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“Instabilidade no Norte de África já tem impacto nos fluxos migratórios para a Europa”, e para a costa algarvia

A instabilidade na Tunísia, a ausência de Estado na Líbia e a tensão militar entre Marrocos e Argélia podem alimentar fluxos migratórios na direção da Península Ibérica. Ao Expresso, o diretor do programa para o Norte de África do International Crisis Group diz que “um aumento vertiginoso da imigração ilegal para Portugal não é provável para já”, mas… esta terça-feira o tema será discutido numa conferência organizada pelo Observatório do Mundo islâmico, em Lisboa

Nos últimos anos, o Mediterrâneo tornou-se um cemitério para migrantes desesperados que arriscam a vida (e em muitos casos perdem-na) em frágeis embarcações para tentar chegar às costas da Europa. Um fluxo migratório tem-se feito sentir com maior intensidade junto às fronteiras da Europa de Leste, com milhares de pessoas escondidas em florestas (onde já existem campas de migrantes que morreram ao frio) à espera de oportunidade para pôr o pé em território da União Europeia.

De forma mais discreta e menos numerosa, há cada vez mais embarcações provenientes do continente africano a lançarem-se na direção da Península Ibérica e a chegarem à costa algarvia.

“Por enquanto, o número de tentativas para chegar ao Algarve é limitado. Não é possível falar numa verdadeira rota de imigração ilegal a partir de Marrocos. Portugal já recebeu cerca de 100 migrantes provenientes de Marrocos dessa forma e parece haver um ligeiro aumento este ano comparado com 2020”, diz ao Expresso Riccardo Fabiani, diretor do programa para o Norte de África do International Crisis Group.

“Ao longo deste ano, já foi possível observar um aumento (comparativamente a 2020) de embarcações provenientes de Marrocos para Espanha. Vale a pena lembrar também que a rota do Mediterrâneo Ocidental é a segunda mais importante, depois da rota entre Líbia/Tunisia e Itália.”

Maioria dos migrantes é magrebina

Uma constatação importante para se perceber e conseguir prever a evolução deste fenómeno prende-se com o facto de a maioria dos migrantes que usam a rota do Mediterrâneo Ocidental ser magrebina. “Isso revela que a situação política e económica no Norte de África está a piorar e que esta instabilidade já tem impacto na população e nos fluxos migratórios para a Europa”, explica Fabiani, que esta terça-feira irá desenvolver o tema na conferência “Norte de África: tensões e conflitos”, organizada pelo Observatório do Mundo Islâmico e realizada na Biblioteca Arquiteto Cosmelli Sant´Anna, em Lisboa (18h30), com transmissão online aqui.

“Há várias explicações para este fenómeno. Em primeiro, a situação económica no Norte de África é cada dia mais difícil, especialmente por causa da covid-19 mas também porque a esses países falta um modelo de desenvolvimento capaz de oferecer um número suficiente de empregos, sobretudo para os jovens”, desenvolve o investigador do International Crisis Group. “Em segundo, nos últimos anos, a promessa de abertura política e democracia desapareceu.”

  • TUNÍSIA: Dez anos após o movimento da Primavera Árabe, o país onde tudo começou continua sem consolidar a sua democracia e sem conseguir estabilidade. Invocando a urgência em combater a corrupção, em julho passado, o Presidente Kaïs Saïed dissolveu o Parlamento e concentrou em si os principais poderes do Estado. “A maioria da população está desiludida com a democracia, que não produziu os efeitos esperados de desenvolvimento económico e de combate à corrupção”, comenta Fabiani.
  • LÍBIA: É outro país que ainda não encontrou o seu rumo após a queda do ditador Muammar Kadhafi, há dez anos. Duas autoridades políticas disputam o poder, condenando a sociedade a uma ausência de perspetivas que se arrasta. “Assistimos a um impasse político devido às divisões crescentes entre as fações líbias relativamente às eleições [legislativas e presidenciais] previstas para 24 de dezembro”, neste país rico em petróleo.
  • MARROCOS: Em novembro de 2020, a Frente Polisário pôs termo a um cessar-fogo que durava há dez anos e retomou a luta armada contra Marrocos em nome da autodeterminação do território do Sara Ocidental. Este conflito contamina a relação entre Marrocos e a vizinha Argélia (que abriga milhares de refugiados sarauís). “Estas tensões militares entre Marrocos e a Frente Polisário e um risco cada dia maior de uma guerra entre Argélia e Marrocos podem alimentar nova vaga migratória”, alerta Fabiani.

“Embora um aumento vertiginoso da imigração ilegal para Portugal não seja provável para já, há uma hipótese de a desestabilização do Norte de África poder levar mais pessoas a tentar chegar a Espanha e a Portugal, e tornar a gestão da imigração ilegal nessa região muito mais complicada do ponto de vista político e logístico”, alerta Fabiani.

A estratégia de Portugal

A chegada ao Algarve de embarcações com migrantes marroquinos levou Portugal, em agosto do ano passado, a encetar conversações com Marrocos com vista à criação de uma rede de migração legal, dada a necessidade de Portugal relativamente a mão de obra estrangeira para determinadas atividades.

“O Governo português parece apostar numa estratégia preventiva face ao risco de um aumento da imigração ilegal e negocia com Marrocos um acordo para permitir a imigração legal deste país para Portugal. Parece-me uma estratégia inteligente mas também um sinal de que o problema da imigração clandestina poderia se tornar mais perigoso nos próximos anos.”

Com os migrantes a procurarem rotas alternativas para tentarem para chegar à Europa, a abordagem da União Europeia mantém-se a mesma de sempre: desembolsar milhões para conter o problema na margem sul do Mar Mediterrâneo. “A estratégia nunca mudou: a UE continua a apoiar os Estados ‘tampão’ do Norte de África para gerir os fluxos provenientes da África subsariana e para monitorizar o litoral e assim impedir tentativas de travessia para a Europa”, conclui Fabiani.

“Trata-se de uma estratégia focada na segurança e no controlo das fronteiras e que não presta muita atenção aos outros fatores por detrás deste fenómeno, como o desemprego, a instabilidade, as alterações climáticas e a falta de desenvolvimento económico.”

(FOTO Refugiados tentam atravessar o Mediterrâneo num insuflável, desde a costa da Turquia até à ilha grega de Lesbos MSTYSLAV CHERNOV / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Um golpe a seguir aos protestos. E agora?

Teme-se que o farol democrático da Primavera Árabe esteja de regresso aos dias do regime de um homem só

1 O que levou os tunisinos às ruas?

A negligência das autoridades em relação à covid-19. Com um fraco ritmo de vacinação, o país regista a mais alta taxa de mortalidade do mundo árabe. Mas este descontentamento esconde frustrações maiores. “A questão social, que esteve na base da revolução democrática de 2011, não foi resolvida”, diz ao Expresso o analista político Álvaro de Vasconcelos. “Os problemas sociais agravaram–se, o desemprego aumentou, sobretudo entre os jovens, e instalou-se um enorme desagrado em relação aos partidos políticos.”

2 Por que motivo o Presidente é acusado de golpe?

Apoiando-se na contestação popular, o Presidente Kais Saied, professor de Direito Constitucional, eleito a 13 de outubro de 2019 com um discurso populista e antipartidos, atuou ao estilo de um ditador: demitiu o primeiro-ministro, suspendeu o Parlamento, retirou a imunidade aos deputados, nomeou-se procurador-geral da República e decretou o estado de emergência durante 30 dias. As medidas foram tomadas dia 25, invocando a Constituição e o descontentamento popular. “Podemos dizer que é um golpe constitucional”, diz Vasconcelos.

3 Como reagiram os militares?

Colocaram-se ao lado do chefe de Estado. “Em 2011, os militares não intervieram para apoiar Ben Ali [ditador contestado]. Agora surgiram ao lado de Kais Saied.” Uma característica do processo tunisino, em contraponto ao que aconteceu, por exemplo, no Egito, foi a não interferência política da instituição militar. “Houve uma mudança que não pressagia nada de bom, embora os militares tenham respeito pelas questões constitucionais, não sejam muito politizados e não tenham grandes interesses económicos, como os egípcios.”

4 Porque há receios a nível internacional?

A Tunísia foi o único país da Primavera Árabe a enveredar pela via democrática, inspirada na experiência portuguesa. “A esperança democrática no mundo árabe pode estar a desaparecer”, diz o investigador, que recorda que a Tunísia ainda não criou um Tribunal Constitucional. “Era a instituição que faltava. E, portanto, não há quem diga quais são os limites da ação do Presidente.” Álvaro Vasconcelos defende “uma pressão da UE e dos EUA”, que dão ajuda económica fundamental e “têm influência real no país”. “O sistema democrático tunisino não irá encontrar apoio na região.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Ben Ali caiu há 10 anos e o que se seguiu foi um caso de sucesso. Ou terá sido uma desilusão?

Há exatamente dez anos, o Presidente tunisino fugia do país, acossado por 28 dias de protestos populares. O investigador Álvaro de Vasconcelos, que acompanhou de perto o processo de transição democrática que se seguiu, celebra a existência de um país democrático no mundo árabe. Mas alerta também para os perigos populistas que brotam na cena política tunisina

“Tunísia: contágio democrático?” DAMIEN GLEZ / TOONPOOL

Dez anos após a Primavera Árabe, movimento de contestação popular que tomou as ruas de vários países árabes, a Tunísia é apontada como o único caso de sucesso, no sentido em que foi o único país que conseguiu pôr em marcha um processo de transição de um regime autocrático para uma democracia. Esta é, pelo menos, a avaliação que se faz fora de portas, porque dentro do país a sensação é outra.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, diz ao Expresso a politóloga Khadija Mohsen-Finan, que acaba de lançar o livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Democratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos, a democracia tornou-se um obstáculo à mudança e não é essencial, dadas as suas dificuldades diárias.”

Aquela que foi designada de “revolução de jasmim” trouxe liberdades várias — o multipartidarismo, uma nova Constituição (em 2014), direitos para as mulheres, liberdade de imprensa —, mas não trouxe mais emprego nem uma melhor qualidade de vida. O país tornou-se mais desigual, o desemprego é maior do que antes da revolução, afetando em especial os jovens, a corrupção aumenta de forma desenfreada e há grandes disparidades regionais. É flagrante o contraste entre a riqueza da costa e a pobreza do interior.

“As zonas do interior do país, fronteiriças à Argélia, são extremamente pobres. Continua a haver revoltas constantes, como as que levaram à revolução. A situação é grave, mas ao mesmo tempo este é um momento que deve ser festejado  há um país democrático no mundo árabe”, comenta ao Expresso Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, dedicado à discussão dos temas da democracia e das transições democráticas.

Faz esta quinta-feira dez anos que o ditador Zine El Abidine Ben Ali fugiu do país para um exílio dourado na Arábia Saudita, encurralado por 28 dias de manifestações populares. A contestação fora desencadeada pelo ato desesperado de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante que se imolou pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca de frutas e legumes.

Ao derrubarem o muro do medo, os tunisinos incentivaram outros povos à revolta contra poderes autocráticos, em especial no Egito, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain — num movimento a que se convencionou chamar “Primavera Árabe”. Em quatro deles, os ditadores tombaram, mas só na Tunísia a democracia floresceu.

“A Tunísia é o que nos resta em termos de consolidação democrática das revoluções de 2011. É um regime constitucional, com uma Constituição extremamente avançada e um país onde existe uma sociedade civil muito ativa e onde a liberdade de expressão está garantida por lei”, enumera Vasconcelos. “Se compararmos com os regimes autocráticos da região, é um progresso extraordinário.”

Quatro fatores cruciais

País pequeno, com uma população homogénea (de quase 12 milhões) — sem o sectarismo da Síria ou o tribalismo da Líbia —, a Tunísia reuniu um conjunto de condições que possibilitaram que a transição democrática fosse desbravando terreno.

1. A MODERAÇÃO DOS ISLAMITAS. Após a revolução, o partido islamita Ennahda — fundado e liderado por Rached Ghannouchi, crítico de Ben Ali regressado do exílio em Londres após a queda do ditador — foi o vencedor das primeiras eleições democráticas livres, para a Assembleia Constituinte (2011). Ainda assim, aceitou repartir o poder com duas outras forças políticas numa tróica.

“O Ennahda optou por um processo democrático, por fazer pontes para os outros partidos, o que não aconteceu, por exemplo, no Egito, onde a Irmandade Muçulmana não fez pontes com os liberais.” Para realçar esse compromisso, em 2016, o Ennahda anunciou o abandono da sua agenda religiosa. Hoje, é o partido mais representado no Parlamento, presidido pelo seu líder, Ghannouchi. O Ennahda tem 52 deputados, num total de 217.

“Saímos do islão político para entrar na democracia muçulmana”
Rached Ghannouchi
fundador e líder do partido islamita Ennahda

A integração do Ennahda na cena política tunisina decorre muito da aprendizagem que os tunisinos fizeram do caso português. Ao longo da transição democrática, a experiência pós-revolucionária portuguesa foi um caso de estudo na Tunísia.

“Houve muitos seminários sobre a transição portuguesa, eu próprio organizei vários quando era diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia [2007-2012] e levei variadíssimos políticos portugueses, o Presidente Jorge Sampaio esteve muito presente”, recorda Álvaro de Vasconcelos.

“Discutiam muito que atitude tomar em relação aos partidos que alguns consideravam fora do sistema. A experiência portuguesa de integração de todas as forças políticas era muito referida, bem como o princípio de que a participação no processo democrático tornava os partidos mais respeitadores da Constituição, menos antissistema.”

2. O DINAMISMO DA SOCIEDADE CIVIL. O protagonismo da sociedade civil em todo o processo foi coroado com a atribuição do prémio Nobel da Paz 2015 ao Quarteto para o Diálogo Nacional, composto por quatro organizações da sociedade civil: uma central sindical, a Confederação da Indústria, a Liga dos Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados.

“A sociedade civil é muito forte, teve um papel motor na revolução e impôs os acordos aos partidos”, diz Vasconcelos, autor do livro “As Vozes da Diferença — A Vaga Democrática Árabe” (2012). “Teve um papel extremamente ativo para impedir que acontecesse na Tunísia aquilo que aconteceu no Egito — a criação de uma frente islamita tal que levasse ao poder uma coligação autoritária.”

3. A NÃO-INTERFERÊNCIA DOS MILITARES. Desde a primeira hora “os militares tunisinos recusaram-se totalmente a apoiar Ben Ali. Foram eles que lhe disseram para se ir embora. E nunca mais intervieram na vida política. Na Tunísia, eu falava com muitos sectores e nunca ninguém me disse: ‘Os militares pensam isto ou aquilo’, como se ouvia constantemente no Egito. Isso é um garante de que eventualmente os militares não apoiarão um golpe”.

4. A POUCA IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA. Contrariamente ao que aconteceu no Egito — peso-pesado da geopolítica do Médio Oriente —, o processo de transição tunisino decorreu sem interferências externas. Mas essa discrição teve um senão: “Fez com que, por exemplo, a Administração Obama, que começou por apoiar as transições democráticas nos países árabes, nunca desse muita atenção à Tunísia”, diz o investigador.

“E a União Europeia também parece mais preocupada com as questões da imigração, da luta contra o terrorismo, do que na consolidação da democracia na Tunísia, apesar de ter sido bastante importante ao não tomar partido contra os islamitas.”

Estes quatro fatores foram cruciais para tornar a revolução possível e concretizar um virar de página no país. Dez anos depois, todavia, o sistema político — descredibilizado por pelo menos dez grandes mudanças a nível governamental — enfrenta novos desafios, como o do populismo, entre islamitas e anti-islamitas, que se manifesta de múltiplas formas.

  • Desde 23 de outubro de 2019, a Tunísia tem um Presidente — Kais Saied — sem partido político. “Foi eleito como um homem só e gostaria de concentrar poderes a partir de um apelo ao povo”, comenta Álvaro de Vasconcelos.
  • Paralelamente, existe um partido salafita, apoiado pelos Emirados Árabes Unidos e pela Arábia Saudita, que contesta o islamismo democrático do Ennahda. “Faz uma campanha identitária e extremamente violenta contra os direitos das mulheres, contra a laicidade, contra a França e contra o Ennahda.”
  • Restam antigos membros do regime, que reclamam o legado de Habib Bourghiba (Presidente entre 1957 e 1987) mas estão associados a Ben Ali (falecido em 2019). Estes saudosistas de tempos passados alimentam a tentação por um Presidente forte.

“Neste momento, as sondagens na Tunísia são lideradas pelo Partido Destoriano Livre, que defende o regresso ao presidencialismo e a concentração do poder numa figura, que depois pode, por referendos diversos, ir acabando com a democracia”, analisa Vasconcelos.

“O problema agora não são os golpes militares, é aquilo a que podemos chamar golpes constitucionais. É pela via eleitoral que os iliberais chegam ao poder e é a partir do poder que vão desconstruindo o regime democrático. Esse é que é o risco na Tunísia.”

Descrentes nas instituições políticas, frustrados pelas dificuldades económicas e fatigados por dez anos de uma esperança que tarda em concretizar-se, os tunisinos revelam, porém, grande resiliência. Mesmo em tempos de pandemia, os protestos não param, como o revelam as fotos que acompanham este texto, todas referentes a manifestações realizadas no mês passado.

Uma guerra ali ao lado

Há porém um fator mais difícil de contrariar nas ruas: a guerra na vizinha Líbia, que divide a classe política tunisina. O Presidente do país apoia o general Haftar e a sua rebelião a partir do leste da Líbia (apoiada por Arábia Saudita, Egito e Emirados, que são ferozmente anti-islamismo democrático, pela ameaça que constitui ao poder nos seus países). Já o Ennahda coloca-se ao lado do Governo de Tripoli, apoiado pela Turquia, Qatar e comunidade internacional (ainda que não pela França, que apoia o general rebelde).

“O contexto da guerra líbia é também um fator de divisão profunda e perigosa na Tunísia”, conclui Vasconcelos. “Costumo dizer que a fronteira da Líbia com a Tunísia devia ser a nossa fronteira da União Europeia.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

 

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui