum cubano ficará desamparado: “Se alguém ficar numa situação de vulnerabilidade, o Governo procurará forma de apoiá-lo”.

Comenta o economista Everleny: “Cuba vive uma das crises mais profundas da sua história e não tem recursos financeiros para continuar a usar essa variável universalista”, como é a libreta. “Mas será um processo gradual, não será uma decisão repentina, não creio que seja este ano, talvez em meados do próximo”.

Paralelamente ao défice crónico na balança de pagamentos, o país acumula dificuldades em virtude da pandemia de covid-19, que afastou os turistas da ilha caribenha, da diminuição das remessas enviadas pela diáspora e também das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados Unidos. A escassez de alimentos, produtos de higiene e medicamentos nas prateleiras dos espaços comerciais é a consequência mais visível desta crise.

Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis
Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES

Instituída pela Lei 1015, de 12 de março de 1962, a caderneta de abastecimento foi criada por Fidel Castro para enfrentar a falta de alimentos que derivou do embargo económico decretado pelos Estados Unidos, principal parceiro comercial à época.

Ainda que o cabaz básico não fosse suficiente para alimentar uma família, era uma ajuda substancial para muita gente. “O cabaz básico, que se entregava mensalmente, garantia menos de 12 dias das necessidades alimentares da população. O resto tinha de ser adquirido a preços de mercado, ou mais altos do que os do cabaz, especialmente os produtos agrícolas”, explica o economista Everleny.

“Hoje a sociedade cubana não é a mesma: 33% do emprego está no sector privado ou cooperativo, ou seja, sem os salários fixos e baixos pagos pelo Estado. Outra parte importante recebe remessas do exterior e outro grupo importante mora no exterior, ou seja, a população não é tão homogénea como nos anos 80.”

Conclui Omar Everleny: “Acredito que parte da população, uns 25%, não esteja preparada nem consiga aguentar o cancelamento da libreta de abastecimiento. O Estado deve mostrar a capacidade necessária para criar mecanismos financeiros que compensem a população que tenha de adquirir os bens do velho cabaz subsidiado, aos preços que esses produtos atinjam”.

(Uma cubana de Santiago de Cuba mostra a sua ‘libreta’, a caderneta de racionamento que lhe permite comprar mantimentos a baixos preços, graças aos subsídios do Estado AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui