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Enquanto a paz não chega a Cabo Delgado, Pemba minimiza as fricções entre deslocados e locais com o poder do diálogo

A violência jiadista no norte de Moçambique condena milhares de pessoas a um vaivém constante em busca de segurança. Em Pemba, os deslocados que chegaram à cidade correspondem a 40% da população. Um projeto elaborado por um economista português e apoiado pelo International Growth Centre fez o levantamento das fricções sociais e pôs locais e forasteiros à conversa, com resultados visíveis. “É quase um medicamento que ajuda a aliviar sintomas, enquanto soluções mais duradouras possam ser pensadas”, diz Henrique Pita Barros

A partir de julho, as tropas moçambicanas ficarão mais sós no combate à insurgência terrorista no país. “A Missão Militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral [SAMIM, na sigla inglesa] está a enfrentar problemas financeiros” e decidiu retirar-se de Moçambique, anunciou, há dias, a ministra dos Negócios Estrangeiros, Verónica Macamo.

Os oito países africanos que contribuem com soldados para essa força “não estão a conseguir colocar o dinheiro necessário”, acrescentou a governante moçambicana. “Também temos de tomar conta das nossas tropas e teríamos dificuldades em pagar” pelos serviços da missão.

Em face dos constrangimentos orçamentais, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), organização regional de que emana esta força, optou por dar prioridade à sua missão na República Democrática do Congo, onde mais de 120 grupos armados disputam o acesso a recursos naturais com grande violência sobre as populações. O número de deslocados neste país da região dos Grandes Lagos ascende já a sete milhões de pessoas.

O anúncio da retirada da SAMIM, que estava em Moçambique desde 2021, originou preocupação no país, fustigado por uma nova vaga de ataques jiadistas, na província de Cabo Delgado (norte), após meses de acalmia. Em fevereiro, a violência provocou quase 100 mil deslocados, dos quais mais de 60 mil eram crianças.

Acolher 140 mil deslocados em cinco anos

Para as localidades diretamente afetadas pela insurgência — seja por ataques, seja por serem porto de chegada de milhares de pessoas em fuga à violência —, a vida quotidiana é um acumular de dificuldades. Pemba, a capital de Cabo Delgado, é um espelho vivo do drama.

Com 200 mil habitantes, à época do censo de 2017 — ano em que os jiadistas se anunciaram neste país lusófono com um ataque em Mocímboa da Praia —, Pemba absorveu 140 mil deslocados nos cinco anos seguintes, cerca de 40% da população da cidade. “É muita gente. Pode-se imaginar a pressão gigante que um fluxo de deslocados tão grande cria, tendo em conta o ambiente de pobreza generalizada”, diz ao Expresso Henrique Pita Barros, autor de um projeto de investigação em Pemba que visa aproximar deslocados e comunidades acolhedoras e reduzir a fricção social.

Em Pemba, a tensão entre locais e forasteiros é, à partida, uma inevitabilidade. “O acolhedor é alguém que vive mal. Na cidade, muitas pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza e, portanto, querem algo em troca para acolher o deslocado, por exemplo, no quintal da sua casa.” A contrapartida passa, em geral, por partilhar o apoio dado pelo Programa Alimentar Mundial (PAM), que distribui senhas de comida. “Os acolhedores ficam com uma parte, no fundo, com uma comissão”, explica o economista, a concluir o doutoramento na Universidade de Brown (Rhode Island, Estados Unidos).

Trabalhos forçados e violência sexual

Há relatos de extorsão e trabalhos forçados, quase escravatura do acolhedor sobre o deslocado, e situações de discriminação verbal e de violência física. E também de violência sexual envolvendo mulheres e meninas, a quem são exigidos favores sexuais para dar acolhimento. Os cortes no financiamento do PAM aumentaram as dificuldades.

Em 2023, o PAM angariou apenas 7500 milhões de dólares (quase 7000 milhões de euros) dos 23.500 milhões de dólares (mais de 21 mil milhões de euros) necessários para custear as suas operações, na que foi a pior queda no financiamento desta agência em 62 anos de história.

“Os atores no terreno, sejam autoridades governamentais, organizações não governamentais ou agências internacionais, como o PAM ou a Organização Internacional para as Migrações [OIM], fazem o que podem com os recursos que têm, que são sempre escassos. E, por vezes, não conseguem intervir por questões de segurança”, diz Pita Barros.

“Que podemos fazer para aproximar os deslocados e as pessoas que os acolhem num contexto de recursos escassos e em que a capacidade de atuação dos agentes é limitada? Podemos usar o diálogo”, responde, “delegar nas pessoas a tarefa da integração, usar a própria comunidade para ajudar à inclusão de forma rápida e com recursos baixíssimos”.

Com esta ideia em mente, o economista desenvolveu um projeto de investigação, em conjunto com o International Growth Centre (IGC), uma instituição ligada à London School of Economics com escritório em Maputo, que abriu portas num contexto tão sensível como Cabo Delgado.

Reuniões comunitárias de dez pessoas

O projeto arrancou em agosto de 2022 e consistiu, de início, na organização de reuniões comunitárias, cada uma com a participação de dez pessoas — umas deslocadas, outras anfitriãs. As conversas eram moderadas por facilitadores, no caso, líderes religiosos muçulmanos de Cabo Delgado, a única província de Moçambique com população maioritariamente de credo islâmico. Os participantes eram sobretudo muçulmanos, havendo também cerca de 20% de católicos.

Ao ar livre, os participantes sentavam-se em círculo e conversavam durante três horas, seguindo um guião previamente elaborado. O diálogo era seguido de perto pela equipa do projeto, pessoas conhecidas da comunidade e da sua confiança, que dominavam as três línguas usadas — Mwani, Makua e Makonde — e recolhiam a informação que resultava daquela interação.

“Os conteúdos das conversas foram totalmente definidos pela comunidade. Eu, como estrangeiro que quer realizar o projeto, o pior que podia fazer era dizer-lhes: ‘Eu é que sei, vocês têm que fazer desta maneira ou daquela’”, explica Pita Barros. Cerca de 70% dos participantes nas reuniões eram mulheres: no caso dos deslocados, porque quem foge são sobretudo mulheres e crianças; no caso dos acolhedores, porque eram quem tinha mais disponibilidade para participar, já que os homens tinham de trabalhar.

Aos deslocados, perguntava-se, por exemplo: “Em comparação com a vida que tinha na aldeia de origem, como é que a sua vida mudou aqui em Pemba?” E aos locais: “Como é que a sua vida mudou com a chegada dos deslocados aqui ao bairro?” À vez, todos respondiam às perguntas.

No final da sessão, havia lugar a uma conversa aberta em que os participantes podiam contar as suas histórias pessoais e partilhar experiências traumáticas vividas durante os ataques dos insurgentes. “Foi a parte mais sensível da reunião, porque ficámos a saber de tudo”, diz o economista.

Ficar, apesar do sofrimento

“Ouvimos relatos bastante gráficos e explícitos de todo o horror. Alguns participantes choravam e ficavam bastante perturbados. Nós sugeríamos que saíssem do projeto, para não se exporem, mas diziam que queriam ficar para contar a sua história. Era quase um alívio para essas pessoas.”

Quem foge à violência jiadista testemunha situações de grande violência, como decapitações. Para os acolhedores, as sessões serviram para criar identificação com o sofrimento de quem chega à procura de ajuda. “Os acolhedores vivem ao lado dos deslocados sem saber que o marido daquela senhora foi morto pelos insurgentes ou que a filha foi raptada ou ainda que ela passa fome. Vivem lado a lado e não falam, ou falam pouco.”

Concluída a fase das reuniões comunitárias, Henrique Pita Barros observou, no curto prazo, um aumento da tolerância e da confiança dos acolhedores relativamente aos deslocados, associados, muitas vezes, a alguma insegurança na cidade.

O projeto permitiu também sistematizar as três principais fontes de fricção entre deslocados e acolhedores.

  • ‘A inveja dos acolhedores’. Os acolhedores vivem quase tão mal como os deslocados e não percebem quando a ajuda é direcionada para os deslocados. Depois de conhecerem as histórias dos deslocados, tendem a ser mais compreensivos relativamente à necessidade de apoio.
  • Urbanos versus rurais. Os acolhedores de Pemba vivem em meio urbano e muitos dos deslocados são oriundos de zonas rurais. As vivências são diferentes numa aldeia e numa cidade como Pemba, desde logo ao nível dos hábitos de higiene ou das formas de comunicar, sendo uns mais formais e outros mais permeáveis ao calão.
  • Receio de infiltrados. Os acolhedores desconfiam da possibilidade de haver insurgentes infiltrados ou simpatizantes escondidos entre os deslocados, nomeadamente mulheres, que chegam sozinhas. “O curioso é que a desconfiança é só das pessoas de Pemba para com os deslocados”, acrescenta o investigador. “Ninguém pensa que é provável que haja pessoas em Pemba que são simpatizantes dos insurgentes. A cidade nunca foi atacada, o que é uma questão interessante.”

O investigador tem planos para regressar a Cabo Delgado e desenvolver um novo projeto vocacionado para a reintegração dos deslocados nas suas zonas de origem.

Projetos deste tipo são “quase um medicamento que ajuda a aliviar sintomas, enquanto soluções de longo prazo, mais duradouras, possam ser pensadas, por exemplo, pelo Governo de Moçambique ou pelo Banco Mundial”, conclui o economista. “Não é uma bala de prata que vai resolver tudo, mas é algo que ajuda a minimizar.”

(FOTO Reunião comunitária envolvendo pessoas deslocadas e membros da comunidade acolhedora, em Pemba CORTESIA HENRIQUE PITA BARROS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataques terroristas voltam a aumentar em Moçambique: “A acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica”

A insurgência jiadista em Cabo Delgado dura há mais de seis anos. Nos últimos meses, uma descida consistente da quantidade de ataques fazia prever o fim da ameaça e o regresso à normalidade daquela província no norte de Moçambique. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos”, alerta o historiador Eric Morier-Genoud, autor de um livro que aborda as origens do problema

Eric Morier-Genoud, fotografado em Lisboa NUNO FOX

A 3 de janeiro passado, ainda o mundo recuperava da folia própria da entrada num novo ano, um duplo ataque suicida na cidade iraniana de Kerman recentrou a Humanidade nas angústias do dia-a-dia. Esses atentados, que provocaram 94 mortos, fizeram temer o alastramento da guerra na Faixa de Gaza a todo o Médio Oriente pelo duro golpe infligido ao Irão.

O banho de sangue em Kerman foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh, no acrónimo árabe), a organização terrorista que o Irão ajudou a derrotar no Iraque e na Síria e que se julgava quase inativa, após meses de declínio consistente do número de ataques.

No dia seguinte à chacina, o Daesh içou a bandeira da jihad (guerra santa) e, numa mensagem áudio divulgada na Internet, o seu porta-voz, Abu Hudhayfah al-Ansari, anunciou uma nova campanha global de terror jiadista intitulada “Matem-nos onde quer que os encontrem”. Os “soldados” do Daesh foram instados a “procurar alvos fáceis antes dos difíceis, alvos civis antes dos militares” e a “alvejar judeus, cruzados [cristãos] e os seus aliados criminosos em todos os lugares da Terra e sob todos os céus”.

O anúncio teve repercussões nas semanas seguintes, em especial na África Subsariana, onde está ativa uma constelação de grupos armados leais ao Daesh.

Na República Democrática do Congo, no espaço de uma semana, os jiadistas da Província da África Central do Estado Islâmico (ISCAP, na sigla inglesa) atacaram aldeias cristãs e decapitaram 50 pessoas. No nordeste do Mali, o braço Província do Sahel do Estado Islâmico (ISSP), que se movimenta em áreas muçulmanas, atacou forças governamentais e uma milícia tuaregue rival.

No passado fim de semana, na Nigéria, a célula designada Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP) investiu contra uma sede da polícia, no estado de Borno, matando quatro agentes.

“Viagem de pregação”

Uma quarta frente subsariana deste ressurgimento jiadista é Moçambique. A 29 de janeiro, o Daesh anunciou uma “viagem de pregação” pelo norte deste país lusófono, após acusar o Exército moçambicano de realizar “massacres contra muçulmanos” na província de Cabo Delgado, de maioria muçulmana, uma das mais pobres e distanciadas da capital, Maputo.

Os alvos do Daesh são posições de tropas governamentais, postos administrativos e, não raras vezes, as populações civis. Há notícias de mortes violentas, raptos, saques, destruição e invasões de propriedades agrícolas. “Há relatos de mortos, alguns decapitados, e de populações em pânico e em fuga”, partilhou, a 2 de fevereiro, a Fundação Ajuda À Igreja que Sofre, após receber testemunhos de missionários católicos em Cabo Delgado.

“No último trimestre do ano passado, houve pouquíssimos ataques por parte dos rebeldes e começou a desenvolver-se a ideia de que a insurgência estava na reta final. Em janeiro, surgiram muitos ataques contra bases militares do Governo. Foi uma surpresa geral porque, durante três meses, houve uma acalmia e parecia que as coisas estavam a resolver-se. Agora, os ataques estão a intensificar-se”, comenta ao Expresso Eric Morier-Genoud, autor do livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique” [A caminho da Jihad? – Muçulmanos e Políticas em Moçambique Pós-Colonial] (2023, não traduzido na língua portuguesa).

Paralelamente às ações armadas, o Daesh “desenvolveu uma campanha mediática muito forte, com declarações e divulgação de fotografias e vídeos dos ataques”, acrescentou o investigador da Universidade Queen’s de Belfast (Irlanda do Norte). “Começou a surgir a impressão de que havia muita coisa a acontecer, mais do que acontecia na realidade.”

O recrudescimento do terrorismo no norte de Moçambique arrasa a esperança de normalização e estabilidade que tinha começado a instalar-se no país. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos. Afinal, a acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica.”

Esse otimismo foi, em parte, também potenciado pelo anúncio da Total Energies, a gigante francesa do sector da energia, de que planeia retomar o desenvolvimento do seu projeto de exploração de gás natural liquefeito no norte de Moçambique no primeiro trimestre de 2024. A operar no país desde 1991, a Total suspendeu as atividades em Cabo Delgado em abril de 2021 devido à ofensiva jiadista na região.

“Os insurgentes não têm meios para desenvolver este tipo de estruturas [económicas]. Não penso que tenham em mente controlá-las”, avalia o professor Genoud. “Para eles, é mais um meio de fazerem publicidade e dizerem à população que há desigualdade, que as gentes locais não recebem nada enquanto se desenvolvem grandes projetos e que têm de seguir outra lei, que não a do Governo atual, para poderem ser uma sociedade mais justa.”

As preocupações do Presidente

Nas últimas semanas, o Presidente moçambicano tem abordado com grande frequência a situação no norte do país. “O momento não é dos melhores, não porque o nosso trabalho não esteja bem, mas porque em todas as guerras — refiro-me agora ao combate ao terrorismo — há momentos altos e momentos baixos, mas também há momentos em que o inimigo se reestrutura, e é o que está a acontecer agora. Estão a movimentar-se muito”, disse Filipe Nyusi, a 26 de janeiro, citado pelo jornal moçambicano “O País”.

“O modus operandi dos terroristas nos últimos dias tem exigido fortes medidas de vigilância”, afirmou o chefe de Estado, a 2 de fevereiro, durante uma receção ao corpo diplomático, no Palácio da Ponta Vermelha, em Maputo.

“Queremos apelar à nossa resiliência coletiva, para suster as investidas dos terroristas. Aos jovens, apelamos para não aderirem ao recrutamento e a reportarem qualquer movimento estranho que possa condicionar a segurança das comunidades”, disse no dia seguinte, numa intervenção por ocasião do Dia dos Heróis Moçambicanos.

A insurgência jiadista em Cabo Delgado fez-se anunciar ao mundo a 5 de outubro de 2017, quando homens munidos com facas, machetes e armas de fogo atacaram três postos da polícia na cidade de Mocímboa da Praia, aos gritos de “Allahu Akbar” (Deus é Grande).

Este episódio é descrito nas suas múltiplas vertentes — quem o fez, como e com que objetivo — no livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique”, uma investigação histórica sobre a relação entre “a mesquita e o Estado” desde a independência de Moçambique, em 1975, e que aborda também as origens da ameaça jiadista.

Publicada em 2023, a obra procura responder à pergunta: será que as opções políticas relativamente aos muçulmanos moçambicanos — primeiro adotadas pelo poder colonial português, de matriz católica, e depois pela Frelimo, o partido de orientação marxista-leninista que sempre governou o país — empurraram a comunidade na direção da violência?

“A jihad não é um desenvolvimento natural do Islão em Moçambique”, responde Morier-Genoud. “A insurgência podia muito bem não ter acontecido, não há nenhuma inevitabilidade em relação ao que aconteceu. Nesse sentido, penso que o processo pode inverter-se até à renúncia da violência. A esmagadora maioria dos muçulmanos de Moçambique não quer a sharia total nem um califado, nem aceita a violência como forma de atingir esses objetivos.”

“A ideia de que houve uma radicalização por parte dos muçulmanos moçambicanos é errada”

Mais de seis anos após o seu início, a rebelião jiadista já provocou quase 5000 mortos e um milhão de deslocados. Hoje, os terroristas atuam ao estilo de uma guerrilha clássica, com uma circulação de combatentes extremistas através da fronteira com a Tanzânia. Porém, refere o especialista, “a base dos insurgentes está em Moçambique e a maioria da liderança e dos combatentes são moçambicanos”.

Desde julho de 2021, uma força militar africana — formada por efetivos de oito países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), que compõem a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM), e um contingente de cerca de 3000 soldados do Ruanda — apoia Moçambique no “combate ao terrorismo e aos atos de extremismo violento” em Cabo Delgado, como consta do seu mandato.

“Essa intervenção regional teve um impacto muito grande”, comenta o historiador. “Conseguiu-se reduzir o número de combatentes em 90%, comparativamente aos que existiam em finais de 2020. Também foi possível reduzir a área de atuação dos insurgentes. Nesse sentido, é um sucesso. O problema é o passo seguinte… já foi anunciado que a SADC vai retirar-se de Moçambique a partir de julho. Há preocupações que foram expressas, inclusive, pelo Presidente da República. É uma transição e, como em qualquer transição, há riscos.”

A 14 de dezembro passado, o Parlamento moçambicano aprovou o aumento do serviço militar obrigatório de dois para cinco anos, medida que configura uma resposta direta à necessidade de reforçar a capacidade de combate do país. A mobilização de reservistas é outra possibilidade sugerida pelo chefe de Estado para fazer face à retirada dos militares da SAMIM, a partir de julho próximo.

Em paralelo, na sequência de um pedido de ajuda dirigido por Maputo à União Europeia, a 3 de novembro de 2021, foi lançada a Missão de Formação Militar da UE (EUTM, sigla inglesa), visando o treino de tropas especiais moçambicanas no combate ao terrorismo. Portugal participa com militares e assegura o comando da força.

Ao contrário da Missão da SADC, as tropas ruandesas irão continuar em Moçambique. Além da perseguição aos extremistas, estes efetivos têm adotado uma postura de grande proximidade às populações. Protegem cidades, reabrem estradas e participam na construção de obras públicas, como poços.

Este patrulhamento de proximidade, que possibilitou o regresso a casa de populações que tinham fugido dos ataques, granjeou-lhes prestígio e aprovação junto das populações. “Os ruandeses parecem ser as tropas mais eficientes”, avalia Morier-Genoud. “Falam suaíli [língua predominante no extremo norte de Moçambique], têm ótimas relações com a população e tiveram muito sucesso nas zonas onde estão.”

Califado perdido

Em 2019, o Daesh reconheceu oficialmente os Al-Shabaab moçambicanos (A Juventude, em árabe), a seita que está na origem da insurgência em Cabo Delgado, como uma das suas províncias — o Estado Islâmico de Moçambique (ISM). O juramento de fidelidade dos jiadistas moçambicanos contribuiu para internacionalizar o problema, numa altura em que o Daesh já perdera o califado que chegou a controlar em um terço da Síria e 40% do Iraque (2014-17).

“Eles querem depor o Governo tal como existe e estabelecer um Governo que siga unicamente a sharia [lei islâmica]. Uma vez que agora estão ligados ao Estado Islâmico, há todo um discurso relativo ao estabelecimento de uma província do califado mundial na zona de Cabo Delgado. Eles pedem à população que siga o Alcorão e que não interaja com o governo secular, militares e polícia.”

A presença jiadista em Moçambique distorce a imagem da comunidade muçulmana no país, aproximadamente 20% da população total de quase 35 milhões de pessoas. “A esmagadora maioria dos muçulmanos está satisfeita com a liberdade religiosa que existe no país e com a forma como o Governo atua”, conclui Eric Morier-Genoud. “O que existe é um grupo muito pequeno — falamos de dezenas ou centenas de pessoas — que se radicalizou e quer criar uma sociedade islâmica à margem da sociedade existente.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Ataques em Damasco, Beirute e Kerman revelam eixo de provocação ao Irão

A explosão de duas bombas numa cidade iraniana provocou, esta quarta-feira, mais de 100 mortos. Foi o último de uma série de ataques contra o Irão ou grupos armados aliados na região que indiciam uma intenção de provocação à República Islâmica. Dois investigadores ouvidos pelo Expresso coincidem na análise. A guerra não está a correr bem ao primeiro-ministro israelita. Prolongá-la e abrir novas frentes na região é uma necessidade de Benjamin Netanyahu, em nome da sua própria sobrevivência política

Duas iranianas juntos a um retrato de Qasem Soleimani, em Teerão MORTEZA NIKOUBAZL / GETTY IMAGES

Há exatamente quatro anos, no aeroporto de Bagdade, capital do Iraque, um míssil certeiro disparado por um drone dirigido por forças dos Estados Unidos — era Donald Trump o inquilino da Casa Branca — atingiu mortalmente o general iraniano Qassem Soleimani.

Esta quarta-feira, a explosão de duas bombas, perto do Cemitério dos Mártires, onde Soleimani está enterrado, na cidade de Kerman (centro do Irão), provocaram pelo menos 103 mortos e 141 feridos. O banho de sangue levou o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, a cancelar a sua visita à Turquia, prevista para esta quinta-feira.

Este “ataque terrorista”, como depressa foi rotulado pelas autoridades iranianas, atingiu em cheio uma multidão que se dirigia para uma cerimónia em memória daquele herói nacional — que teve um papel determinante na derrota do Daesh no Iraque e na Síria.

A tragédia fez acionar os alertas da escalada do conflito na região do Médio Oriente, que, menos de 24 horas antes, já sofrera um poderoso abalo com o assassínio de Salah al-Aaruri, número dois do Hamas, num ataque com drone atribuído a Israel, no sul de Beirute, capital do Líbano.

“O significado dos dois ataques consecutivos não se prende com quem era Soleimani ou com o seu legado enquanto figura política e estratégica, mas com o simbolismo da sua liderança da Força Quds”, diz ao Expresso Mohammed Cherkaoui, professor na área da Resolução de Conflitos na Universidade George Mason (Virgínia, EUA). “O alvo de Kerman é a ligação Irão-Palestina, menos de 20 horas após o assassínio do número dois do Hamas, em Beirute.”

A Força Quds, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão. Está encarregue do apoio de Teerão a um conjunto de peões na região, que atuam em nome do interesse nacional iraniano — como o grupo islamita palestiniano Hamas, o movimento xiita libanês Hezbollah e os rebeldes iemenitas hutis. Atualmente, todos estão empenhados, em maior ou menor grau, em ações de confronto com Israel.

Nenhum dos dois ataques foi reivindicado, mas na região aponta-se o dedo ao Estado judeu. Na rede social X, o deputado israelita Danny Danon, antigo embaixador nas Nações Unidas, confirmou suspeitas e felicitou “as Forças de Defesa de Israel, o Shin Bet, a Mossad e as forças de segurança pelo assassínio de Salah al-Aaruri”, no Líbano. “Qualquer pessoa envolvida no massacre de 7 de outubro deve saber que entraremos em contacto e apresentaremos a fatura.”

Nascido na cidade palestiniana de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, Salah al-Aaruri era o principal coordenador das ações do Hamas naquele território palestiniano. A confirmar-se a implicação de Telavive na sua morte, foi a primeira vez que Israel atacou na capital libanesa desde a guerra de 34 dias que travou com Hezbollah, no verão de 2006.

Com que objetivo o fez agora?

“Até agora, a guerra em Gaza do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que dura há quase três meses, parece debater-se com dificuldades ao nível da erradicação do Hamas, da libertação dos reféns e da alteração da geopolítica da Faixa de Gaza”, continua o antigo membro do Painel de Peritos das Nações Unidas. “Parece ter mudado de tática na direção do norte, onde o Hezbollah poderá retaliar pelo assassínio do líder palestiniano, no sul de Beirute.”

Neste sentido, a intenção de Netanyahu seria mostrar mão dura e, ao mesmo tempo, procurar transmitir liderança e segurança ao povo israelita. Mas outra razão maior sobressai.

“Netanyahu está também a tentar provocar um confronto com os iranianos e, possivelmente, uma guerra regional. Acredita que é o melhor momento estratégico para puxar a perna dos Estados Unidos, numa demonstração de força contra o Irão, tomado pelo apelo de que há que parar o ‘Irão nuclear’, que vem desde o seu famoso discurso na Assembleia-Geral da ONU, em que mostrou o desenho de uma ‘bomba nuclear iraniana a fazer tique-taque’”, acrescenta.

Javad Heirannia, que dirige o Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão, enumera indícios recentes que revelam que Israel está de olho no Irão. “As condições da guerra em Gaza e a intensificação dos ataques dos hutis do Iémen no Mar Vermelho e no Estreito de Bab al-Mandab aumentaram as tensões”, diz ao Expresso.

“Primeiro, Israel enviou uma mensagem de alerta e dissuasão ao Irão, ao levar a cabo atos de sabotagem dentro do país, incluindo um ataque cibernético a postos de gasolina. Depois, fez um aviso ainda mais sério, visando o comandante dos Guardas da Revolução na Síria. Com as explosões em Kerman, Israel elevou o nível de alerta dissuasor contra Teerão e anunciou que pode criar insegurança e atingir o Irão por dentro.”

O episódio na Síria de que fala Heirannia ocorreu a 25 de dezembro. Razi Mousavi, principal comandante da Força Quds nesse país e coordenador da relação entre Teerão e Damasco, foi morto na sua casa, no bairro de Sayida Zeinab, a sueste da capital síria, atingida por três mísseis.

“Israel realiza estes planos de assassínios contra o que considera serem ‘alvos ligados ao Irão’. Netanyahu internalizou o medo — nele mesmo e no Likud [o seu partido, no poder] e nos círculos políticos de direita — de que o principal inimigo de Israel é o Irão”, explica Mohammed Cherkaoui. “Agora, ele não está a travar uma guerra dual entre Israel e o Hamas, antes a arquitetar um extravasamento em formato triangular, onde o Hezbollah no Líbano, os hutis no Iémen, milícias armadas na Síria e no Iraque, e o Irão vão para um confronto de força. Confia no que considera ser uma mola para as relações Israel-Ocidente.”

Nasrallah ao ataque… verbal

Esta quarta-feira, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, fez um discurso evocativo do aniversário da morte de Soleimani. A milícia xiita que lidera — que é também uma formação política (Partido de Deus), com deputados eleitos e ministros no Governo — é um dos principais vértices do chamado “eixo de resistência” que o regime de Teerão promove junto de peões regionais, que atuam em seu nome.

A expectativa em relação à comunicação de Nasrallah redobrou de interesse após a morte do n.º 2 do Hamas em território libanês. Mas Nasrallah absteve-se de ameaças concretas. “Se o inimigo pensa travar uma guerra contra o Líbano, a nossa luta será sem teto, sem limites, sem regras”, disse Nasrallah, remetendo para sexta-feira um novo discurso sobre o assunto.

Em paralelo aos bombardeamentos e à ofensiva terrestre de Israel na Faixa de Gaza, tem-se registado troca de fogo entre forças israelitas estacionadas no norte de Israel e grupos do Hezbollah no sul do Líbano. De um lado e do outro já houve vítimas mortais, mas a situação ainda não evoluiu para uma guerra aberta.

Uma sucessão de ataques como os de Damasco, Beirute e, hoje, em Kerman potencia uma escalada que pode contagiar toda a região. Heirannia pensa que esse cenário não é do interesse de Teerão. “O Irão sabe que entrar numa guerra futura com Israel arrastará a América para esse conflito, e esta não é uma opção desejável para Teerão. Parece que o Irão vai adiar a vingança para outro momento. A questão principal é qual poderá ser a avaliação de Israel e qual a sua próxima ação. Não esqueçamos que as guerras sempre foram baseadas em erros de cálculo.”

Netanyahu quer o Irão na guerra

Após o ataque do Hamas a Israel, a 7 de outubro, o Irão negou envolvimento direto e tanto Israel como os Estados Unidos afastaram essa possibilidade no exercício de identificação de culpados. Para Cherkaoui, com o evoluir da guerra, a entrada do Irão num conflito abrangente tornou-se “o desejo ideal de Netanyahu por várias razões”.

“Primeiro, tem necessidade extrema de prolongar a guerra e abrir novas frentes na região. Também teme a retaliação política dos seus adversários e de um grande segmento da sociedade israelita que leve a perder o cargo e à possibilidade de um processo judicial e condenação que o leve à prisão”, conclui o académico.

“O que faz sentido para ele, agora, é gerir a sua guerra em Gaza pressionando no sentido de uma escalada regional. Recordemos como os governos ocidentais, de Washington a Berlim, se apressaram, política e militarmente, a proteger a segurança nacional de Israel a 7 de outubro de 2023, sob o lema: ‘Israel está sob ataque do Hamas’. Agora imagine-se o que faria o Ocidente em reação a: ‘Israel está sob ataque do Irão!’…

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Há cinco réus encarcerados há 20 anos sem julgamento e vítimas de tortura: “Nem sei se justiça é a palavra certa”

Os sucessivos adiamentos do julgamento dos suspeitos do 11 de Setembro tornaram-se um grande embaraço para os Estados Unidos. Se, por um lado, condenar os acusados levaria algum conforto às famílias de quase 3000 vítimas, por outro o facto de os réus serem vítimas de tortura por parte da CIA agrava a complexidade do caso. Em entrevista ao Expresso, um perito em terrorismo tem reservas em considerar como “justiça” o processo que decorre em Guantánamo

ais de duas décadas depois, o 11 de Setembro é uma tragédia cada vez mais esbatida na memória coletiva dos norte-americanos. A cada novo ano letivo, o professor Tom Mockaitis testemunha-o quando recebe novas turmas na Universidade DePaul, uma instituição privada em Chicago. Os novos estudantes não eram nascidos à época ou eram muito jovens para guardarem lembranças que, hoje, os mobilizem minimamente a cada novo aniversário.

“A maioria dos norte-americanos seguiu em frente. Neste momento, o país está muito mais preocupado com o extremismo interno, a recente decisão relativa ao aborto, o 6 de janeiro [invasão do Capitólio] e, se algo a nível internacional, com a guerra na Ucrânia. É como Pearl Harbor para a geração dos meus pais. As pessoas seguiram em frente”, diz este perito em terrorismo, em entrevista ao Expresso.

A exceção a esta tendência de esquecimento são os familiares e amigos das 2977 vítimas mortais que esperam e desesperam pelo julgamento dos acusados. O processo está em fase de pré-julgamento e tem sofrido sucessivos adiamentos.

Defesa sem acesso a provas

Um dos principais obstáculos prende-se com um braço de ferro entre acusação e defesa relativamente à informação que pode ser usada como prova.

“Muitas das provas foram provavelmente obtidas no âmbito do trabalho classificado dos serviços secretos. Eles não vão revelar muito acerca de onde ou como obtiveram a informação”, explica Mockaitis. “Também não está claro o que é que a defesa pode ver. Num julgamento normal, a defesa tem direito a ver de antemão qualquer coisa que a acusação use como prova e tem a oportunidade de revê-la e refutá-la.”

VÍTIMAS: 2977 mortos

  • 2753 no World Trade Center, em Nova Iorque
  • 184 no Pentágono, em Washington D.C.
  • 40 num campo de Shanksville, na Pensilvânia

O processo decorre numa comissão militar, uma forma híbrida entre um tribunal criminal federal e um tribunal marcial militar, criada em 2006 pelo Congresso dos EUA.

Juiz e júri são assegurados por membros das forças armadas norte-americanas. Já as equipas de acusação e de defesa têm de ter obrigatoriamente advogados militares, mas também civis.

Guantánamo, território incógnito

A comissão militar para os suspeitos do 11 de Setembro está sediada na base naval que os Estados Unidos mantêm na Baía de Guantánamo (arrendada em 1903 às autoridades de Cuba).

“Tudo o que se fez foi colocá-los numa instalação que é, essencialmente, um território controlado pelos Estados Unidos, mas que não faz parte dos Estados Unidos”, explica o professor da Universidade DePaul. “Talvez seja porque os réus não poderiam ser responsabilizados de igual forma perante a lei dos EUA. Esta é uma área muito cinzenta.”

As audiências decorrem sem captação de imagens. São permitidas ilustrações, com algumas restrições. “Temos de cavar para obter informações sobre este julgamento. Há muito pouca informação pública.”

Ilustração sobre a sala de audiências, em Guantánamo, divulgada pelo Departamento de Defesa dos EUA. À esquerda, de branco, os cinco réus DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS ESTADOS UNIDOS

Matthew N. McCall, um tenente-coronel da Força Aérea, é o juiz do processo desde 20 de agosto de 2021. À época dos atentados, concluía a formação em Direito, na Universidade do Hawai. A sua nomeação foi envolta em polémica por não possuir a experiência requerida de dois anos como juiz militar.

O procurador-chefe é o contra-almirante Aaron Rugh, da Marinha. E o principal advogado de defesa é o brigadeiro-general Jackie L. Thompson Jr., do Exército. Os 12 militares que irão compor o júri ainda não foram selecionados.

Juízes em causa própria

Tom Mockaitis inquieta-se perante o facto de que quem julga serem “membros de uma organização que tem liderado a luta contra o terrorismo”. “Como é possível”, interroga-se.

“Fiquei muito preocupado com a ideia de um tribunal militar. Se os homens e mulheres no tribunal trabalham para uma instituição militar, sob uma cadeia de comando, e sabendo que há um forte desejo por parte daquele órgão de atribuir um veredicto de ‘culpados’, como pode o júri ser livre?”

“Estão a usar um sistema muito estranho”, continua. “Este não é um tribunal que resistiria a um escrutínio minucioso em qualquer país. Não há muita simpatia pelos réus, mas é difícil de defender que este seja um processo justo.”

A base naval dos EUA na baía de Guantánamo ocupa cerca de 117 km² da República de Cuba SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Cinco homens estão no banco dos réus, acusados de cumplicidade com os 19 terroristas que sequestraram os quatro aviões.

Os cinco detidos

Khalid Sheikh Mohammad consta no Relatório da Comissão do 11 de Setembro como “o principal arquiteto dos ataques”. Nascido no Paquistão, é acusado de ter gizado a ideia de um ataque com aviões e de tê-la proposto a Osama bin Laden, o líder da Al-Qaeda. Foi apanhado em Rawalpindi, no Paquistão, em 2003, numa operação conjunta dos serviços secretos norte-americanos (CIA) e paquistaneses (ISI). Foi sujeito a “técnicas aprimoradas de interrogatório” da CIA, denunciadas em relatórios oficiais dos EUA, incluindo waterboarding, uma forma de tortura que simula uma situação de afogamento.

Walid bin Attash é acusado de treinar dois pilotos sobre como lutar em espaços apertados, como aconteceu para controlar os aviões. Nasceu na Arábia Saudita, juntou-se à jihad no Afeganistão, onde perdeu parte da perna direita, e foi detido em Karachi, no Paquistão, em 2003.

Ali Abdul Aziz Ali nasceu no Kuwait e tem cidadania paquistanesa. Também identificado como Ammar al-Baluchi, é acusado de transferir dinheiro desde os Emirados Árabes Unidos, onde trabalhava na área das tecnologias, para os piratas dos aviões. Foi intercetado em Karachi, no Paquistão, em 2003. A defesa acredita que o filme “Zero Dark Thirty” — designadamente as sessões de tortura aplicadas a uma personagem chamada Ammar — é inspirado na sua experiência.

Ramzi bin al-Shibh é acusado de recrutar e organizar a célula de Hamburgo, na Alemanha, e de agir como intermediário entre a liderança da Al-Qaeda e o egípcio Mohammed Atta, um dos piratas do primeiro avião a embater contra as torres gémeas, apontado como o líder operacional do atentado. Nascido no Iémen, Al-Shibh foi preso em 2002, na cidade paquistanesa de Karachi.

Mustafa al-Hawsawi é responsabilizado por prestar assistência logística e burocrática aos sequestradores. Este saudita é o réu que enfrenta menor número de acusações. Nas audiências em Guantánamo, senta-se numa almofada em forma de rosca para vencer as dores decorrentes de ferimentos no reto sofridos quando esteve cativo pela CIA. A defesa diz que foi violado.

“Uma coisa a ter em mente, e é assim que as organizações terroristas funcionam, é que muitas das pessoas que apoiam a célula e a operação não sabem realmente o que vai acontecer”, diz Mockaitis. “Não temos a certeza que todos os sequestradores estavam totalmente cientes de que participavam numa missão suicida.”

Os fatos cor de laranja dos detidos tornaram-se símbolo da infâmia que Guantánamo se tornou SHANE T. MCCOY / US NAVY / WIKIMEDIA COMMONS

Após serem apanhados, os cinco suspeitos foram encarcerados em prisões secretas da CIA fora dos Estados Unidos. Em 2006, foram transferidos para o centro de detenção de Guantánamo para serem julgados. Foram formalmente acusados de:

  • conspiração;
  • ataque contra civis;
  • assassínio em violação da lei da guerra;
  • ferimentos graves intencionais;
  • sequestro de avião;
  • terrorismo.

“Não é fácil ter simpatia por estes indivíduos. Mas dado o calendário do nosso sistema legal, segundo o qual o julgamento deve decorrer num período de tempo razoável e os réus são inocentes até prova em contrário e têm direitos, este sistema não corresponde a nenhum desses padrões. E não importa que haja provas muito boas. A defesa argumenta de forma bastante convincente que as confissões foram obtidas sob coação. Essas provas nunca seriam admitidas num tribunal dos EUA.”

Estas acusações expõem um conflito difícil de conciliar. Por um lado, o objetivo das autoridades norte-americanas é condenar os acusados como forma de fazer justiça à morte de quase 3000 pessoas. Mas essa pretensão acaba por ficar frustrada pelo facto de os réus também serem vítimas de tortura por parte da CIA.

Os réus do 11 de Setembro são cinco dos 36 prisioneiros que, segundo o site “Close Guantanamo”, subsistem naquele centro de detenção, 21 dos quais foram ilibados de acusações e estão aptos a sair em liberdade.

Desde que foi inaugurado, a 11 de janeiro de 2002, passaram pelos calabouços de Guantánamo 779 homens, a maioria de nacionalidade afegã, seguidos de sauditas e iemenitas. Com Joe Biden na Casa Branca, os portões daquela prisão já se abriram por quatro vezes.

Obama tentou, mas não conseguiu

A 22 de janeiro de 2009, escassos dois dias após tomar posse como Presidente dos EUA, Barack Obama assinou a Ordem Executiva 13492 determinando o encerramento de Guantánamo. Mas não conseguiu cumprir a promessa.

Mockaitis explica a complexidade do processo: “Eles não sabem o que fazer com estas pessoas. Se a opção for colocá-las em prisões nos EUA, isso criará uma tempestade de publicidade adversa. Ainda que não haja grande risco se ficarem presos, todos os políticos vão cair imediatamente em cima do assunto.” Outra possibilidade é devolver os detidos aos países de origem, “mas nalguns casos os países não os querem”.

Para o professor norte-americano, Guantánamo é “um embaraço” para os Estados Unidos. “Estes indivíduos foram detidos e mantidos sem julgamento por um longo período de tempo. Não tenho muitas dúvidas de que são culpados dos crimes de que são acusados. Mas por mais que tenham feito coisas horríveis, esse tratamento viola os nossos padrões do que é a justiça.”

“Quando dou aulas de contraterrorismo, uma das coisas que enfatizo é que a lei e a legitimidade são ferramentas muito poderosas do lado daqueles que lutam contra os extremistas. É isso o que nos diferencia deles”, conclui Mockaitis. “Tenho muitas reservas em relação à forma como isto está a ser feito. Nem sei se justiça é a palavra certa.”

(FOTO PRINCIPAL Dois feixes de luz, no local onde se erguiam as Torres Gémeas, iluminam os céus de Nova Iorque, numa homenagem às vítimas do 11 de Setembro KIM CARPENTER / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de Setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um convidado caro aos talibãs

O líder da Al-Qaeda foi morto por um drone dos EUA, em Cabul. Os tiros atingiram também o regime talibã

Nos últimos anos, alguns dos maiores êxitos dos Presidentes dos Estados Unidos em matéria de política externa passaram pela eliminação de terroristas com influência global. A 2 de maio de 2011, Barack Obama anunciou a morte do inimigo público nº 1 da América, o então líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, que dirigiu os atentados de 11 de Setembro de 2001. “É a conquista mais significativa, até à data, no esforço da nossa nação para derrotar a Al-Qaida.”

A 27 de outubro de 2019, Donald Trump congratulou-se com a eliminação de Abu Bakr al-Baghdadi, chefe do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), que dominou com grande crueldade parte significativa do Iraque e da Síria. “Morreu como um cão, como um covarde. O mundo é agora um lugar muito mais seguro.”

Esta semana, Joe Biden adicionou à lista dos troféus Ayman al-Zawahiri, antigo líder da Jihad Islâmica Egípcia, que esteve com Bin Laden na fundação da Al-Qaida (“A Base”) em 1988, foi cérebro dos atentados em Washington e Nova Iorque e sucedeu a Bin Laden à frente da organização. “Foi feita justiça e esse terrorista já não existe.”

Varanda indiscreta

Ao contrário de Bin Laden e Al-Baghadi, que morreram durante operações especiais americanas no Paquistão e na Síria, respetivamente, Al-Zawahiri foi liquidado no Afeganistão por um drone da Força Aérea dos Estados Unidos operado pela CIA. Eram 6h18 de 30 de julho quando dois mísseis foram disparados na direção do homem, de 71 anos, que estava à varanda de casa. Esse hábito frequente facilitou a observação de quem já o tinha debaixo de olho e a confirmação da sua identidade.

O terrorista não estava escondido numa qualquer gruta remota, mas numa moradia do bairro de Sherpur, em Cabul, perto de edifícios onde, até há um ano, funcionavam embaixadas ocidentais. Segundo o jornal “The New York Times”, “vivia numa casa que era propriedade de um dos principais assessores de Sirajuddin Haqqani, ministro do Interior dos talibãs e membro da rede terrorista Haqqani [radical], com ligações próximas à Al-Qaida”. Há anos que o FBI promete uma recompensa de mais de 10 milhões de dólares (€9,8 milhões) por informações que levassem diretamente à sua captura.

Fundos podem não descongelar

A presença do líder da Al-Qaida no Afeganistão expôs um duplo embaraço. Os talibãs — que se comprometeram no Acordo de Doha, assinado com os Estados Unidos em 2020, a não mais dar guarida à Al-Qaida — carecem de argumentos convincentes para justificar a presença de Al-Zawahiri na capital. E os próprios Estados Unidos viram reabrir-se o debate sobre a caótica e até humilhante retirada militar do Afeganistão, perante a constatação de que 20 anos de guerra não destruí­ram a aliança entre a Al-Qaida e os talibãs afegãos.

Mas é pelo lado afegão que a corda parte. Este caso “terá impacto na relação entre Estados Unidos e talibãs”, comenta ao Expresso Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group (ICG) para o Afeganistão. “Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Al-Zawahiri em Cabul? Porque lhe deram abrigo? Ou porque não quiseram ou não puderam tomar medidas contra ele? Pelo menos no curto prazo isto irá limitar a capacidade e os esforços diplomáticos relativos à prestação de assistência humanitária e ao descongelamento de ativos.”

“Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Ayman al-Zawahiri em Cabul? Deram-lhe abrigo? Tomaram medidas contra ele?”

Nos dias que antecederam a execução de Al-Zawahiri, a Administração Biden e os talibãs estavam em conversações para encontrar forma de o Governo afegão aceder às reservas do Banco Central do país depositadas nos Estados Unidos. Washington congelou fundos no valor de sete mil milhões de dólares (€6850 milhões) após a tomada do poder pelos talibãs, a 15 de agosto de 2021.

Esse diálogo, no Catar, foi acelerado pela pandemia, o impacto da guerra na Ucrânia e, sobretudo, por um forte sismo que, a 22 de junho passado, matou mais de mil pessoas. “Os dois lados estavam perto de um acordo”, diz Bahiss. Mas este caso “torna muito mais difícil para os americanos libertarem fundos diretamente para os talibãs ou para um mecanismo em que estes tenham controlo sobre essas reservas”.

Numa primeira reação ao ataque, os talibãs disseram apenas tratar-se de uma “clara violação” dos princípios internacionais e do pacto de Doha. Quarta-feira, em declarações à televisão afegã Tolo News, Abdul Salam Hanafi, segundo vice-primeiro-ministro do país, acrescentou: “A política do Emirado Islâmico, que tem sido repetidamente comunicada ao povo, é de que o nosso solo não pode ser usado contra os nossos vizinhos.”

Saem os EUA, entra Al-Zawahiri

O analista do ICG descodifica a retórica de Cabul. “Os talibãs poderão contra-argumentar que estão a tomar medidas contra grupos radicais para lhes restringir a liberdade. Se defenderem que trouxeram Al-Zawahiri para Cabul para algum tipo de prisão domiciliária ou outra forma de controlar os seus movimentos e as suas ações, poderão dizer que os Estados Unidos violaram o Acordo de Doha, enquanto eles tomaram medidas para impedir o líder da Al-Qaida de amea­çar a segurança dos Estados Unidos e dos seus aliados.”

O percurso de Al-Zawahiri desde o 11 de Setembro não é rastreável com exatidão. Pensa-se que, desde o início do século, tenha vivido na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. “Os nossos serviços de informações localizaram-no no início deste ano. Tinha-se mudado para o centro de Cabul para se juntar a membros da sua família direta”, disse Biden na comunicação ao país.

O que fazia no Afeganistão e o que planeava fazer pelo mundo poderá não ser fácil de reconstituir. A operação dos SEAL da Marinha americana que surpreendeu Bin Laden numa moradia de Abbottabad permitiu recolher muito material, mas o mesmo não se aplica ao tipo de ataque que matou Al-Zawahiri.

Se se mudou para Cabul após a retirada americana, acentua-se o embaraço de Biden, que, à época, respondeu assim aos críticos: “Que interesse temos no Afeganistão, agora que a Al-Qaida se foi? Fomos para lá com o objetivo expresso de nos livrarmos da Al-Qaida no Afeganistão. E conseguimos.” Até Al-Zawahiri assomar a uma varanda de Cabul.

AL-QAEDA: MORRER OU RENASCER?

A 11 de agosto de 1988, uma reunião em Peshawar (Paquistão) entre Osama bin Laden, Ayman al-Zawahiri e Sayyed Imam Al-Sharif (Dr. Fadl) criou a Al-Qaeda. O saudita Bin Laden era o garante de uma riqueza infinita, o egípcio Al-Zawahiri personificava a crença inabalável no radicalismo islâmico e o intelectual e também egípcio Fadl a base filosófica da jihad. Os dois primeiros estão mortos e o último não é opção para lhes suceder na liderança da organização. Em 2007, renunciou à violência e distanciou-se do jiadismo global. O nome de que se fala para assumir o comando da Al-Qaeda é o de Seif al-Adel. Este egípcio de mais de 60 anos tem ficha aberta no FBI, que o procura por envolvimento nos atentados de 7 de agosto de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos na Tanzânia e no Quénia. “Se a Al-Qaeda escolher alguém que esteja fora do Afeganistão, a longo prazo isso pode desviar o foco desse país”, defende Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group. “A Al-Qaeda tem uma presença muito pequena no Afeganistão, dezenas ou centenas de pessoas no máximo. Em territórios africanos, como a Somália, tem uma presença muito maior.” E conclui: “Dependendo de quem for escolhido para liderar a Al-Qaeda, não é necessariamente um golpe fatal para a organização. A Al-Qaeda não é desafiada hoje da mesma forma que já o foi pelo Daesh. E pode usar a vitória dos talibãs no Afeganistão para se promover e recuperar da perda que sofreu.”

(FOTO O saudita Osama bin Laden e o egípcio Ayman al-Zawahiri, a cúpula da Al-Qaeda, durante uma entrevista com o jornalista paquistanês Hamid Mir, publicada no jornal paquistanês “Dawn”, a 10 de novembro de 2001. Hamid Mir é o único jornalista que entrevistou Bin Laden após o 11 de Setembro HAMID MIR / EDITOR / AUSAF NEWSPAPER FOR DAILY DAWN / HANDOUT VIA REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui