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Panos brancos às janelas para sinalizar o drama da fome

A falta de comida tem levado populações a violar o confinamento. A América do Sul é agora o epicentro da pandemia

Parece uma rendição mas é, na realidade, um desesperado pedido de ajuda. Em bairros pobres da Guatemala, panos brancos pendurados fora das casas alertam para a falta de comida. O SOS dirige-se às autoridades, mas, em especial, a vizinhos desafogados que possam dispensar alimentos.

O recolher obrigatório e as restrições à circulação deixaram muitos guatemaltecos sem sustento, sobretudo quem trabalhava no sector informal. Além do branco da fome, panos vermelhos alertam para a falta de medicamentos, azuis para a urgência de alguém ser visto por um médico, pretos para alguém morto dentro de casa e púrpura para situações de violência doméstica.

Este código de cores nasceu no país após a imposição do primeiro cordão sanitário, a 5 de abril, no município de Patzún, onde houve um caso de transmissão comunitária do novo coronavírus. As bandeiras galgaram fronteiras e hoje, no vizinho El Salvador, há cidadãos que não cederam à vergonha da pobreza e estão na berma da estrada a abanar panos brancos, na esperança de que alguém pare o carro e lhes dê comida.

No ano passado, Guatemala e El Salvador foram dos países que mais alimentaram as caravanas de migrantes que partiram da América Central a pé rumo aos Estados Unidos. A miséria torna-os dos mais vulneráveis à pandemia de covid-19, cujo epicentro, diz a Organização Mundial da Saúde, foi da Europa para a América do Sul.

Com o Brasil destacado a nível mundial pelas piores razões, o Peru surge como segundo país mais afetado. A situação descontrolou-se após o confinamento ter sido violado por populações desesperadas pela falta de trabalho.

‘Piñeravírus’ no Chile

No Chile, que tem o maior PIB per capita da região, as carên­cias alimentares originaram protestos violentos. “O Piñeravírus [referência ao Presidente Sebastián Piñera] é mais mortal do que o coronavírus”, ouviu-se nas ruas. Para tentar conter uma explosão social, o Governo anunciou a distribuição de 2,5 milhões de cabazes de alimentos e outros bens essenciais.

Há menos de um ano, muitos países latino-americanos estavam tomados por manifestações por melhores condições de vida. Ao Expresso, Rossana Castiglioni, da Universidade Diego Portales, de Santiago do Chile, aponta dois fatores que podem levar ao recrudescimento dos protestos: “A capacidade de os sistemas de saúde absorverem uma procura crescente por cuidados especializados, camas de cuidados intensivos e ventiladores. E a capacidade de os países adotarem medidas que permitam mitigar os efeitos da crise económica, que ocorrerá de qualquer maneira, sobretudo junto dos mais vulneráveis. Sem políticas que resolvam a perda de rendimentos e o acesso a bens e serviços básicos, os conflitos podem escalar.”

Como em 2019, a fachada da Torre Telefónica, em Santiago, voltou recentemente a iluminar-se com um slogan projetado por um estúdio de arte local. Dizia apenas: “Fome.”

(FOTO Um trapo branco sinaliza um pedido de comida neste casebre em San Salvador JOSE CABEZAS / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Regresso ao trabalho de máscara posta e fé na recuperação económica

O alívio das regras de confinamento levou milhões de pessoas de volta aos seus locais de trabalho. Dos estúdios de tatuagens nos Estados Unidos à feira de Espinho, profissionais das mais diversas áreas arregaçam as mangas com todos os cuidados

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VIETNAME. No mercado de flores Quang Ba, em Hanoi, a máscara de proteção não atrapalha o negócio MANAN VATSYAYANA / AFP / GETTY IMAGES
ALEMANHA. Aparentemente, a máscara não atrapalha esta professora, durante uma aula de matemática numa escola de Berlim CHRISTIAN ENDER / GETTY IMAGES
ANGOLA. A pandemia levou este vendedor ambulante de Luanda a adaptar a sua mercadoria às necessidades mais urgentes OSVALDO SILVA / AFP / GETTY IMAGES
BRASIL. Na cidade de Manaus, os coveiros deste cemitério estão protegidos da cabeça aos pés MICHAEL DANTAS / AFP / GETTY IMAGES
CHINA. Um quarteto da Orquestra Sinfónica de Shanxi toca diante do Exército de Terracota, em Xian. Com instrumentistas de sopros, o uso de máscara não seria possível GETTY IMAGES
COREIA DO SUL. Pessoal de serviço, e devidamente protegido, num jogo de futebol da K League, em Jeonju HAN MYUNG-GU / GETTY IMAGES
EMIRADOS ÁRABES UNIDOS. Apesar dos cuidados com a proteção individual dos funcionários, faltam os clientes nesta joalharia do Dubai KARIM SAHIB / AFP / GETTY IMAGES
ESPANHA. Cuidados redobrados nesta clínica dentária de Madrid PABLO CUADRA / GETTY IMAGES
EUA. Este norte-americano aproveitou o desconfinamento para fazer mais uma tatuagem, em Fort Lauderdale, na Florida CHANDAN KHANNA / AFP / GETTY IMAGES
FRANÇA. Neste jardim zoológico de Saint-Pere-en-Retz, perto de Nantes, a tratadora desta anta não dispensa máscara e luvas LOIC VENANCE / AFP / GETTY IMAGES
HOLANDA. Uma empregada de mesa com viseira serve clientes que jantam em ‘estufas de quarentena’, em Amesterdão ROBIN VAN LONKHUIJSEN / AFP / GETTY IMAGES
ÍNDIA. Um agricultor colhe morangos na região da Caxemira indiana. Apesar de andar só, não abdica da máscara SAQIB MAJEED / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Nesta loja de “smartphones” de Banda Aceh, a funcionária reforça a proteção da máscara com uma viseira CHAIDEER MAHYUDDIN / AFP / GETTY IMAGES
ISRAEL. Tudo preparado e todos protegidos para uma sessão do Supremo Tribunal ABIR SULTAN / AFP / GETTY IMAGES
ITÁLIA. Pescadores descarregam a carga de um barco acabado de atracar, em Terracina ANTONIO MASIELLO / GETTY IMAGES
NICARÁGUA. Dois lutadores posam para os fotógrafos, no porto Salvador Allende, em Manágua, na véspera de se defrontarem INTI OCON / GETTY IMAGES
PORTUGAL. Na centenária feira de Espinho, o uso da máscara é obrigatório para vendedores e clientes RITA FRANÇA / GETTY IMAGES
RÚSSIA. Cirilo I, primaz da Igreja Ortodoxa Russa, numa cerimónia na cidade de Iekaterinburgo, sem fé na proteção divina DONAT SOROKIN / GETTY IMAGES
SENEGAL. Em Dacar, uma equipa de filmagem capta imagens para a série televisiva “O Vírus”, sobre a vida em tempos de pandemia SEYLLOU / AFP / GETTY IMAGES
SUÍÇA. Em Lausana, mal as medidas de confinamento foram aliviadas, os cabeleireiros foram dos primeiros negócios a abrir portas FABRICE COFFRINI / AFP / GETTY IMAGES
TAILÂNDIA. Este taxista de Banguecoque ‘artilhou’ o seu veículo com uma divisória robusta para evitar a propagação do novo coronavírus MLADEN ANTONOV / AFP / GETTY IMAGES
URUGUAI. Na Praça Independência, em Montevideu, engraxador e cliente não descuram os cuidados de segurança ERNESTO RYAN / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Drones e robôs no lado certo do combate à covid-19

A pandemia do novo coronavírus acelerou a utilização de tecnologias. Da Argentina a Hong Kong, há robôs ao serviço em hospitais, farmácias e parques públicos e drones em missão de vigilância, higienização e transporte de material médico

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ÍNDIA. Num hospital de Bangalore, um profissional de saúde testa um robô equipado com câmara térmica que vai fazer a triagem preliminar dos pacientes à chegada ao hospital para impedir a disseminação de covid-19 MANJUNATH KIRAN / AFP / GETTY IMAGES
CHILE. Um drone do município de Zapallar entrega um saco com medicamentos a um casal de idosos que vive em isolamento social por causa da pandemia REUTERS
ITÁLIA. Sem necessidade de proteção especial, este robô ajuda a tratar de doentes covid recolhendo informação junto dos pacientes, num hospital de Varese FLAVIO LO SCALZO / REUTERS
ALEMANHA. Drone para transporte de equipamento médico nos céus de Berlim HANNIBAL HANSCHKE / REUTERS
SINGAPURA. Um cão robô patrulha um parque para dissuadir ajuntamentos EDGAR SU / REUTERS
MALÁSIA. Drone ao serviço da polícia de Kuala Lumpur e da imposição das regras de confinamento LIM HUEY TENG / REUTERS
ITÁLIA. À entrada desta farmácia de Turim, um robô mede a temperatura aos clientes STEFANO GUIDI / GETTY IMAGES
FRANÇA. Um drone pulveriza uma rua da cidade de Cannes com substâncias desinfetantes ERIC GAILLARD / REUTERS
SINGAPURA. Este robô lembra aos corredores, através de mensagens sonoras, que devem manter uma distância segura EDGAR SU / REUTERS
PERU. Enquanto estão na fila para serem testados à covid-19, em Lima, estes cidadãos são desinfetados por um drone SEBASTIAN CASTANEDA / REUTERS
CHINA. Neste restaurante de Xangai, é um robô que leva a comida à mesa ALY SONG / REUTERS
REINO UNIDO. Um robô usado para fazer entregas tem a vida facilitada por estes dias, com as ruas e passeios da cidade inglesa de Milton Keynes vazios LEON NEAL / GETTY IMAGES
MARROCOS. Um funcionário de uma “startup” dirige um drone equipado com uma câmara térmica, perto de Rabat FADEL SENNA / AFP / GETTY IMAGES

EUA. Um robô entrega comida ao domicílio, na Beverly Boulevard, em Los Angeles, após ser decretado o encerramento de todos os serviços não-essenciais AARONP / BAUER-GRIFFIN / GETTY IMAGES

CHINA. Um robô-polícia acompanha três profissionais de saúde, no aeroporto de Wuhan, após o levantamento das restrições à circulação na cidade onde o novo coronavírus primeiro apareceu ALY SONG / REUTERS
ALEMANHA. Junto às caixas de um supermercado da cidade de Lindlar, este robô humanóide apresenta informação sobre medidas de proteção em relação à covid-19 WOLFGANG RATTAY / REUTERS
ÁFRICA DO SUL. Usado para sulfatar propriedades agrícolas, este drone está a ser atestado para desinfetar áreas populosas, na cidade de Tshwane ALET PRETORIUS / GETTY IMAGES
HONG KONG. No aeroporto internacional, a higienização das casas de banho está por conta de robôs equipados com luz ultravioleta TYRONE SIU / REUTERS
ARGENTINA. Nos autocarros de Buenos Aires, há robôs a participar na desinfeção AGUSTIN MARCARIAN / REUTERS
ITÁLIA. No parque Valentino, em Turim, um “carabinieri” opera um drone para vigiar o cumprimento das regras de confinamento MASSIMO PINCA / REUTERS
JAPÃO. Neste hotel de Tóquio, que está a ser usado para acomodar doentes com sintomas leves de covid-19, há dois robôs ao serviço: Pepper dá as boas vindas e Whiz limpa o chão PHILIP FONG / AFP / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Não é um robô, é um homem vestido com um fato de autómato a impor a distância física, numa rua da cidade de Bandung R. FADILLAH SIPTRIANDY / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Os drones vieram para ficar e talvez até para nos trazer as compras a casa. Será que queremos?

A pandemia acelerou o processo de integração dos drones no espaço aéreo civil. Hoje andam no ar em ações de vigilância, a desinfetar áreas urbanas e a transportar medicamentos. O Expresso falou com um investigador que deita água na fervura da euforia e alerta para os perigos da utilização de drones em grande escala

Tempos de crise incentivam a procura de soluções inovadoras para as novas dificuldades da vida, e a pandemia provocada pelo novo coronavírus não é exceção. Da necessidade de — mais confinados — continuarmos ligados uns aos outros resultou a popularidade de serviços de videoconferências como o Zoom. Da urgência em travar a disseminação do vírus brotaram discussões sobre aplicações nos telemóveis para vigiar contactos com doentes de covid-19. E da necessidade de controlar a pandemia, muitos drones (veículos aéreos não-tripulados) passaram a andar em espaço aéreo onde, até há muito pouco, havia apenas helicópteros e aviões.

“A tecnologia é vista cada vez mais como a panaceia para todos os problemas”, diz ao Expresso Bruno Oliveira Martins, investigador do Peace Research Institute de Oslo (PRIO), na Noruega. “Neste clima de estado de emergência generalizado, os drones têm sido utilizados num grande número de funções. Quem tem observado o seu desenvolvimento nos últimos anos sempre antecipou que à medida que a tecnologia fosse evoluindo haveria novas funções que poderiam ser desempenhadas. Neste momento, tudo isso está a materializar-se, um pouco por todo o mundo.”

Em Portugal, a PSP e a GNR usaram drones para controlar o cumprimento do estado de emergência, entre 18 de março e 1 de maio, captando imagens e emitindo mensagens sonoras. Na Coreia do Sul e na Índia, aparelhos com borrifadores acoplados são utilizados para desinfetar áreas urbanas. Na China e Arábia Saudita, drones equipados com câmaras térmicas permitem detetar pessoas com alta temperatura corporal. Na Polónia e no Gana, já foram usados para transportar testes à covid-19.

Com grande naturalidade é fácil imaginar, neste contexto de pandemia, drones em massa nos céus de qualquer cidade em atividades de entregas ao domicílio. “Mas será que queremos mesmo isso?”, questiona o investigador. “Para que os drones voem, precisam de localização por satélite, por norma GPS, deixam uma enorme pegada digital. Eu não tenho a certeza de querer ter as minhas compras numa base de dados…”

O investigador recorda a edição de 6 de maio de 2017 da prestigiada revista “The Economist”, que considerava que os dados pessoais tinham ultrapassado o petróleo como “recurso mais valioso do mundo”. No desenho que ilustrava a capa, seis gigantes tecnológicas (Amazon, Uber, Microsoft, Google, Facebook e Tesla) surgiam instaladas em plataformas petrolíferas.

“A circulação dos nossos dados numa economia paralela, que se alimenta deste capitalismo de vigilância, é extremamente difícil de perceber para o cidadão comum”, explica. “A ideia de que há um sistema de email gratuito é falsa. O Gmail não é gratuito — não o pagamos com dinheiro, pagamo-lo com os nossos dados pessoais, que depois são comercializados nesse mercado paralelo que se alimenta de milhões e milhões e milhões de dados para desenvolver novas tecnologias. A maior parte das pessoas não tem consciência disto.”

Hora de ponta à volta do edifício

Além da pegada digital, Bruno Oliveira Martins identifica dois outros obstáculos à massificação de drones-estafeta. “Até podemos pensar que, precisados de ir à farmácia, seria excelente se um drone trouxesse o medicamento a casa. Mas se vivermos num prédio com mais 50 pessoas e todas pensarem da mesma maneira, inevitavelmente vão acontecer acidentes.”

Por outro lado, para haver trânsito de drones em grande escala, “o espaço aéreo teria de ser compartimentado, com corredores utilizados por drones para um determinado serviço e uns metros acima para outros serviços, o que é extremamente complicado”.

Todo este tecno-otimismo deve, pois, ser tratado com moderação, já que, à semelhança de qualquer fármaco produzido para curar maleitas, também os drones têm contra-indicações. “A proliferação de drones no espaço aéreo civil abre um sem-número de questões, sobretudo ao nível da privacidade e do armazenamento e tratamento de dados”, diz o investigador do PRIO. “Muitas vezes, tendemos a prestar menos atenção a estas questões, porque colocamos muito otimismo na tecnologia.”

Mais ainda num contexto de ameaça à saúde pública, em que os drones são percecionados como estando do lado certo do combate. “Sempre que existe um sentimento generalizado de insegurança, as pessoas estão dispostas a baixar a guarda ou a tolerar coisas que não aceitariam num contexto de normalidade”, explica Bruno Oliveira Martins.

CNPD rejeitou pedido do Governo

No caso português, o investigador destaca o papel da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) relativamente ao uso de drones durante o estado de emergência. “Quando a PSP pediu autorização ao Ministério da Administração Interna [MAI] para utilizar drones, solicitou na prática um cheque em branco. Quando o MAI consultou a CNPD, esta deu parecer negativo. Depois, quando o MAI autorizou a utilização de drones, fê-lo para fins muito mais delimitados. Vemos neste processo bastante simples como as coisas podem descambar.”

Bruno Oliveira Martins alerta para o perigo de, passado o período de exceção, a situação não voltar exatamente ao ponto em que estava antes da emergência, e exemplifica com a política de assassínios seletivos usada sobretudo por Estados Unidos e Israel. Se há anos era prática excecional, realizada em grande secretismo e para alvos de altíssimo valor, hoje tornou-se prática comum. “É um exemplo de algo que era altamente excecional e se normalizou. Passada a exceção, não se voltou ao ponto em que se estava antes.”

Prevenir abusos passa por estar vigilante — dos partidos políticos ao cidadão comum —, ainda que, nos dias que correm, todos sejam, de alguma forma, parte do problema. “Com os nossos Instagram, Facebook, Twitter, o recurso ao Google Maps para tudo e para nada, nós próprios alimentamos a cultura de vigilância”, conclui o investigador.

“Hoje é extremamente difícil vivermos desligados e isso faz com que percamos a sensibilidade em relação a questões que são efetivamente complicadas. Por essa razão, todos temos o dever de tentar ter um espírito crítico em relação a estas questões.”

(VECTORPORTAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Dormir, trabalhar e brincar com os mortos por companhia

A pobreza e a saturação demográfica de Manila empurram famílias inteiras para dentro dos cemitérios da cidade. Vivem ali anos a fio, improvisando formas de sustento. O Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira, é uma oportunidade para ganharem um dinheiro extra e iludirem a profunda miséria em que vivem

Aquela que é para milhões de filipinos a sua última morada é também, para uns quantos milhares, a única casa possível. Em Manila, famílias inteiras vivem no interior de cemitérios públicos. Muitos ali nasceram, ali tiveram filhos e enterraram os pais. Sem condições para viverem na cidade, refugiam-se onde lhes é garantido teto de forma gratuita.

É o que acontece no Cemitério do Norte, um dos maiores e mais antigos da capital das Filipinas, onde jazem cerca de um milhão de pessoas, entre as quais personalidades históricas e celebridades. Inaugurado em 1904, é uma espécie de cidade dentro da cidade que se estende por 54 hectares (aproximadamente 54 campos de futebol) e onde se (sobre)vive sem saneamento, eletricidade e água potável.

A qualquer hora do dia, há colchões estendidos em cima de tumbas de mármore onde alguém dormita. Dentro de mausoléus, vê-se televisão com eletricidade desviada da rede pública. Os jazigos servem de mesa de refeições ou de tampo para jogos de tabuleiro, da preferência dos mais velhos. Os mais jovens jogam basquetebol nas ruas com cestos afixados em paredes com ossários. E há sempre alguém que toma banho ao ar livre, com água do balde tirada de um poço.

Nas ruas do cemitério, o lixo abunda, misturado com crânios e esqueletos abandonados a céu aberto e roupas rotas de cadáveres exumados ou à espera de serem incinerados.

Para as crianças — que recebem alguma instrução graças à generosidade de voluntários —, saltar de jazigo em jazigo é uma diversão indescritível. Indiferentes à chegada de mais um funeral — e são dezenas por dia, no Cemitério do Norte — convivem com a morte num registo chocante de grande banalidade.

Pressão demográfica

Viver no cemitério é o recurso possível para quem não tem meios para se aguentar na cidade. As Filipinas são um país de 110 milhões de habitantes onde, segundo o Banco Mundial, cerca de 22 milhões vivem abaixo do limiar nacional de pobreza. A capital, Manila, é uma das megacidades do mundo, com 12 milhões de habitantes: segundo o recenseamento de 2015, a cidade tem uma média de 71 mil habitantes por quilómetro quadrado.

Antiga colónia espanhola, as Filipinas são um país onde as tradições católicas são vividas com devoção e fervor, como acontece no Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira. Para quem vive nos cemitérios, estes rituais fúnebres são oportunidades para amealharem uns pesos extra e viverem os tempos que se seguem de forma mais desafogada.

Quem tem os seus ali enterrados quer ver os jazigos asseados e solicita os serviços de quem, morando nos cemitérios, tenta ganhar a vida a limpar túmulos, a cinzelar os nomes dos defuntos nas lápides de mármore, a trabalhar como pedreiros e coveiros, a ajudar a transportar caixões ou a vender flores e velas feitas com cera reciclada.

Esta “economia fúnebre” passa também por algum comércio voltado para os próprios moradores, como lojas de conveniência, cafés e karaokes. Há quem trabalhe na cidade e durma no cemitério. Todos sentir-se-ão esquecidos pelo “mundo lá fora”, mas tentam mentalizar-se que pelo menos ali conseguem viver.

E excetuando os dias em que há raides da polícia na perseguição a narcotraficantes e “zombis” — como o polémico Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterre, chama aos toxicodependentes —, viver nos cemitérios é incomparavelmente mais calmo do que na confusão de Manila.

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Brincadeiras na água dentro de um mausoléu, num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Vida e morte convivem no quotidiano de milhares de filipinos que vivem em cemitérios ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Crianças alegres, num triciclo que circula entre jazigos CHERYL RAVELO / REUTERS
Um casal apoia-se numa tumba, junto ao seu pequeno negócio ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Chegada de um funeral, junto a uma casa feita com blocos de cimento e chapas de zinco PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Nos cemitérios de Manila, não há escolas. A educação das crianças depende de voluntários CHERYL RAVELO / REUTERS
Hora de diversão dentro do Cemitério do Norte, em Manila EZRA ACAYAN / GETTY IMAGES
Partida de basket junto a uma parede com ossários EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Concentrados no jogo de bilhar, indiferentes ao que os rodeia NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Roupas de moradores num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Uma residente põe a roupa a secar junto a um amontoado de jazigos TAKAHIRO YOSHIDA / GETTY IMAGES
Ossadas humanas num depósito de lixo NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Qualquer sítio é bom para dormir, mesmo nos dias de maior afluência ao cemitério MOHD SAMSUL MOHD SAID / GETTY IMAGES
No Cemitério do Norte, há vida até no beco mais estreito MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Crisóstomo não perde a fé, ainda que o espaço a que chama casa seja este pequeno cubículo PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Mural no cemitério público de Navotas, em Manila NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
As casas crescem por cima de filas de túmulos EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Qualquer sítio serve para conviver e tomar-se uma refeição EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
O conforto possível, no interior de um mausoléu, no Cemitério do Norte PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Não há tanque para lavar a roupa. Quanto à água, há que ir buscar ao poço CHERYL RAVELO / REUTERS
Uma loja de conveniência, dentro do Cemitério do Norte ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Basta uma bola e a brincadeira está garantida PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Jogos de tabuleiro, em cima de um túmulo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Sem parques infantis por perto, as crianças dão largas à imaginação possível EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Um banho rápido e de água fria, junto a um poço, num cemitério filipino ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Uma rua coberta de lixo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
No Cemitério do Norte, um grupo de crianças estuda dentro de um mausoléu ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Tratando-se de crianças, nada dentro do cemitério fica por percorrer EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Esta família goza de alguma privacidade, dentro de um mausoléu JOHN JAVELLANA / REUTERS
Na falta de escorregas, as crianças improvisam EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Um cemitério que mais parece um bairro de lata NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
O colchão é uma chapa de zinco ondulada DONDI TAWATAO / GETTY IMAGES
Há quem nasça nos cemitérios de Manila EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Apesar de não haver serviço de eletricidade no cemitério, não faltam televisões ROMEO RANOCO / REUTERS
A curiosidade de quem vive no cemitério perante o ritual de quem visita a campa de um familiar EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui