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Quem ataca quem no Médio Oriente? A Palestina é o pretexto comum, mas os nove países envolvidos têm agenda própria

Em três meses, o conflito na Faixa de Gaza assumiu uma dimensão regional, com vários Estados a envolverem-se em trocas de fogo. A Palestina é o argumento útil, mas vários países atacam no interesse de agendas próprias

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A ofensiva de Israel na Faixa de Gaza destapou o vespeiro da conflitualidade no Médio Oriente. Desde o início da guerra, a 7 de outubro, nove Estados da região já dispararam contra vizinhos. Se países como o Líbano e a Síria têm uma grande exposição ao problema israelo-palestiniano, atores internos no Iraque e no Iémen parecem agir por controlo remoto.

O Irão saiu da sombra e passou a protagonista, bombardeando três países, um deles o Paquistão, uma potência nuclear. A Turquia confirmou que mantém o foco na questão curda. E até a discreta Jordânia alvejou um vizinho.

Israel ➨ Faixa de Gaza

O ataque terrorista do Hamas a Israel, a 7 de outubro, entrou para a memória coletiva do povo judeu como uma espécie de 11 de Setembro, pela sua surpresa, dimensão, impacto emocional e pela vulnerabilidade que evidenciou um país reconhecido pela eficácia dos seus serviços de informação.

Israel retaliou contra a Faixa de Gaza, o território palestiniano controlado pelo grupo islamita, inicialmente com bombardeamentos aéreos posteriormente combinados com uma ofensiva terrestre. No próprio dia do ataque, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse à nação que Israel não parará até “destruir as capacidades do Hamas”.

Faixa de Gaza ➨ Israel

Desencadeada a resposta militar de Israel, o disparo de foguetes desde Gaza não cessou. Na terça-feira passada, o Hamas disparou 25 rockets contra território israelita a partir do norte do território palestiniano, que tem sido o foco principal da intervenção militar.

Ainda que a maioria dos foguetes tenham sido intercetados pelo Iron Dome, o escudo defensivo de Israel, ou caído em descampados, o seu disparo revela capacidade desafiante do Hamas e é, para as comunidades israelitas próximas da fronteira, um reviver permanente do terror vivido a 7 de outubro.

Líbano ➨ Israel

Mal começou a guerra em Gaza, a fronteira norte de Israel tornou-se numa frente de conflito, com troca de fogo de parte a parte e vítimas mortais ocasionais dos dois lados. O sul do Líbano é um bastião do Hezbollah, uma milícia xiita (e também partido político, com deputados e ministros) cujo nascimento está intrinsecamente ligado à invasão israelita do sul do Líbano, em 1982, e subsequente ocupação, até ao ano 2000.

A luta contra a ocupação israelita da Palestina e também contra a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente são prioridades para o Hezbollah. Os ataques ao longo da fronteira com Israel são, por isso, frequentes, mas com a guerra em Gaza tornaram-se diários e mais intensos.

Israel ➨ Líbano

Para Israel, a sua fronteira norte é um local de tensão permanente desde que se retirou do sul do Líbano. Desde 7 de outubro, as forças israelitas têm não só alvejado posições do Hezbollah como também já atacaram nos subúrbios de Beirute, para eliminar um alto responsável do Hamas.

Este estado de guerra forçou a transferência de milhares de habitantes do norte de Israel para locais mais seguros.

Na fronteira entre Israel e Líbano, que foi demarcada pela ONU (Linha Azul), existe, desde 1978, uma missão de capacetes azuis (UNIFIL), que não tem, porém, dissuadido a troca de fogo de parte a parte.

Israel ➨ Síria

Os ataques israelitas em território sírio não são inéditos e, desde 7 de outubro, já ocorreram por diversas vezes, visando, entre outros, o Aeroporto Internacional de Damasco.

Os alvos de Israel, para além de posições do exército sírio, são prioritariamente grupos armados apoiados pelo Irão e combatentes do Hezbollah libanês, que foram cruciais para a sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad, após os protestos da Primavera Árabe e a guerra civil que se lhe seguiu.

A Síria mantém com Israel uma disputa territorial em torno dos Montes Golã, que Israel ocupou na guerra de 1967, anexou através de uma lei de 1981, mas que os sírios continuam a reivindicar.

Iémen ➨ Israel

No Iémen quem manda são os hutis, um grupo que conquistou o poder pela força em 2014, mas que não é reconhecido como um interlocutor legítimo pela comunidade internacional.

Estes rebeldes iemenitas, que controlam a costa ocidental do país, declararam apoio aos palestinianos e mostraram-no ameaçando navios em trânsito pelo Mar Vermelho com origem ou a caminho de portos em Israel.

Em retaliação ao assédio dos hutis às embarcações que percorrem esta via marítima, por onde passa 12% do comércio mundial, forças dos Estados Unidos e, por uma vez, também do Reino Unido já bombardearam posições dos hutis dentro do Iémen.

Irão ➨ Iraque

A 3 de janeiro, um duplo atentado suicida reivindicado pelo Daesh, na cidade iraniana de Kerman, provocou 94 mortos. O Irão retaliou esta semana e um dos alvos foi Erbil, na região autónoma do Curdistão iraquiano (norte), onde Teerão disparou 11 mísseis balísticos contra o que diz ser um centro de espionagem da Mossad (serviços secretos de Israel).

O Iraque, cuja população é maioritariamente xiita, como o Irão, ainda alberga tropas norte-americanas que ali ficaram após ajudarem no combate ao Daesh. Não raras vezes, os militares dos EUA investem contra milícias locais ligadas ao Irão e são eles próprios um alvo das mesmas, como tem acontecido desde 7 de outubro.

Esta semana, o primeiro-ministro do Iraque defendeu a saída das tropas norte-americanas do país.

Irão ➨ Síria

Paralelamente ao ataque na região iraquiana de Erbil, os Guardas da Revolução Islâmica, uma unidade de elite das Forças Armadas iranianas, atacaram também dentro da Síria, com a qual o Irão não tem fronteira.

Quatro mísseis balísticos foram lançados desde a província de Khuzestan, a oeste do Irão, na direção de posições do Daesh em Idlib, numa resposta direta aos atentados em Kerman.

Nesta região do noroeste da Síria, persiste ainda um foco rebelde de contestação ao regime sírio, que é apoiado pelo Irão. Neste ataque, noticiou a agência iraniana IRNA, Teerão disparou “nove mísseis de vários tipos” contra “grupos terroristas em diferentes áreas dos territórios ocupados na Síria”.

Turquia ➨ Iraque

O Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, tem sido dos líderes mais vocais contra o primeiro-ministro de Israel, ao ponto de já ter dito que Benjamin Netanyahu “não é diferente de Hitler”. Mas paralelamente ao seu apoio à Palestina, há uma questão maior no posicionamento da Turquia na região: o independentismo curdo.

Dentro de portas, os curdos são uma ameaça separatista que Ancara tenta combater também nos países da vizinhança onde vivem minorias curdas.

No sábado passado, caças turcos alvejaram posições no Curdistão iraquiano (norte), onde a Turquia tem várias bases militares. Na véspera, um ataque a uma dessas bases atribuído ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla inglesa) provocou nove mortos entre os militares turcos.

Turquia ➨ Síria

Os curdos foram o alvo de bombardeamentos turcos também na Síria, dentro do mesmo espírito que levou Ancara a atacar no Curdistão iraquiano.

Segundo o Ministério da Defesa da Turquia, foi alvejado um total de 29 localizações — incluindo “cavernas, bunkers, abrigos e instalações petrolíferas” — associadas ao PKK e às Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa). Esta organização armada da região do Curdistão sírio teve um papel central na coligação liderada pelos EUA que derrotou o Daesh na Síria.

Dos quatro países do Médio Oriente que têm populações curdas — Turquia, Síria, Iraque e Irão —, a Síria é a que tem a minoria mais pequena.

Irão ➨ Paquistão

No dia seguinte a ter atacado no Iraque e na Síria, o Irão bombardeou também o Paquistão. Os dois países partilham uma fronteira de 900 quilómetros e um inimigo comum: os separatistas do Balochistão, uma região rica em gás e minérios, atravessada pela fronteira entre ambos.

Na terça-feira, o Irão usou drones e mísseis para alvejar posições do Jaish al-Adl, um grupo sunita composto por baloches envolvido em ataques dentro do Irão, numa área remota e montanhosa dessa região separatista. Morreram duas crianças e três civis ficaram feridos.

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esclareceu que os alvos dos bombardeamentos não foram paquistaneses, mas “terroristas iranianos presentes em solo paquistanês”. A 15 de dezembro, 11 polícias iranianos tinham sido mortos num ataque a uma esquadra, perto da fronteira com o Paquistão.

Paquistão ➨ Irão

Islamabade respondeu ao ataque do Irão mandando chamar o seu embaixador em Teerão e disparando mísseis contra a província iraniana de Sistão e Balochistão. O bombardeamento, que teve como alvo outro grupo separatista — a Frente de Libertação Baloche —, provocou nove mortos (nenhum tinha nacionalidade iraniana).

Os ataques entre estes dois países originaram posições de condenação de parte a parte e acusações de violação da soberania, mas a relação não congelou.

No mesmo dia em que o Irão atacou o Paquistão, os dois países realizaram um exercício naval com navios de guerra, no Estreito de Ormuz, no Golfo Pérsico. E no dia seguinte (véspera da retaliação do Paquistão), os dois ministros dos Negócios Estrangeiros deitaram água na fervura e conversaram ao telefone.

Esta sexta-feira, o Governo paquistanês anunciou que o seu país e o Irão concordaram em diminuir as tensões após a troca de violentos ataques esta semana.

“Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros concordaram que a cooperação e a coordenação no combate ao terrorismo e outras áreas de interesse comum devem ser reforçadas”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, no final de uma chamada telefónica entre os dois governantes.

Jordânia ➨ Síria

Não foram razões políticas que estiveram na origem de bombardeamentos atribuídos à Jordânia em território sírio, mas, ao estilo de uma guerra sem regras, entre os dez mortos que o ataque provocou havia crianças.

O alvo, na quinta-feira, foi a província de Sweida, no sudoeste da Síria, uma zona não muito distante da fronteira com a Jordânia. Terá sido um esforço para atingir o tráfico de drogas — nomeadamente da anfetamina Captagon, usada pelos terroristas do Daesh para facilitar a matança — e perturbar o seu fluxo para dentro do reino hachemita.

As autoridades de Amã não se pronunciaram sobre o caso, mas é conhecido que, no passado, o país já recorreu a ataques desta natureza para atingir grupos dedicados ao narcotráfico, bem organizados e armados.

No ano passado, o Governo do Reino Unido defendeu que o Captagon é uma “tábua de salvação financeira” para a máquina de guerra do regime sírio.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Estes cinco países podem ganhar com o degelo entre Riade e Teerão

Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana

Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.

IÉMEN

Acordo é bom, mas falta ouvir os locais

Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.

“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”

No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.

“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”

Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.

Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.

Síria

Guerra não acabou, mas Assad manda

A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.

Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.

Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.

“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”

Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.

Líbano

Polarização e crise não são prioridades

O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.

Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.

Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.

A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.

“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”

Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.

Iraque

Arena de diálogo para amaciar

Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.

Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.

Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.

Bahrain

A curta distância dos dois gigantes

Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.

Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.

Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.

Quem fica a perder?

ISRAEL

O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”

TURQUIA

“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”

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Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

17 respostas para 2023: da guerra na Ucrânia aos protestos na China e no Irão, passando por epidemias e acordos globais

Podemos prever o futuro? Provavelmente não, tal como não escapamos a apostar no desenvolvimento dos temas que acompanhamos ao longo do ano. Aqui ficam as respostas da equipa do Internacional às perguntas que colocaram por si, leitor

1 A Guerra na Ucrânia vai acabar?
Sem vontade de procurar uma solução diplomática, a guerra só pode terminar no terreno com uma conquista suficientemente esmagadora (ou, no caso da Ucrânia, uma reconquista) que obrigue o outro lado a capitular ou a aceitar negociações de paz. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diz que a paz pressupõe que a Rússia entregue a Kiev todos os territórios anexados desde 2014, o que é pouco realista. Do lado russo continuam os ultimatos e ameaças. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que a Ucrânia tem de completar o processo de “desnazificação e desmilitarização”, ou “o assunto será resolvido pelo exército russo”.

2 A próxima COP (28) conseguirá um acordo de redução dos combustíveis fósseis?
O elefante no meio da sala das conferências globais das Nações Unidas para o Clima permanece a ausência de acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa de modo a impedir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 1,5º, o que já é uma irrealidade em si. A vitória da COP27 foi o reconhecimento das “perdas e danos” e “falar-se” em indemnizações para os países mais prejudicados pelas ondas de calor prolongadas, secas agudas prolongadas, subida do nível da água do mar, acidificação dos oceanos, incêndios selvagens, inundações bíblicas e extinção de espécies no chamado Sul global. O lóbi dos combustíveis fósseis não perdeu ainda terreno.

3 Lula da Silva vai governar o Brasil à esquerda?
O homem que, pela terceira vez, toma posse como Presidente a 1 de janeiro tem de privilegiar as políticas sociais e ambientais para cumprir as promessas feitas na campanha eleitoral. O grande desafio do novo Governo é conseguir atribuir verbas para a Cultura, Educação, Saúde e Ambiente – sobretudo no combate ao desmatamento da Amazónia – e manter o equilíbrio das contas públicas para evitar uma escalada inflacionista. A resposta executiva passa, em boa parte, pelo trabalho dos futuros titulares da pasta da Fazenda, Fernando Haddad, e da pasta do Planeamento, Simone Tebet.

4 Cyril Ramaphosa é destituído da presidência da África do Sul?
Em 13 de dezembro, Cyril Ramaphosa sobreviveu a um voto de destituição na Assembleia Nacional pedido pelos partidos da oposição. O Presidente da República e do ANC, que sucedeu a Jacob Zuma após escândalos de corrupção sem precedentes e captura do Estado, prometeu voltar a pôr o país nos eixos. Porém viu-se envolvido num processo cujas acusações combate ainda em tribunal, o qual pode vir a acusar Ramaphosa de “má conduta e violação da Constituição”. Ainda que tenha vencido até agora, o ANC, tem perdido eleitores em cada eleição desde 1994. Por enquanto, Ramaphosa conta com o apoio do ANC para limpar o seu nome sem perder a credibilidade política. Até quando, se 2023 é ano de eleições gerais?

5 Como vai acabar a revolta no Irão?
Os protestos já contam mais de 100 dias e as imagens que nos chegam do Irão mostram que as pessoas continuam a acorrer às ruas apesar dos castigos aplicados serem cada vez mais severos. Pelo menos 506 pessoas já perderam a vida e outras 40 aguardam execução, segundo uma investigação da CNN. Sem liderança coesa e com este nível de repressão, tortura, prisão e morte é pouco provável que a liderança dos aiatolas venha a ser derrubada, porém os iranianos dizem que algumas mudanças já são visíveis nas ruas. Um exemplo é a recusa de muitas mulheres em usar o lenço sobre os cabelos.

6 O regime chinês vai ceder aos protestos?
Semanas depois de o Presidente Xi Jinping assumir um terceiro mandato na liderança do Partido Comunista da China emergiram protestos em várias cidades do país contra a política de ‘zero casos’ de covid-19. Foram a maior demonstração pública de descontentamento desde o massacre de Tiananmen em 1989. A ida à rua parece ter resultado. Várias medidas foram relaxadas no seu seguimento e demonstrou a capacidade da população em manifestar-se apesar da censura existente no país. No entanto, é incerto quais são as políticas estatais que podem vir a gerar oposição com esta capacidade de mobilização.

7 As pandemias e vírus assustadores vieram para ficar?
O risco de novas epidemias é certo e os especialistas alertam os Estados para que tenham respostas enérgicas. Tal como os tsunamis, a covid-19 convenceu da necessidade de sistemas de alerta que permitam detetar os problemas de forma a controlá-los. Antes da Sars-cov-2, a década de 1980 conheceu a sida. Porém, foi “a partir do ano 2000 que se assistiu a uma série de acontecimentos que traduzir a emergência inesperada de fenómenos epidémicos de natureza zoonótica”, como lembra Francisco George, ex-diretor-geral de Saúde de 2005 a 2017, referindo-se a doenças que têm origem em agentes infecciosos que têm animais como reservatório.

8 Erdogan perde a presidência da Turquia?
É possível. Porém não se sabe ainda se é provável, uma vez que a oposição, grande parte dela unida com o único propósito de derrotar Erdogan, ainda não apresentou candidato. As sondagens, contra um opositor desconhecido, dão ao incumbente cerca de 34% das intenções de voto, o mesmo valor atribuído ao seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), nas eleições parlamentares, também em 2023, o ano do centenário do país. Não chega para a vitória. O declínio da economia vai ser o tema principal da campanha. Resta saber a quem vai o povo atribuir a culpa.

9 A Itália de Giorgia Meloni vai continuar nas boas graças de Bruxelas?
Giorgia Meloni – líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália – foi eleita primeira-ministra de Itália em setembro. A postura de euroceticismo gerou preocupação, porém Meloni tem procurado acalmar a esfera internacional assumindo um discurso mais moderado. Perante o Parlamento repudiou o fascismo e mostrou oposição a “qualquer forma de racismo”; em viagem a Bruxelas afirmou querer uma defesa dos interesses nacionais “dentro da dimensão Europeia”. A reação foi positiva, com a Presidente da Comissão Europeia a agradecer Meloni pelo “forte sinal” ao escolher Bruxelas como a primeira viagem enquanto líder do governo italiano.

10 A Índia vai continuar a comprar petróleo à Rússia?
É provável. A Rússia tornou-se o principal fornecedor de petróleo da Índia em novembro, com importações a chegarem aos 908 mil barris por dia. As declarações de figuras do governo indiano não sugerem mudanças de rumo. Em dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros deu a entender que se a Europa pode priorizar as suas necessidades energéticas, não deve pedir à Índia para nao priorizar as suas também. Em outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou numa resolução a condenar os referendos ilegais de anexação realizados pela Rússia em territórios da Ucrânia. A Índia foi um dos 35 países a absterem-se.

11 O regime talibã vai ser reconhecido internacionalmente?
Não é de esperar. Os talibãs estão há mais de um ano no poder, o tempo suficiente para que algum país os reconhecesse como governo legítimo. Na década de 1990, quando governaram pela primeira vez, foram reconhecidos por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Decisões como a recente proibição do acesso das mulheres afegãs às universidades tornam embaraçoso o reconhecimento do regime. A medida foi criticada de forma generalizada, inclusive por países muçulmanos: a Arábia Saudita expressou “espanto e desapontamento” e a Turquia considerou a decisão “nem islâmica nem humana”.

12 O conflito no Nagorno-Karabakh voltará a escalar?
É inevitável. Não há um processo de paz digno desse nome neste conflito que opõe dois países tornados independentes após o desmembramento da União Soviética: a cristã Arménia e o muçulmano Azerbaijão. De um lado e do outro, há apoios importantes que conferem a este conflito, que se arrasta desde finais da década de 1980, uma dimensão geopolítica: a Rússia apoia os arménios e a Turquia os azeris. Esta disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso, que oscila entre períodos de guerra aberta e outros de tensão latente, ressente-se muito do estado da relação entre estes dois países.

13 O embargo dos EUA a Cuba vai terminar?
Não é provável, ainda que as razões que sustentam o bloqueio económico à ilha sejam cada vez mais indefensáveis. O embargo dura há décadas basicamente por uma questão de política interna dos EUA. É ponto de honra da imensa comunidade cubana que vive na Florida, que odeia o regime cubano e que, a cada ato eleitoral, vota em função da posição dos partidos / candidatos em relação a Cuba. A eleição de Joe Biden, que não venceu na Florida, prova que o voto cubano não é imprescindível. A nível internacional, os EUA estão praticamente isolados nesta questão: na ONU apenas Israel vota ao seu lado.

14 Ron DeSantis vai entrar na corrida presidencial?
É muito possível. A menos de dois anos das presidenciais de 2024, ele é visto como o republicano melhor posicionado para bater o pé a Donald Trump, que já anunciou que irá disputar as primárias do partido do elefante. O potencial de Ron DeSantis decorre da reeleição como governador da Florida, em novembro, derrotando o candidato democrata com quase 60% dos votos. Entre os republicanos, também o antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, dá cada vez mais sinais de querer aventurar-se na corrida à Casa Branca: lançou um livro e tem-se desdobrado em viagens pelo país, discursos e entrevistas.

15 Isabel dos Santos pode ir parar à prisão?
Desde que a investigação do Luanda Leaks começou a ser divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, no início de 2020, a filha do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tem confiado nos melhores escritórios de advogados dos vários países europeus onde os negócios que ali fazia se transformaram em problemas. Autoridades de Portugal e da Holanda arrastaram contas bancárias, imobiliário e participações em empresas e, mais recentemente, o Supremo Tribunal de Angola autorizou o arresto preventivo dos bens da empresária Isabel dos Santos no valor de mil milhões de dólares, a pedido do Ministério Público. As múltiplas camadas usadas nos negócios ainda a protegem, porém, o cerco aperta-se.

16 A China vai invadir Taiwan?
A China afirma que Taiwan é “uma questão interna” e “a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada” nas relações com os Estados Unidos. A aliança internacional que os EUA e a União Europeia mostraram contra a Rússia pode levar a China a ser mais cautelosa nos passos para uma reunificação com Taiwan, mas as tensões têm-se vindo a agravar e mantêm-se os receios de um escalar da situação. No Congresso do Partido Comunista da China, o líder Xi Jinping afirmou que o objetivo é uma reunificação pacífica ainda que o país não renuncie ao uso da força. Em outubro, o almirante americano Mike Gilday alertou que pode ocorrer uma invasão até 2024.

17 Irá Donald Trump ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano?
Há vários indicadores nesse sentido, sim. Porém o caso é muito sensível uma vez que Trump já apresentou a candidatura à Casa Branca e levá-lo a tribunal poderia ser considerado um ato desenhado especificamente para o impedir de voltar à presidência, e provocar uma divisão ainda maior no país. No entanto, o homem que neste momento dirige as investigações, Jack Smith, já enviou diversas intimações para depor a várias pessoas que estiveram em contacto com Trump durante as suas tentativas para interferir com o resultado das presidenciais de 2020.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Salomé Fernandes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Um quer mais negócios, o outro mais segurança. Putin e Erdogan já não se reuniam… há 17 dias

Os presidentes da Turquia e da Rússia reuniram-se, esta sexta-feira, pela segunda vez em menos de um mês. Recep Tayyip Erdogan viajou até à cidade russa de Sochi, acompanhado por seis dos seus principais ministros. Ao recebê-lo, Vladimir Putin vaticinou que o encontro “abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas”

Encontraram-se há menos de um mês, numa cimeira em Teerão, mas os assuntos — e em especial os problemas — que partilham justificaram novo encontro. Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, presidentes da Rússia e da Turquia, respetivamente, encontraram-se esta sexta-feira na cidade russa de Sochi, ribeirinha ao Mar Negro.

“Espero que hoje possamos assinar um memorando relevante sobre o desenvolvimento dos nossos laços comerciais e económicos”, afirmou o chefe de Estado russo, enquanto os dois se sentavam para conversar. “Acredito que [este encontro] abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas.”

Cercada por amplas sanções internacionais, a Rússia tem na Turquia (um gigante com mais de 85 milhões de habitantes) um parceiro económico precioso neste contexto de aperto. Já para Ancara, a Rússia é fundamental para poder defender o seu interesse no vespeiro da vizinha Síria. “Acredito que a nossa forma de lidar com os acontecimentos na Síria nesta altura também trará alívio à região”, disse Erdogan.

A mediação que deu estatuto a Erdogan

Erdogan chegou a Sochi com o seu estatuto internacional reforçado após mediar com êxito o acordo que permitiu a retoma, esta semana, das exportações de cereais ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos. Esta sexta-feira, zarparam dos portos do Mar Negro três navios ucranianos carregados.

O acordo esboçou um primeiro entendimento entre Moscovo e Kiev, desde o início da guerra, e fez o mundo respirar de alívio perante a iminência anunciada de crise alimentar à escala global.

A cimeira de Sochi terá servido para Erdogan apresentar a Putin a contrapartida pelos seus esforços de mediação: a “luz verde” de Moscovo para mais uma investida militar sobre as forças curdas, no norte da Síria, do outro lado da fronteira.

Na Síria, a Rússia foi o garante da sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad e hoje controla grande parte do espaço aéreo do norte do país. A minoria curda síria, que se concentra nessa zona, partilha do sonho de um Estado próprio, o que implica a cedência de território por parte de vários países. A Turquia seria amputada da maior fatia.

“Estamos determinados em erradicar os grupos maus que visam a nossa segurança nacional desde a Síria”, afirmou Erdogan na cimeira de Teerão de 19 de julho, onde Rússia e Irão se manifestaram contrários a uma ofensiva turca.

Controladas pelas forças curdas, designadas por Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa), as cidades sírias de Tal Rifaat e de Manbij são potenciais alvos. As YPG têm ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo separatista que tem, desde há décadas, uma rebelião armada contra o poder central turco e é considerado uma organização terrorista por Ancara e pela União Europeia.

O homem-forte turco não foi só

Paralelamente ao encontro cara a cara entre Putin e Erdogan, a cimeira de Sochi passou por reuniões sectoriais entre as duas delegações. O presidente turco levou consigo uma delegação de peso que incluia os ministros dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Energia, Finanças, Comércio e Agricultura, e ainda o chefe dos serviços secretos.

Este aparato governativo indicia forte investimento numa nova relação bilateral. Mas, atendendo à atual conjuntura internacional, dois assuntos revelaram-se particularmente urgentes.

ENERGIA

No ano passado, a Rússia forneceu à Turquia 45% das suas necessidades de gás. Ancara quer minimizar a dependência das importações e está a desenvolver uma central nuclear a ser construída por uma empresa russa, no sul do país. “É muito importante que o calendário acordado funcione e que [a central de] Akkuyu seja concluída no prazo previsto”, disse Erdogan, antes da partir para Sochi. A conclusão do projeto está prevista para 2025.

ARMAMENTO

Apesar de ter criticado a invasão russa da Ucrânia e de ter fornecido armas a Kiev, a Turquia desafinou da esmagadora maioria dos países ocidentais e não aplicou sanções à Rússia. Sochi revela que a relação tem potencial para crescer. Na guerra da Ucrânia, os drones Bayraktar TB2, de fabrico turco, revelaram-se uma arma poderosa para os ucranianos retardarem o avanço das forças russas.

Notícias recentes, que deram conta do interesse russo em adquirir drones de fabrico iraniano, expuseram a urgência que este assunto tem para Moscovo. Na cimeira de Teerão, Putin terá sugerido a Erdogan a instalação de uma fábrica de drones na Rússia. O impacto da proposta não ficará circunscrito aos dois países, já que a Turquia é membro da NATO.

(FOTO Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin, em Sochi TWITTER DA PRESIDÊNCIA DA TURQUIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Putin, Raisi e Erdogan: três “amigos” em busca de uma ordem alternativa

Os presidentes da Rússia, Irão e Turquia reuniram-se em Teerão numa cimeira com múltiplos interesses. O turco Erdogan procurou apoios para a sua agenda síria, o iraniano Raisi garantias de alívio económico e o russo Putin quis mostrar ao Ocidente que tem amigos. O mundo assistiu, na expectativa de um anúncio do fim do bloqueio russo à exportação de cereais ucranianos, que (ainda) não surgiu

Ao 146.º dia de guerra na Ucrânia, Vladimir Putin saiu da sua zona de conforto e, pela primeira vez desde que ordenou a invasão, viajou para fora do território da antiga União Soviética. O Presidente russo já saíra do país, a 29 de junho, para participar na 6.ª Cimeira do Cáspio, em Asgabate, no Turquemenistão. Esta terça-feira, esteve em Teerão para encontros que envolveram também os Presidentes do Irão e da Turquia, respetivamente Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan.

Esta cimeira Irão-Rússia-Turquia realizou-se dois dias depois de o Presidente dos Estados Unidos terminar a sua primeira visita ao Médio Oriente, muito marcada pela “ameaça iraniana”. Joe Biden esteve em Israel e na Arábia Saudita, que se projetam como pilares de uma coligação emergente na região do Golfo Pérsico destinada a conter precisamente o Irão e aliados.

Neste contexto, o encontro de Teerão constituiu uma espécie de contrapeso à iniciativa norte-americana. Em paralelo, foi uma demonstração de que a Rússia não está sozinha e que, apesar das sanções e do isolamento internacional que afetam vários sectores da sociedade, tem mercados alternativos para onde se projetar. Revelou também a influência de Moscovo em três dos grandes problemas da atualidade.

1. BLOQUEIO DOS CEREAIS UCRANIANOS

Desde o início da guerra na Ucrânia que a Turquia se tem afirmado como país que consegue abrir portas com igual facilidade em Moscovo e em Kiev. Foi, por isso, com naturalidade que Erdogan surgiu no papel de intermediário, junto de Putin, para tentar arranjar solução para o bloqueio à exportação de 20 milhões de toneladas de cereais ucranianos.

“Com a sua mediação, nós progredimos”, disse Putin a Erdogan, em Teerão. “Nem todos os assuntos relativos à exportação de cereais ucranianos através dos portos do Mar Negro foram resolvidos, mas haver progresso já é bom sinal.”

Antes disso, hove um compasso de espera, pois o dirigente turco entrou na sala cerca de um minuto depois do homólogo russo à espera cerca de um minuto. Com os jornalistas já presentes, foi visível o desconforto de Putin.

2. CONFLITUALIDADE NA SÍRIA

A guerra na Síria é o tema que, mais facilmente, justifica um encontro entre Putin, Erdogan e Raisi. Os países que os três homens lideram fazem parte, desde janeiro de 2017, do Processo de Astana, lançado na capital do Cazaquistão para reduzir o nível de violência armada no território. A iniciativa decorre em paralelo ao diálogo de Genebra, promovido pelas Nações Unidas, que visa negociar um futuro político pacífico para a Síria.

No terreno, Rússia e Irão são os maiores aliados do regime de Bashar al-Assad, que sobreviveu a mais de dez anos de guerra graças a esse apoio fundamental. Quanto à Turquia, é, por razões internas, forte opositora do dinamismo curdo, o que a leva, ocasionalmente, a realizar incursões no norte da Síria para travar as movimentações da minoria curda.

Recentemente, Ancara anunciou planos para mais uma ofensiva. Rússia e Irão não concodam e, esta terça-feira, foi o próprio Líder Supremo iraniano a dizê-lo a Erdogan. “O terrorismo tem de ser contrariado, mas um ataque militar na Síria beneficiará os terroristas”, disse o ayatollah Ali Khamenei, que ocupa posição hierárquica superior à do Presidente Raisi.

Há exatamente uma semana, o Conselho de Segurança das Nações Unidas prolongou a abertura do ponto de passagem de Bab al-Hawa, no noroeste da fronteira entre a Síria e a Turquia, por onde é canalizada a ajuda internacional. “É o único corredor humanitário em funcionamento. Havia mais três que, em 2020, foram vetados pela Rússia e acabaram por fechar”, comenta ao Expresso a eurodeputada Isabel Santos, que preside à delegação do Parlamento europeu para as relações com os países do Maxereque, entre eles a Síria.

“Este corredor humanitário é absolutamente imprescindível para o acesso das organizações humanitárias ao terreno. Serve uma população de mais de quatro milhões de pessoas. Só por este corredor passa uma média de 700/800 camiões com ajuda humanitária por mês. Em maio, atingiu-se os 1000 camiões”, transportando água potável, medicamentos, alimentos. “Sem esta ajuda humanitária, está-se a condenar à morte boa parte desta população.”

Rússia instrumentaliza ajuda humanitária

O corredor ficará aberto seis meses, findos os quais o Conselho de Segurança terá de votar outra resolução com vista ao prolongamento por mais meio ano. Foi a posição que prevaleceu, por pressão da Rússia, e que justificou a abstenção de França, Reino Unido e Estados Unidos. “Estes países entendiam — e bem — que o prazo estabelecido devia ser de um ano, por causa da programação da atividade das organizações não-governamentais” que estão no terreno. “Paira uma certa insegurança que, ao fim destes seis meses, possa não haver esse prolongamento”, comenta a eurodeputada.

A seu ver, é claro que “a Rússia está a fazer um jogo político”. A parlamentar socialista prossegue: “Toda a marca negativa que vem do conflito na Ucrânia é transportada para condicionar e servir como moeda de troca para o que se está a passar na Síria. Há uma instrumentalização política da ajuda humanitária”.

“Felizmente, a resolução foi aprovada, mas paira sobre as cabeças das pessoas que são assistidas, e que dependem em absoluto desta ajuda humanitária, a possibilidade de, passados seis meses, a Rússia decidir vetar o funcionamento deste corredor.”

3. DESACORDO SOBRE O NUCLEAR IRANIANO

Rússia e Irão são os países mais castigados por sanções internacionais em todo o mundo. Essa circunstância e as crescentes dificuldades económicas dela decorrentes empurram-nos na direção do outro, e de quem assuma na cena internacional uma amizade com ambos, como é o caso da Turquia.

“Infelizmente, devido à pandemia do coronavírus, o volume de comércio [entre Irão e Turquia] diminuiu significativamente, chegando agora aos 7000 milhões de dólares [valor semelhante em euros]. Acredito que com a determinação dos dois países, conseguiremos atingir o volume comercial de 30 mil milhões de dólares”, afirmou o Presidente turco, esta terça-feira, após encontrar-se com o homólogo iraniano. “Além disso, tomando medidas na área de petróleo e do gás natural, podemos acelerar esta situação.”

Teerão desespera por ver as sanções internacionais levantadas, o que só acontecerá no âmbito de um acordo internacional sobre o seu programa nuclear. Desde abril de 2021 decorrem negociações em Viena, visando a reativação do compromisso, ferido após a retirada dos Estados Unidos ordenada por Donald Trump. Mas o diálogo em que participam sete países tarda em produzir resultados.

Segunda-feira à noite, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Amir Abdollahian, falou ao telefone com Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança. “A Casa Branca deve pôr de lado as suas exigências e dúvidas excessivas e, de forma realista, caminhar para se encontrar uma solução e se chegue a um acordo”, disse o iraniano ao espanhol. “E deve parar de repetir a abordagem ineficaz do passado e o comportamento improdutivo de recurso a pressões e sanções para influenciar.”

Apesar da insistência num acordo, é cada vez mais percetível que, para os ayatollahs, que governam o Irão desde 1979, as grandes oportunidades estão não no Ocidente, mas a leste, desde logo na Rússia e, por arrasto, na China. Mais ainda numa altura em que veem os inimigos Israel e Arábia Saudita unidos numa aliança improvável, promovida pelos Estados Unidos, e cujo cimento é “conter o Irão”.

(Ao centro, o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, foi o anfitrião dos homólogos russo, Vladimir Putin (à esq. na foto), e turco, Recep Tayyip Erdogan SERGEI SAVOSTYANOV / SPUTNIK / AFP /GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui