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Ataques na Crimeia: Quem fez? O que podem significar?

Instalações militares russas têm sido alvo de “atos de sabotagem”, como os qualifica Moscovo. Kiev não confirmou nem negou a autoria dos ataques, mas é quem mais beneficia com eles

Apesar da guerra em curso em áreas consideráveis da Ucrânia, a Crimeia, nos últimos tempos, vinha conseguindo fazer jus à sua fama de “popular resort de verão” e ter pessoas na praia como se tempos normais vivessem. Esta terça-feira, porém, aquela península do sul da Ucrânia anexada pela Rússia em 2014 voltou ao epicentro do conflito, após ataques atribuídos às forças ucranianas encherem de fumo negro os céus de partes do território.

A Rússia reconheceu a ocorrência de grandes explosões numa infraestrutura militar — um depósito de munições —, numa base militar russa perto da cidade de Dzhankoi, no norte da Crimeia.

As explosões foram “provocadas por um incêndio que levou à detonação de munições”, escreve a publicação “The Moscow Times”. As autoridades russas qualificaram o ataque como “um ato de sabotagem”.

Citado pela BBC, Refat Chubarov, um líder tártaro da Crimeia, disse que as explosões foram um “golpe” que pôde ser ouvido “do outro lado da estepe”. Os seus efeitos levaram à interrupção da circulação numa linha ferroviária e obrigaram à transferência de cerca de 3000 pessoas de uma localidade.

Segundo a agência Reuters, que cita o diário russo “Kommersant”, um segundo ataque visou outra base militar russa, em Gvardeyskoye, no centro da Crimeia. Os dois ataques aconteceram uma semana após um outro com igual perfil ser registado numa zona ocidental da península.

A promessa de Zelensky

Esta sucessão de explosões numa parte da Ucrânia que não tem estado na linha da frente dos combates poderá indiciar uma nova dinâmica no conflito — prestes a cumprir meio ano — em antecipação ao inverno, época em que também as movimentações da guerra se ressentem das gélidas temperaturas.

Para a Rússia, a Crimeia alberga não só a sede da Frota do Mar Negro como também serve de armazém a muito equipamento militar destinado às tropas em combate. Para Kiev, atacar esse potencial é, pois, uma forma de atingir as manobras de guerra da Rússia nas suas várias frentes.

Por outro lado, a Crimeia — cuja conquista pelos russos, em 2014, pode ser considerado um primeiro capítulo desta guerra — permanece um objetivo militar dos ucranianos. Na semana passada, o Presidente ucraniano prometeu “libertar” a região dos russos. “Esta guerra russa contra a Ucrânia e contra toda a Europa livre começou com a Crimeia e deve terminar com a Crimeia, com a sua libertação”, afirmou o Volodymyr Zelensky.

Putin acusa EUA de quererem prolongar o conflito

As autoridades ucranianas não se pronunciaram sobre os ataques desta terça-feira, não confirmando nem negando a autoria. Mas não passaram despercebidas as declarações de Andriy Yermak, chefe do gabinete do Presidente da Ucrânia, segundo o qual está em curso uma “operação de desmilitarização” do território que irá continuar até à “desocupação total” dos territórios ucranianos.

O atrevimento e a capacidade revelados por Kiev nestes ataques têm-se feito sentir também fora de portas. Segundo a agência Tass, citada pela Associated Press, num outro ato de sabotagem que Moscovo atribuiu aos ucranianos, no início de agosto, seis torres de transmissão de alta tensão foram destruídas em explosões, na região de Kursk, no ocidente da Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia.

Esta terça-feira, o Presidente russo acusou os Estados Unidos de contribuírem para o arrastamento do conflito ao fornecerem armamento pesado aos ucranianos. “A situação na Ucrânia mostra que os EUA estão a tentar prolongar o conflito”, disse Vladimir Putin, discursando na cerimónia de abertura de uma conferência sobre segurança em Moscovo. Washington está “a usar o povo da Ucrânia como carne para canhão”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Os candidatos que atrapalham a Ucrânia

A Ucrânia tem pressa em aderir à UE. Mas cinco países já estão na corrida. Um deles há mais de 20 anos

Mapa da Ucrânia colorido com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

A Ucrânia está em acelerada aproximação à União Europeia (UE) e o seu Presidente parece estar já em posse do calendário. “A fase final da grande maratona diplomática, que deve terminar dentro de semana e meia, começou hoje”, disse Volodymyr Zelensky há cinco dias, depois de ter recebido em Kiev a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Nesta maratona estamos realmente com a UE, em equipa, e essa equipa tem de vencer. Estou certo de que em breve receberemos uma resposta sobre o estatuto de candidato para a Ucrânia.”

Zelensky aponta ao Conselho Europeu da próxima semana, em Bruxelas, que irá discutir a urgência ucraniana em aderir à UE. A invasão russa precipitou também pedidos de adesão da Geórgia e da Moldávia. Entre os 27, António Costa tem sido dos dirigentes que mais tem contrariado o apelo às emoções do Presidente ucraniano, que pressiona por uma integração rápida. Em entrevista ao “Financial Times”, o primeiro-ministro português defendeu, esta semana, que Bruxelas arrisca criar “falsas expectativas” à Ucrânia. Talvez tenha em mente a morosidade do processo de Portugal, que, sem a complexidade geopolítica da Ucrânia, demorou nove anos a entrar na então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Na maratona em que Zelensky transformou o processo ucraniano há já cinco atletas em prova: o oitavo país muçulmano mais populoso do mundo e quatro dos Balcãs Ocidentais. Três estão em fase de negociações e dois esperam — e desesperam — pelo início formal do processo.

SÉRVIA E MONTENEGRO: Sprint até à meta

Estes países, que resultaram do desmembramento da antiga Jugoslávia, têm o estatuto de candidato à UE há 10 e 12 anos, respetivamente. Ambos têm negociações abertas com Bruxelas, mas a Sérvia (sete milhões de habitantes) enfrenta obstáculos políticos. À cabeça, a questão do Kosovo, com potencial para bloquear o processo. Belgrado não reconhece a independência da sua antiga província de maioria albanesa, como não o fazem cinco membros da UE, incluindo Espanha e Grécia.

O atual contexto de guerra na Ucrânia veio acrescentar complexidade ao dossiê sérvio. Tradicional aliado da Rússia (ambos de matriz cristã ortodoxa), Belgrado resiste a aplicar sanções a Moscovo. “É nossa expectativa que essas sanções também sejam apoiadas por todos os que se veem como candidatos à adesão à UE”, alertou, há uma semana, o chanceler alemão, Olaf Scholz, de visita à Sérvia. “Não respondemos a pressões dessas, em que alguém nos ameaça e temos de fazer alguma coisa…”, respondeu-lhe o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic.

O processo do Montenegro (600 mil habitantes) é bem menos trabalhoso. Este país, que ascendeu à independência em 2006 (separando-se da Sérvia por referendo), já conseguiu abrir negociações em todos os 33 capítulos previstos, tendo encerrado três.

TURQUIA: O atleta cansado que ameaça desistir

O sonho europeu da Turquia remonta ao longínquo ano de 1987, quando pediu adesão à CEE. Em 1999 obteve o estatuto de candidato. Membro da NATO e parceiro estratégico da UE em matéria de migrações, segurança e contraterrorismo, este processo começou a baquear face à agenda turca em matéria de democracia, Estado de direito e direitos humanos. Em 2018 as negociações congelaram.

Se a adesão turca nunca foi consensual dentro da UE — desde logo pelo peso demográfico do país (84 milhões de habitantes), que o colocava ao nível da poderosa Alemanha, e pela sua matriz muçulmana —, o atual contexto de guerra veio afastar ainda mais Ancara e Bruxelas. Não pela equidistância turca em relação a Kiev e Moscovo, mas perante a resistência à entrada da Finlândia e Suécia na NATO.

MACEDÓNIA DO NORTE E ALBÂNIA: Sem esperança de apanhar os da frente

Como aconteceu com Portugal e Espanha, a UE entendeu que as adesões da Albânia (três milhões de habitantes) e da Macedónia do Norte (dois milhões) deviam correr em paralelo, ainda que os macedónios tenham abordado as autoridades europeias muito antes dos albaneses: o pedido da Macedónia data de 2004 e o da Albânia de 2009. São candidatos desde 2005 e 2014, respetivamente.

A UE exigiu trabalho extra à Albânia, nomeadamente em áreas como o sistema judi­cial, a Administração Pública, os serviços de informação e o combate à corrupção e ao crime organizado.

Skopje foi solidária com Tirana e esperou. O inverso coloca-se agora, com o dossiê macedónio a marcar passo devido a objeções da Bulgária, que inviabiliza a unanimidade no Conselho. Já em 2019 a mudança de nome — de Antiga República Jugoslava da Macedónia para República da Macedónia do Norte — visou apaziguar a Grécia, que tem uma região chamada Macedónia.

Estão em causa obstáculos de natureza identitária relacio­nados com o reconhecimento mútuo de línguas, factos históricos que Macedónia e Bulgária reivindicam e a nacionalidade de alguns heróis. Em outubro, o Presidente búlgaro, Rumen Radev, disse que o seu país pode viabilizar a adesão se Skopje parar com o “apagamento subtil” da identidade dos macedónios búlgaros.

TRÊS PERGUNTAS A.. Isabel Santos

Eurodeputada, relatora do Parlamento Europeu para o processo de adesão da Albânia

A guerra deve tornar a adesão da Ucrânia prioritária?
Estamos a discutir a atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia quando há outros Estados que apresentaram candidatura, como a Moldávia e a Geórgia, e quando há expectativas criadas nos países que já têm esse estatuto. Alguns esperam há anos que seja marcada a primeira Conferência Intergovernamental (CIG), que é só o começo de um longo processo de negociações, de abertura e encerramento de diferentes dossiês, que levam a mudanças legislativas e reformas nos países até que ocorra o ato de adesão. A Comissão reconheceu, no fim de 2019, que a Macedónia do Norte e a Albânia tinham cumprido todas as condições para agendar a CIG.

Dada a objeção búlgara à Macedónia, não se pode separar esse processo do albanês?
É possível. Houve um momento em que a Macedónia parecia mais bem posicionada do que a Albânia, e a Macedónia foi solidária. Agora é ao contrário. Tenta-se manter uma certa solidariedade. Não está fora de questão que no futuro se venha a separar os processos. A Bulgária tem tido uma posição muito renitente em relação à Macedónia do Norte, baseada em argumentos profundamente nacionalistas e até pouco racionais. A Albânia alcançou todas as metas que lhe foram exigidas para avançar. É uma situação injusta.

Esta guerra pode levar a UE a recear alargar-se para Leste?
Não deve. O alargamento tem sido um processo de garantia de estabilidade, paz e desenvolvimento. Devemos continuá-lo. Olhando para os Balcãs e a sua história trágica, percebemos quão importante é este alargamento para a região, mas também para a estabilidade europeia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

O “conflito mais documentado de sempre” tem cada vez mais países unidos na investigação de potenciais crimes de guerra

São já seis os países que aderiram à Equipa de Investigação Conjunta, um mecanismo internacional de cooperação judicial criado para investigar crimes de guerra na Ucrânia. “Temos de construir parcerias”, apelou o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI). “Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade”

Dor sem fim na cidade ucraniana de Bucha, após a descoberta de uma vala comum junto a uma igreja WOLFGANG SCHWAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

A guerra na Ucrânia está para durar, dizem cada vez mais observadores, mas a justiça internacional não espera pelo fim para responsabilizar quem violou as suas regras. Esta terça-feira, Estónia, Letónia e Eslováquia juntaram-se à Equipa de Investigação Conjunta (JIT, na sigla inglesa) criada a 25 de março por Polónia, Lituânia e Ucrânia, para investigar alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Hoje é um dia importante”, congratulou-se o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI). “A JIT tem três novos membros. É algo necessário para abordar crimes com a magnitude daqueles que muitas vezes temos visto no TPI. Temos de construir parcerias. E o que isto mostra é que não há uma dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade.”

Karim A. A. Khan expressou-se nestes termos numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira, em Haia, a que o Expresso assistiu de forma remota. De forma inédita, também o Gabinete do Procurador do TPI — que a 2 de março tinha aberto uma investigação aos crimes ocorridos na Ucrânia com base em relatos apresentados por 39 Estados membros — é membro participante desta JIT, em circunstâncias que o próprio detalhou.

O TPI (cujo estatuto é subscrito por 123 Estados membros) tem total acesso a toda a informação partilhada na JIT, mas não está obrigado a partilhar a informação que recolher com os outros membros. O TPI é um tribunal independente, com um mandato específico, explicou o seu procurador. “Não são valores europeus que estamos a proteger. O TPI não é um braço da União Europeia. Tratam-se de valores humanos”, esclareceu Karim A. A. Khan.

Cooperar para evitar sobreposições

Paralelamente às investigações desenvolvidas pelos seis Estados membros da JIT, outros treze países estão a conduzir processos próprios. Organizações não governamentais e associações da sociedade civil estão também no terreno a recolher informação sobre alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Isto não se trata de um mega caso. Não significa que estamos a copiar-nos uns aos outros e a fazer a mesma coisa em países diferentes. A JIT centraliza as áreas em que necessitamos de cooperar e ajuda a resolver situações de sobreposição. Todos temos processos diferentes”, explicou Andres Parmas, procurador geral da Estónia.

Provas recolhidas por vários países e guardadas em diferentes jurisdições podem ser contraproducentes. “Temos uma grande necessidade de coordenação. E é aqui que o Eurojust entra. Temos mais de 20 anos de experiência de operações de grande escala”, disse Ladislav Hamran, presidente da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), que é parceira deste mecanismo internacional de cooperação judicial desde a primeira hora.

A contribuição desta agência da UE passa por dar apoio legal, financeiro e também logístico, como o fornecimento de telefones satélite, computadores portáteis, impressoras, scanners 3D, coletes à prova de bala, capacetes, veículos todo o terreno, drones e outros equipamentos importantes para a recolha de provas.

“Podemos concluir com certeza que a guerra na Ucrânia será o conflito armado mais documentado que testemunhamos até ao momento”, comentou Ladislav Hamran.

Tradutores, para que todos se entendam

O Eurojust, que acolheu a conferência de imprensa desta terça-feira, colmata ainda as necessidades de tradução para que os relatórios forenses possam ser lidos por todos, independentemente da sua nacionalidade, e para que procuradores, investigadores e agentes da polícia, quando reunidos, se possam expressar nas suas línguas maternas e serem entendidos por todos.

“Nunca antes na história dos conflitos armados, a comunidade legal respondeu com esta determinação. A decisão de formar esta JIT foi tomada aqui mesmo, no edifício do Eurojust, apenas seis dias após começar este conflito”, acrescentou o presidente da agência.

Dariusz Barski, procurador nacional da Polónia, explicou que no seu país, que já acolheu mais de 3,5 milhões de refugiados ucranianos, muito deste trabalho passa por entrevistar pessoas para recolher informação que possa ser útil a qualquer investigação.

“Estes processos também se referem às atividades levadas a cabo pelas autoridades e responsáveis da Bielorrússia que disponibilizaram o seu território para esta guerra de agressão iniciada pela Rússia contra o território independente da Ucrânia”, disse Barski. “Encorajo outros países a juntarem-se à JIT.”

A Lituânia, outro país fundador da Equipa, invoca a sua experiência de mais de 30 anos de investigação de crimes atribuídos ao Exército Vermelho por alturas da desagregação da União Soviética (1991), de que o país báltico fazia parte: “Queremos partilhar esta experiência com os nossos colegas na Ucrânia”, disse Nida Grunskiene, procuradora geral lituana. “Tomamos a decisão [de participar na JIT] depois de avaliarmos a informação pública que nos chegou nos primeiros dias da guerra na Ucrânia.”

Justiça ucraniana é rápida e lenta

Presente na conferência de imprensa, Iryna Venediktova, a procuradora-geral da Ucrânia, foi confrontada por um jornalista com a rapidez com que o país julgou o primeiro militar russo: um cidadão de 21 anos, condenado a prisão perpétua pela morte de um homem de 62 anos que seguia de bicicleta, na região de Sumy (nordeste).

“Na Ucrânia, os jornalistas perguntam-me porque é que os julgamentos demoram tanto. ‘Três meses, tanto tempo, o que andaram vocês a fazer até agora?’ Já os jornalistas internacionais perguntam-me: ‘Porquê tão rápido?’”, disse. “Nós vamos a tribunal quando estamos prontos.”

A procuradora disse que, atualmente, há cerca de 15 mil casos relativos a crimes de guerra no país e que a Ucrânia vai acusar cerca de 80 suspeitos por essas atrocidades. Admitiu também que as investigações tornam-se difíceis porque as autoridades de Kiev não têm acesso a partes do território, como a região do Donbas (leste), por exemplo. “Mas temos acesso a pessoas.”

Em abril passado, quando visitou a cidade ucraniana de Bucha, onde foram executados civis, o procurador do TPI proferiu uma frase que ficou a soar: “A Ucrânia parece uma cena de crime”.

Esta terça-feira, Karim A. A. Khan mostrou-se um homem confiante no papel da justiça. “Os custos com a justiça são irrisórios quando comparados com os milhares de milhões de dólares que são gastos num conflito. É mais barato financiar um mecanismo judicial como este do que comprar tanques e mísseis”, disse.

“Sou um grande fã da jurisdição universal. Cabe aos Estados decidirem se se juntam ou não à JIT. O que devemos fazer é aplaudir qualquer autoridade, qualquer procurador independente que tente chegar à verdade e reivindicar os direitos dos sobreviventes. Não estamos em competição. Esta é uma obrigação partilhada.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui. Tradução do artigo em língua russa neste link

Zelensky, um profissional da comunicação que se inspira em Churchill… e Trump

No dia em que assinala três anos sobre a vitória eleitoral que o levou à presidência da Ucrânia, Volodymyr Zelensky dirige-se ao Parlamento português para mais um discurso mobilizador. Como Winston Churchill, referência na área da comunicação política, o ucraniano sabe que quando a situação no seu país deixar de estar no topo da agenda mediática, ele perde a guerra. Ao Expresso, um especialista em comunicação política defende que “Zelensky quer criar a lenda”

Volodymyr Zelensky era, até há bem pouco tempo, um líder relativamente desconhecido no mundo. Alguns teriam apenas presente o momento da sua eleição como Presidente da Ucrânia, a 21 de abril de 2019, quando foi notícia a vitória de um comediante, eleito nas fileiras de um partido com o mesmo nome da série televisiva que o notabilizou — Servo do Povo.

Hoje, Zelensky é um herói no Ocidente, fruto da inesperada resistência ucraniana à invasão russa, que se esperava rápida e fulgurante, e à frequência e qualidade com que discursa. “Sendo um homem da área do humor, sabe a importância que tem a comunicação naquilo que é a projeção de um político, sobretudo em tempos de guerra”, diz ao Expresso Alexandre Guerra, consultor em comunicação. “Zelensky está a utilizar todas as ferramentas que já dominava e muitas outras que aprendeu ou afinou para construir esse estatuto de herói.”

O especialista defende que, independentemente da estratégia montada pela máquina de comunicação que o rodeia, o Presidente ucraniano tem características inatas de um bom comunicador. “Não se consegue construir um estatuto de herói sem que haja características inatas para serem trabalhadas e aperfeiçoadas. Winston Churchill, [primeiro-ministro britânico por duas vezes (1940-45 e 1951-55) e referência na arte da comunicação política] dizia que ‘a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas cultivada’ e que ‘o aperfeiçoamento é encorajado pela prática’. Ou seja, nem tudo pode ser fabricado num líder, nem tudo é inato.”

Isto aconteceu com Churchill — que chefiou , motivou e mobilizou o Reino Unido durante a II Guerra Mundial — e está a suceder agora com Zelensky, que se agigantou com a invasão russa. “Churchill teve uma vasta carreira política antes da II Guerra Mundial, que nunca é citada. O mesmo acontece com Zelensky — há um antes e um depois desta guerra.”

Eleito Presidente faz esta quinta-feira três anos, Volodymyr Zelensky foi um líder que não só não se destacou, nos primeiros tempos, por particular brilhantismo, como se deixou arrastar para o lamaçal em que se tornou a política interna nos Estados Unidos.

Um telefonema entre Zelensky e Donald Trump, a 25 de julho de 2019, desclassificado meses depois por ordem do Presidente norte-americano para que se escutasse os seus pedidos a Zelensky para investigar as atividades do rival democrata Joe Biden e do seu filho Hunter no país, revelou um ascendente de Trump sobre o chefe de Estado ucraniano.

Depois de o americano o felicitar pela vitória nas legislativas, Zelensky desfez-se em elogios à figura de Trump. “Conseguimos uma grande vitória e trabalhamos no duro para isso. Mas quero confessar-lhe que aprendi consigo. Usamos algumas das suas habilidades e conhecimento”, admitiu. “Posso dizer-lhe o seguinte: da primeira vez telefonou-me para me parabenizar quando venci as presidenciais, e está a ligar-me agora, pela segunda vez, quando o meu partido ganhou as legislativas. Julgo que poderia candidatar-me mais vezes para que me telefonasse mais vezes e pudéssemos conversar mais vezes”.

Discursos diários para o país e o mundo

Desde 24 de fevereiro, quando os primeiros militares russos entraram em território ucraniano, Zelensky faz-se ouvir várias vezes ao dia. Dirige-se com regularidade ao povo ucraniano, participa por videoconferência em reuniões com dirigentes internacionais e já discursou para pelo menos 25 parlamentos estrangeiros. Esta quinta-feira, fala na Assembleia da República.

Correndo o risco de contribuir para uma ‘fadiga Zelensky’, o Presidente tem como prioridade manter o tema da guerra na agenda mediática internacional. “Zelensky sabe que o tempo corre contra si em duas pistas”, comenta Guerra, simultaneamente especialista em assuntos internacionais. “Por um lado, quanto mais tempo passa, mais guerra há e mais destruição de território e mais mortes se verificam. Por outro lado, mais probabilidades há de o assunto começar a despertar menos interesse junto das televisões e da opinião pública internacional.”

Nos seus discursos, o chefe de Estado ucraniano alterna palavras de agradecimento ao apoio recebido com tiradas mais crispadas para com os aliados europeus, por exemplo, para pressionar e manter o assunto aceso. “Zelensky sabe que, naquilo que é a sua estratégia de liderança e resistência à Rússia, o tema Ucrânia tem de estar no topo da agenda mediática. Se não, a partir desse momento, ele perde a guerra”, diz o consultor de comunicação.

“Esta necessidade permanente de comunicar, de criar fatores de notícia e de, muitas vezes, provocar serve precisamente para manter o assunto no topo da agenda. De outra maneira, torna-se um conflito congelado e, como tantos outros conflitos esquecidos, os países ficam entregues à sua sorte.”

Esquecimento desde 2014

A própria Ucrânia já provou desse esquecimento. Para qualquer ucraniano, a guerra em curso não começou há semanas, mas antes em 2014, quando a Rússia invadiu o país, anexou formalmente a península da Crimeia e forças separatistas pró-Moscovo assumiram o controlo sobre partes do território do Donbas, no leste. “A Ucrânia ficou por sua conta e risco, na gestão desses dois problemas, sem que houvesse grande mobilização internacional”, recorda Guerra.

Para Alexandre Guerra, é claro que Zelensky soube rodear-se de uma equipa de comunicação “muito profissional”, oriunda da televisão, do jornalismo e da consultoria de comunicação, e que tem revelado capacidade para trabalhar sob grande stresse. “Isso nota-se não só nas comunicações de Zelensky, como em toda a estratégia de comunicação a nível governamental, do poder local ou militar que está toda muito bem coordenada. A forma como a estrutura militar ucraniana controla a comunicação no terreno — mostrando o que quer e gerindo o acesso dos jornalistas aos locais — é de um enorme profissionalismo.”

O especialista destaca o trabalho desenvolvido entre o Governo de Kiev e entidades externas, por exemplo empresas de lóbi (como a Yorktown Solutions, de Washington), de relações públicas (como a Karv Communications, de Nova Iorque), personalidades individuais, como o advogado Andrew Mac (que dirige a Asters, firma de advogados ucranianos em Washington, e é assessor de Zelensky) e antigos políticos americanos que estão em contacto permanente com a presidência ucraniana e atuam como influencers junto de decisores políticos e órgãos de informação.

Também a forma como Zelensky se veste é, em si mesma, um instrumento de comunicação. O colete à prova de bala e o capacete que usa quando anda nas ruas assentam-lhe com naturalidade, ajudando a criar uma imagem de credibilidade e a cimentar a sua liderança militar.

Nos gabinetes, surge quase sempre de ‘mangas arregaçadas’ com uma t-shirt verde-tropa no corpo, que já se tornou uma imagem de marca. Quando o visitou, em Kiev, a 1 de abril passado, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, mostrou solidariedade replicando a indumentária.

Tudo contribui para a construção da imagem de um resistente heróico. “Faz tudo parte de um elemento cénico importante. Mesmo os pequenos gestos, tudo tem um propósito, sobretudo quando estamos em presença de pessoas com um sentido de comunicação muito apurado, ao nível político e da gestão de crises. E tudo aquilo que, aparentemente, é espontâneo tem ali um elemento intencional.”

Amigos portugueses…

No discurso que se projeta para a audiência portuguesa, que resulta de um convite endereçado por Portugal, não faltarão os apelos às emoções que pontuaram as intervenções anteriores. “Mais do que um discurso de circunstância, é uma arma que Dmytro Litvin, o speechwriter de Zelensky, lhe coloca nas mãos, uma arma de apelo ao sentimento e às emoções de determinado povo”, descodifica Guerra.

Previsivelmente, dada a proximidade da sessão com o 48º aniversário do 25 de Abril, é possível que Zelensky não se esqueça desse marco para fazer a apologia da liberdade. “Ficaria muito surpreendido se o discurso não tocasse no 25 de Abril, até porque é uma data que celebra a liberdade e a libertação do jugo autoritário. Tenho expectativa para ver se Zelensky irá um pouco mais longe e vá falar do ‘verão quente’ que implicou um confronto entre uma visão democrática e um projeto comunista, alinhado com Moscovo.”

Para Portugal, esta iniciativa é uma demonstração de solidariedade para com a Ucrânia, no principal órgão de soberania do país. Além desse lado simbólico, “Portugal abre mais uma janela comunicacional a Zelensky e deve tentar potenciar ao máximo essa comunicação para os países de língua oficial portuguesa através, por exemplo, da RTP Internacional. Portugal é uma boa plataforma de projeção para outros países. É pequeno mas tem uma capacidade de alcance internacional muito interessante, junto de públicos que até estão um pouco distantes desta guerra”, como em Áfica ou na América do Sul.

A ‘passagem’ de Zelensky por Lisboa será mais uma etapa de uma guerra paralela às hostilidades no terreno — a da comunicação — e na qual surge como a voz principal de uma população com mais de 44 milhões de pessoas. “A partir do momento em que entrou em modo de guerra, como qualquer bom homem da comunicação política, Zelensky quer criar a lenda. E um dos melhores exemplos disso aconteceu nos primeiros dias de guerra, quando foi noticiado que os Estados Unidos tinham oferecido a Zelensky a possibilidade de sair do país e que ele teria dado uma resposta que ficou célebre: ‘Não preciso de boleia, preciso de munições’.”

A citação surgiu, pela primeira vez, num artigo da agência Associated Press de 26 de fevereiro, dois dias após o início da invasão da Rússia. Escreveu a AP: “Zelensky respondeu: ‘A luta está aqui. Preciso de munições, não de uma boleia”, segundo um alto responsável dos serviços de informação norte-americanos com conhecimento direto da conversa”.

“Hoje, esta resposta já faz parte da lenda e não se sabe sequer quem a proferiu e para quem, nem se essa resposta foi sequer dada por alguém”, conclui Guerra. “A frase foi posta a circular de forma credível e define bem aquilo que é Zelensky nesta guerra: Vou ficar aqui até morrer!”

(FOTO Volodymyr Zelensky durante uma intervenção diante da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui

Entrincheirado na Ucrânia, Zelensky deixou 25 reptos a parlamentos do mundo (agora é a nossa vez)

Em quase dois meses de guerra, o Presidente da Ucrânia já se dirigiu, por videoconferência, a 25 Parlamentos estrangeiros. Volodymyr Zelensky apoia-se num guião que oscila entre relatos emotivos das mais recentes atrocidades descobertas em solo ucraniano e a evocação de episódios históricos que aproximem quem o escuta do drama ucraniano. Esta quinta-feira, discursa para a Assembleia da República

O Presidente da Ucrânia tem feito da comunicação a sua principal arma de combate. Em 55 dias que leva a guerra no seu país, já discursou diante de 25 Parlamentos estrangeiros — uma média de uma intervenção a cada dois dias.

Em cada videochamada — que termina, invariavelmente, com a audiência a ovacioná-lo de pé —, Volodymyr Zelensky segue um guião profissional. Descreve, de forma emotiva, as barbaridades atribuídas aos russos, atualiza com especial ênfase o número de crianças mortas e lança pontes com a história do país anfitrião na expectativa de que, proferida a frase final, quem o ouça assuma que a guerra na Ucrânia é também sua.

Quando falou para o Conselho Europeu, a 24 de março passado, Zelensky avaliou o apoio dado à Ucrânia por cada um dos países da União Europeia. De Portugal, disse que “estava quase”. Esta quinta-feira, quando se dirigir aos deputados portugueses, terá oportunidade de esclarecer o que mais pode Portugal fazer pela Ucrânia.

Vestindo, na maioria das vezes, uma t-shirt verde, que já se tornou uma imagem de marca — e que a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, replicou, de forma solidária, quando o visitou, em Kiev, a 1 de abril —, Zelensky coloca na voz a energia que, por vezes, falta-lhe no rosto. Mas não se cansa de fazer pedidos.

PARLAMENTO EUROPEU, 1 de março: “A Ucrânia escolhe a Europa!”

Ao sexto dia de guerra, o Presidente da Ucrânia aproveitou “uma aberta nos bombardeamentos”, como disse, e dirigiu-se ao Parlamento Europeu para reafirmar um sonho do seu país. “Há uma expressão: ‘A Ucrânia escolhe a Europa’. É para isso que nos temos esforçado, e é para onde ainda estamos a ir. Gostaria muito de vos ouvir dizer que a Europa agora escolhe a Ucrânia”, disse Zelensky aos eurodeputados.

A adesão da Ucrânia à União Europeia (UE) esteve no coração do movimento de protesto Euromaidan que, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014, desafiou o Governo pró-Rússia após este recusar assinar um Acordo de Associação Ucrânia-UE, aprovado pelo Parlamento nacional.

A UE daria um passo na direção da Ucrânia mais de um mês após o início da invasão russa, quando a presidente da Comissão Europeia e o chefe da diplomacia da UE, Ursula von der Leyen e Josep Borrell, foram a Kiev e entregaram a Zelensky o convite formal de adesão. “Vamos acelerar este processo o mais que conseguirmos, garantindo que todas as condições sejam respeitadas”, escreveu Ursula no Twitter.

REINO UNIDO, 8 de março: Determinado como Churchill

Nunca antes o Palácio de Westminster tinha permitido que um líder estrangeiro discursasse para os deputados britânicos — Zelensky tornou-se o primeiro. O ucraniano descreveu cada um dos dias passados sob fogo russo, até então, e citou William Shakespeare: “Ser ou não ser?” E respondeu: “Obviamente, ser. Obviamente, ser livre”.

Numa passagem do seu discurso destinada a realçar a determinação dos ucranianos em resistir, Zelensky trouxe à memória um discurso histórico de Winston Churchill durante a II Guerra Mundial, o célebre “We Shall Fight on the Beaches” (Lutaremos nas Praias), proferido na Câmara dos Comuns, a 4 de junho de 1940, durante a Batalha de França. Disse o ucraniano:

“Lutaremos nos mares, lutaremos no ar, defenderemos a nossa terra, custe o que custar. Lutaremos nos bosques, nos campos, nas praias, nas cidades e aldeias, nas ruas, lutaremos nas colinas… Quero acrescentar: lutaremos sobre os despojos, nas margens do Kalmius e do Dnieper! E não nos renderemos!”

POLÓNIA, 11 de março: A Ucrânia é só o início

Volodymyr Zelensky interveio diante do Sejm, o Parlamento da Polónia, na véspera do país assinalar o 23º aniversário da sua entrada na NATO, um percurso que, como o demonstra a invasão russa, a Ucrânia está por enquanto impedida de fazer.

O ucraniano agradeceu aos polacos o acolhimento de refugiados ucranianos — cerca de 2,6 milhões, até ao dia de hoje. E citou um antigo Presidente polaco para verbalizar a ameaça que significa para ucranianos e polacos a circunstância de serem vizinhos da Rússia. Era 2008, Lech Kaczynski estava em Tbilisi, na Geórgia, e decorria a guerra entre a Rússia e aquele país do Cáucaso, que haveria de levar ao reconhecimento russo da independência das regiões separatistas georgianas da Ossétia do Sul e da Abecásia.

Disse então o polaco: “Sabemos muito bem: hoje Geórgia, amanhã Ucrânia, depois de amanhã os países bálticos e então, talvez, chegue a hora do meu país, Polónia”. Acrescentou agora Zelensky: “A 24 de fevereiro [o início da invasão], esse terrível ‘amanhã’, de que falou o Presidente Kaczyński, chegou à Ucrânia”.

CANADÁ, 15 de março: Nem mais um dólar para a guerra

Num discurso fortemente marcado pela informalidade, Zelensky dirigiu-se ao primeiro-ministro Justin Trudeau apenas por “Justin”, do início ao fim — o canadiano tem 50 anos e o ucraniano 44.

Igualmente, procurou mobilizar de forma especial os 1,4 milhões de canadianos com ascendência ucraniana (numa população de cerca de 38 milhões). “É neste momento histórico que precisamos da vossa ajuda efetiva.”

Despindo-se de emoções, Zelensky apelou ao poder de influência do Canadá — enquanto membro da NATO e uma das sete maiores economias do mundo —, para que exerça mais pressão militar e económica sobre a Rússia.

“Podem forçar ainda mais empresas a deixarem o mercado russo, para que não haja um único dólar para a guerra. Se [as empresas] permanecerem na Rússia e patrocinarem a guerra, não poderão trabalhar no Canadá. Que assim seja — e isso nos dará paz.”

ESTADOS UNIDOS, 16 de março de 2022: Um sonho não concretizado

Com os membros do Congresso dos EUA reunidos num auditório, e não na tradicional sala de debates, Zelensky desafiou-os a recuarem até aos dias negros da história do país para melhor perceberem o sofrimento dos ucranianos.

Recordou o ataque a Pearl Harbor (1941) e o 11 de Setembro (2001) e fez um pedido, ‘ao som’ das palavras do ativista Martin Luther King Jr.: “‘Eu tenho um sonho’ — estas palavras são conhecidas por cada um de vós. Hoje posso dizer: eu tenho uma necessidade. A necessidade de proteger o nosso céu. A necessidade da vossa decisão, da vossa ajuda. E isso significará a mesma coisa que sentem, quando ouvem: eu tenho um sonho”.

Este pedido não produziu efeitos junto da Casa Branca ou do quartel-general da NATO. A desejada zona de exclusão aérea nos céus da Ucrânia, para neutralizar bombardeamentos russos, nunca se concretizaria..

ALEMANHA, 17 de março: Um novo muro na Europa

Diante do Bundestag, o Presidente ucraniano colocou o dedo na ferida aberta na memória coletiva alemã que é a II Guerra Mundial. Recordou o massacre de judeus pelos nazis, em 1941, na localidade ucraniana de Babyn Yar — uma das maiores chacinas de civis na então União Soviética — e referiu que na zona já caíram mísseis russos. “Mortos outra vez, 80 anos depois”, disse.

Insistindo nas lições da história recente da Alemanha, Zelensky “ergueu” uma nova barreira na Europa, por comparação ao Muro de Berlim, derrubado em 1989. “Vós estais como que atrás de um muro novamente. Não o Muro de Berlim, mas no meio da Europa, entre a liberdade e a escravidão. E esse muro fica mais forte a cada bomba que cai na nossa terra, na Ucrânia, com cada decisão que não é tomada em prol da paz.”

“Quando nós dissemos que o [gasoduto] Nord Stream era uma arma e um preparativo para uma grande guerra, ouvimos, como resposta, que era economia, afinal de contas. Economia. Economia. Mas era cimento para um novo muro.”

O ucraniano terminou o discurso reproduzindo uma citação histórica do ex-Presidente dos EUA Ronald Reagan, de visita a Berlim Ocidental, em 1987. “Derrube este muro”, disse, dirigindo-se ao líder soviético, Mikhail Gorbachev. Acrescentou Zelensky: “Quero dizer agora, chanceler [Olaf] Scholz, derrube este muro! Dê à Alemanha a liderança que merece e de que os seus descendentes se orgulhem.”

SUÍÇA, 19 de março: O papel dos bancos na “luta contra o mal”

Os horários da guerra não se compaginam com os hábitos mundanos de quem vive em paz pelo que foi a um sábado que Zelensky falou para “o povo da Suíça”, “um Estado com uma longa história de paz e uma história de influência ainda maior”.

No exterior do edifício do Parlamento, em Berna, milhares de pessoas escutaram, através de um grande ecrã, Zelensky admitir um sonho antigo de “viver como os suíços”, com altos padrões de qualidade, confiança e liberdade, poucas expectativas em relação aos políticos e com a possibilidade de votarem em referendos.

“E assim como eu queria que os ucranianos vivessem como os suíços, eu também quero que vocês sejam como os ucranianos, na luta contra o mal. Para que não haja dúvidas sobre os bancos, os vossos bancos, [é] onde está guardado o dinheiro de todos aqueles que começaram esta guerra.”

O ucraniano não evitou uma dura crítica à empresa Nestlé por se recusar a sair do mercado russo, numa altura em que “a Rússia ameaça outros países europeus, não apenas a Ucrânia”. Pressionada pelas críticas e após ter sido alvo de um ataque informático reivindicado pelo grupo Anonymous, a multinacional suíça anunciou a retirada das suas marcas da Rússia.

ISRAEL, 20 de março: Mediar entre ‘bem’ e ‘mal’ não é aceitável

Nos corredores diplomáticos, Israel tem sido dos poucos países com igual facilidade de diálogo em Kiev e Moscovo. Outro exemplo é a Turquia, que acolheu as últimas conversações entre russos e ucranianos.

A 5 de março, o primeiro-ministro israelita, Naftali Bennett, tornou-se o primeiro líder ocidental a deslocar-se ao Kremlin, desde o início da invasão, para um encontro de três horas com Vladimir Putin.

Quando discursou para o Parlamento israelita (Knesset), Zelensky deixou uma crítica às posições políticas que não escolhem lados. “A mediação pode ser entre Estados, não entre o bem e o mal”, disse. “Pode-se continuar a perguntar por que não podemos obter armas de Israel. Ou por que Israel não impôs sanções fortes contra a Rússia.”

Zelensky reconheceu, no entanto, a grande proximidade entre judeus e ucranianos e citou Golda Meir, uma carismática primeira-ministra israelita nascida em Kiev. “Pretendemos continuar vivos. Os nossos vizinhos querem ver-nos mortos. Esta não é uma questão que deixe muito espaço para compromissos.”

ITÁLIA, 22 de março: “Não sejam um resort para assassinos”

“Falo-vos desde Kiev, a nossa capital. De uma cidade que é tão importante para a nossa região como Roma é para o mundo inteiro.” E da mesma forma que as duas cidades estão associadas a grandes guerras durante a sua história, aspiram igualmente a viver em paz, defendeu Zelensky diante da Camera dei Deputati.

Numa intervenção que foi antecedida por uma conversa telefónica com o Papa Francisco, o líder ucraniano recordou a ajuda médica ucraniana a Itália, nos primeiros tempos da pandemia de covid-19, o socorro italiano, há dois anos, quando a Ucrânia sofreu grandes inundações e exemplificou como a Itália pode ser preciosa no apertar do cerco à elite que rodeia Putin.

“Vocês conhecem aqueles que trouxeram a guerra à Ucrânia. De certeza. Aqueles que ordenam os combates e aqueles que os promovem. Quase todos eles usam a Itália como local de férias. Portanto, não sejam um resort para assassinos. Bloqueiem todos os seus imóveis, contas e iates — desde o [superiate] ‘Scheherazade’ até aos mais pequenos”, ancorados nos portos italianos.

JAPÃO, 23 de março: ONU precisa de reformas

Volodymyr Zelensky foi rigoroso na hora de medir o caminho entre Kiev e Tóquio — 8193 quilómetros, “em média, 15 horas de avião”. Diante do Parlamento japonês, o ucraniano procurou, no entanto, encurtar distâncias e valorizar o que de comum têm os dois povos. Desde logo, as memórias da mortífera exposição ao poder nuclear.

“Cada um de vocês sabe o que é Chernobyl, uma central nuclear na Ucrânia onde ocorreu uma poderosa explosão em 1986”, com consequências registadas em diferentes zonas do planeta. “Há quatro centrais nucleares operacionais no nosso território, 15 reatores nucleares. E estão todos ameaçados.”

O ucraniano criticou a inação das instituições internacionais e defendeu a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde a Rússia é membro permanente e o Japão aspira a ter um assento. “Precisa de uma injeção de honestidade, para se tornar eficaz, para realmente decidir e realmente influenciar, não apenas discutir.”

FRANÇA, 23 de março: Em constante comunicação com Macron

“Liberdade, Igualdade, Fraternidade” foi o lema da Revolução Francesa (1789) ao qual Zelensky recorreu para defender, diante da Assemblée Nationale francesa, a importância da liberdade para os ucranianos.

O Presidente ucraniano comparou a sitiada Mariupol às ruínas de Verdun, cidade-símbolo da Grande Guerra (1914-1918), palco de uma longa batalha entre franceses e alemães. E apelou à liderança francesa para que se empenhe em desbravar o caminho da paz.

“Estamos gratos em relação à ajuda da França e aos esforços do Presidente [Emmanuel] Macron, que demonstrou verdadeira liderança. Estamos em constante comunicação com ele, é verdade, e coordenamos alguns dos nossos passos”, admitiu. Nos dias que antecederam a guerra, Macron multiplicou-se em iniciativas para tentar conter a invasão, com sucessivos telefonemas e visitas a Moscovo e Kiev. Zelensky quer mais:

“As empresas francesas têm de deixar o mercado russo. Renault, Auchan, Leroy Merlin e outras devem deixar de patrocinar a máquina militar russa, patrocinar o assassínio de crianças e mulheres, de violações, roubos e pilhagens por parte do exército russo.”

SUÉCIA, 24 de março: O azul-amarelo da liberdade

Ao primeiro mês de guerra, Zelensky dirigiu-se ao Parlamento da Suécia (Riksdag), com o azul e amarelo das bandeiras dos dois países — as mesmas cores também da União Europeia — a servir de mote para um discurso direto ao coração dos suecos. “Hoje, a bandeira azul e amarela é provavelmente a mais popular do mundo. Essas cores estão associadas à liberdade.”

Após descrever a destruição provocada pela guerra, que o levou a afirmar que “a Europa nunca conheceu um mês tão sombrio desde a II Guerra Mundial”, tentou projetar um futuro risonho para o país e lançou um convite a arquitetos, empresas e ao Estado sueco para que se envolvam na reconstrução da Ucrânia.

E alertou a Suécia — que não pertence à NATO — para grandes desafios à sua segurança. “Os propagandistas russos já discutem na televisão estatal como a Rússia pode ocupar a vossa ilha de Gotland [no Mar Báltico] e como mantê-la sob controlo durante décadas”, avisou Zelensky. “Vocês podem perguntar: com que propósito? Eles dizem que será benéfico para a Rússia implantar sistemas de defesa antiaéreo e uma base militar em Gotland, para cobrir a captura dos Estados bálticos.”

“A Rússia entrou em guerra com a Ucrânia porque espera ir mais longe na Europa. Espera destruir ainda mais a liberdade na Europa. Este é um desafio fundamental para o sistema de segurança europeu.”

DINAMARCA, 29 de março: A guardiã dos Critérios de Copenhaga

À semelhança daquilo que espera da Suécia, também quando interveio no Folketing, Zelensky convidou a Dinamarca a participar ativamente na reconstrução da Ucrânia, terminada a guerra. Propôs-lhe, em concreto, a recuperação de Mykolaiv, a cidade dos construtores navais.

E se, noutros discursos, ele identificou empresas relutantes em abandonar o mercado russo, neste caso, elogiou a Lego, a Maersk e a Carlsberg por terem-no feito.

Com o sonho europeu sempre presente, Zelensky recordou que foi na Dinamarca, em 1993, que a UE acordou as regras que definem se um país é elegível para aderir à União. “São vocês, na Dinamarca, no país de onde vêm os Critérios de Copenhaga, que podem sentir, acima de tudo, como é importante que a solidariedade de toda a Europa trabalhe para pressionar a Rússia.”

NORUEGA, 30 de março: A responsabilidade do fornecimento energético à Europa

Ucrânia e Noruega não partilham fronteira, mas são vizinhos da Rússia, “que nega todos os nossos valores comuns”, disse Zelensky, falando para o Storting. “Julgo que vocês enfrentam novos riscos perto da vossa fronteira com a Rússia. Um número anormal de tropas russas já foi concentrado na região do Ártico. Para quê? Contra quem?”

O chefe de Estado ucraniano recordou que a Noruega é “o país que anualmente atribui o Prémio Nobel da Paz” e que, dado ser um grande produtor mundial de petróleo, tem uma responsabilidade acrescida, num momento em que a Europa procura alternativas para diminuir a sua dependência energética em relação à Rússia.

“São vocês quem pode dar um contributo decisivo para a segurança energética da Europa, fornecendo os recursos necessários tanto para a União Europeia como para a Ucrânia.”

AUSTRÁLIA, 31 de março: Boas recordações do gigante “Mriya”

Entre os territórios da Ucrânia e da Austrália, há quase 15 mil quilómetros de mares, países e cinco a sete fusos horários. Em maio de 2016, o “Mriya”, o maior avião do mundo, percorreu essa distância em dias transportando um gerador de 130 toneladas de que a Austrália necessitava com urgência. Por mar, teria demorado meses a chegar.

O “Mriya” (“sonho”) foi agora destruído pelos russos, no aeroporto de Hostomel. Quando discursou no Parlamento australiano, Zelensky ‘recuperou-o’ para demonstrar como os dois países se valem. E nesta hora difícil para a Ucrânia, toda a ajuda australiana é bem-vinda.

“Por exemplo, vocês têm maravilhosos veículos blindados Bushmaster que podem ajudar significativamente a Ucrânia. Assim como outros modelos de equipamentos e armas que podem fortalecer a nossa posição.”

PAÍSES BAIXOS, 31 de março: Haia, a capital da justiça internacional

Acontecimentos de há 70 anos na Europa, como o bombardeamento da cidade holandesa de Roterdão, realizado pela Luftwaffe, serviram para Zelensky acenar com os fantasmas de outras guerras no Velho Continente se não for travada a Rússia, “este país que esqueceu todas as lições da II Guerra Mundial”, disse, ao discursar no Parlamento holandês.

O Presidente da Ucrânia não esqueceu a importância que pode desempenhar outra cidade holandesa, Haia, uma espécie de capital da justiça internacional, onde está sedeado o Tribunal Penal Internacional, com jurisdição para julgar indivíduos por crimes de guerra e contra a humanidade.

“Exorto-vos a influenciar as instituições internacionais! Os crimes dos ocupantes russos têm de ser punidos. Deportações, massacres, destruição de infraestruturas civis, bombardeamentos de hospitais — tudo isso deve ser respondido diante da comunidade democrática.”

BÉLGICA, 31 de março: O embaraço dos diamantes russos em Antuérpia

A partir do coração da Europa, a Bélgica pode, nas palavras de Zelensky, “inspirar todos os outros europeus a fazerem mais”, disse no Parlamento belga. O ucraniano endereçou palavras de “muita gratidão” pelas dezenas de milhares de ucranianos que o país acolheu e por ter sido dos primeiros países a fornecer apoio militar à Ucrânia. “Nunca o esqueceremos.”

Mas ao caracterizar os dois mundos que se enfrentam nesta guerra, Zelensky não deixou a Bélgica imune a críticas. Por um lado, o mundo dos que lutam pela liberdade contra a tirania. E por outro, aquele dos que estão tão habituados a ter liberdade que nem percebem o que custa lutar por ela — como, por exemplo, “o mundo daqueles que acreditam que diamantes russos em Antuérpia são mais importantes do que a guerra no leste da Europa.” A cidade belga de Antuérpia é conhecida como a capital mundial dos diamantes.

ROMÉNIA, 4 de abril: A loucura dos russos

Numa intervenção marcada pelo massacre de civis em Bucha, nos arredores de Kiev, conhecido horas antes, Zelensky dirigiu-se aos deputados romenos com imagens duras captadas durante a sua deslocação ao terreno. “Quero que vejam o que os ocupantes deixaram para trás. Peço desculpa, o vídeo é brutal, mas é a realidade…”

Apelando a recordações igualmente gráficas da história da Roménia, como a execução do ditador Nicolae Ceaușescu, em 1989, em contexto de sublevação popular motivada pela queda do Muro de Berlim, Zelensky recordou o regime de “intimidação, repressão, brutalidade e engano”, impossível de convencer.

“Também é impossível convencer aqueles que promovem a guerra na Rússia agora. Quem dá ordens criminosas. Quem desenvolve planos para o genocídio do povo ucraniano e a destruição do Estado ucraniano. Essas pessoas são inadequadas, perderam toda a ligação com a realidade e estão dispostas a sacrificar milhões de vidas para concretizar as suas ideias loucas.”

ESPANHA, 5 de abril: Ucrânia como Guernica

Ainda que tal não fosse necessário para facilitar o relato dos horrores da guerra na Ucrânia, Zelensky não resistiu a ir à história espanhola buscar um termo de comparação, quando discursou para deputados e senadores do país vizinho.

“Imaginem as pessoas agora, na Europa, a viver durante semanas em caves para salvar as suas vidas, de disparos, de bombardeamentos. Diariamente! Em abril de 2022, a realidade na Ucrânia é como se fosse a de abril de 1937, quando todo o mundo aprendeu o nome de uma das vossas cidades — Guernica.”

Zelensky agradeceu o apoio espanhol e pediu “sanções mais poderosas”. Apelou a empresas, como a Porcelanosa, que deixem o mercado russo. “Como podemos permitir que os bancos russos gerem lucros enquanto os militares russos torturam civis até à morte em cidades ucranianas? Como podem empresas europeias fazer negócios num Estado que deliberadamente está a destruir o nosso povo?”

“Todos na Europa têm simplesmente de deixar de ter medo, de deixar de serem fracos. Têm de se tornar fortes. Pôr os valores e a democracia acima das ameaças que a Rússia espalha.”

IRLANDA, 6 de abril: Aliados na reconstrução do país

Naquele que foi provavelmente o discurso mais longo diante de um Parlamento nacional até então, Volodymyr Zelensky foi generoso no agradecimento à República da Irlanda o apoio desde o primeiro dia.

“Apesar de serem um país neutro, não permaneceram neutros diante da dor e do sofrimento que a Rússia trouxe aos ucranianos. Estou grato a todos vós por isso.”

À semelhança do que fez em discursos anteriores, propôs aos irlandeses que se envolvam na tarefa da reconstrução da Ucrânia. “Por exemplo, na região de Kherson”, a norte da Crimeia. “A vossa capacidade para valorizar a vida e as pessoas, a vossa capacidade de viver em comunidade, o vosso potencial económico são bem conhecidos. Então vamos unir forças e mostrar que a Ucrânia e a Irlanda juntas podem fazer muito mais do que aquilo que o maior país do mundo planeou destruir.”

GRÉCIA, 7 de abril: Um incómodo chamado batalhão Azov

“Há mais de um mês que as minhas manhãs começam com [a situação em] Mariupol”, assim iniciou Zelensky a sua intervenção no Parlamento helénico. A referência àquela cidade ucraniana não foi de todo inocente. “Esta cidade sempre foi a casa de uma grande comunidade grega. A comunidade grega ucraniana é uma das maiores do mundo. Durante séculos, os nossos povos viveram lado a lado, educaram crianças e construíram o futuro.”

Mas se Mariupol foi um pretexto, na narrativa de Zelensky, para evocar a proximidade entre os dois países, tornou-se num pomo de polémica, no Parlamento. A dado momento da sua videoconferência, Zelensky cedeu a palavra a um soldado greco-ucraniano que combatia em Mariupol e cujo avô tinha lutado contra os nazis na II Guerra Mundial.

O homem identificou-se como membro do batalhão Azov (neonazi), fundado como um grupo paramilitar nacionalista, na região do Donbas. Alguns deputados expressaram a sua revolta, entre os quais os do Syriza (esquerda).

CHIPRE, 7 de abril: ‘Vistos gold’ para russos têm de acabar

Situado na ponta leste do Mediterrâneo, a menos de 500 quilómetros da Síria e, por essa razão, habituado a situações de tensão, o Chipre tem condições únicas para condicionar a Rússia, defendeu o Presidente da Ucrânia, no seu discurso no Parlamento de Nicósia.

“A República de Chipre tem ferramentas extremamente poderosas para influenciar a sociedade russa. Uma força única que pode ser colocada ao serviço da paz. Todos os portos do mundo democrático devem ser completamente fechados aos navios russos. Esta deve ser uma decisão conjunta, ao nível da União Europeia.”

Num apelo semelhante ao que fizera em Roma, Zelensky defendeu também ser possível “pelo menos congelar o uso pelos russos de todos os seus iates e outras embarcações nas águas cipriotas. Vocês podem suspender os atuais privilégios para cidadãos russos, começando pelos chamados ‘vistos gold’ para todos os russos sem exceção e terminando com a dupla cidadania”.

“Eles [os russos] simplesmente não levam a maioria dos países a sério. Não respeitam a maioria das nações. Consideram todos no mundo como alguém que querem usar, ou conquistar, ou intimidar.”

FINLÂNDIA, 8 de abril: Memórias da ocupação russa

Como aconteceu em discursos anteriores, Zelensky dirigiu-se ao Eduskunta (Parlamento da Finlândia) na senda de uma nova tragédia acabada de acontecer no seu país — um ataque com míssil a uma estação ferroviária de Kramatorsk, no leste da Ucrânia. Incentivados pelas autoridades locais, milhares de civis tentavam apanhar um comboio que os levasse para sítios mais seguros.

Perante a barbárie em que se transformou a ocupação russa, Zelensky fez um alerta especial ao povo finlandês, que já viveu sob domínio russo: “Vocês já viram na vossa história a crueldade e o absurdo da invasão da Rússia. Sejamos honestos: a ameaça mantém-se. Tudo deve ser feito para impedir que isto aconteça outra vez”.

“E tenho certeza que vocês percebem que se o exército russo receber ordens para invadir a vossa terra, eles farão o mesmo no vosso país. Eu não vos desejo isso. Eles farão às vossas cidades o que aconteceu em Bucha. Fa-lo-ão às cidades de qualquer país que a liderança da Federação Russa decida que é, alegadamente, parte do seu império, e não terra de outra nação.”

COREIA DO SUL, 11 de abril: Recuo aos tempos da guerra na península

O balanço da guerra que Zelensky tenta fazer a cada nova mensagem para o estrangeiro é sempre a possível. “Ainda não conseguimos determinar o número de mortos. De norte a sul do país — em todas as áreas atingidas por disparos e bombas russos —, o desmantelamento de destroços ainda decorre”, disse diante do Parlamento da Coreia do Sul.

O chefe de Estado ucraniano enumerou cerca de 2000 mísseis já disparados contra cidades ucranianas e 938 escolas e quase 300 hospitais destruídos.

“Vocês lembram-se, sabem como é defender a vossa terra. Lembram-se quando, nos anos 1950, foram atacados por quem queria destruir a vossa liberdade”, disse, aludindo à guerra entre as duas Coreias (1950-53), e que ainda aguarda por um tratado de paz formal.

Mas por muito que anseie pela paz, para já, a prioridade de Zelensky é a guerra. “Nós precisamos de sistemas de defesa antiaérea, aeronaves, tanques e outros veículos blindados, sistemas de artilharia e munições. E vocês têm algo que nos pode ser indispensável. Veículos blindados, armas antiaéreas, antitanque e antinavio.”

LITUÂNIA, 12 de abril: Fechar a torneira do petróleo

Um dia após a primeira-ministra lituana, Ingrida Simonyte, ir à Ucrânia e ter testemunhado, entre outras coisas, o resultado da passagem das forças por Borodyanka, nos arredores de Kiev — que o Presidente da Ucrânia disse ser “mais horrível” do que Bucha —, Zelensky dirigiu-se ao Parlamento da Lituânia (Seimas) com palavras de grande apreço.

A 1 de abril, a Lituânia tornou-se o primeiro Estado membro da União Europeia a acabar com as importações de gás russo, considerada a medida que verdadeiramente pode punir a Rússia pela invasão da Ucrânia. “Foi uma histórica manifestação de liderança. Afinal, o povo lituano, como nenhum outro, compreende como os ocupantes podem destruir a liberdade e a que custo a independência é depois reconstruída”, disse Zelensky, aludindo aos anos em que a Lituânia integrava a União Soviética.

O ucraniano criticou a estratégia da UE de aplicação de sucessivos pacotes de sanções para responder à pior guerra na europa desde a II Guerra Mundial. “E ainda não se sabe se o petróleo estará sujeito a sanções”, disse. “Não podemos esperar pelo sétimo, oitavo, nono, décimo, vigésimo pacote de sanções contra a Rússia para tomarmos decisões realmente poderosas.”

“Quando o continente pensou principalmente em interesses egoístas, e não no que deveria unir a todos, isso sempre levou a tempos terríveis para a Europa como um todo. Discórdia, surtos de revanchismo, guerras — não é disso que os europeus precisam no século XXI. Mas é isso que a Rússia está a tentar trazer de volta.”

ESTÓNIA, 13 de abril: O passado (e o presente) negro das deportações

No mesmo dia em que recebeu, em Kiev, os Presidentes da Polónia e dos três países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia —, Volodymyr Zelensky dirigiu-se ao Parlamento estónio (Riigikogu). O ucraniano recordou uma manifestação solidária para com a Ucrânia, realizada por dezenas de milhar de pessoas, na Praça Vabaduse (Liberdade), em Talin, a 26 de fevereiro, escassos dois dias após a invasão russa da Ucrânia. “Já se tornou uma página gloriosa da nossa história comum.”

Zelensky defendeu que os oito anos de guerra na região de Donbas trouxe de volta ao quotidiano europeu o sofrimento por que passou o povo estónio no passado às mãos dos russos. “Deportações em massa, campos de triagem, uma tentativa consistente de destruição de todos aqueles que apoiam a ideia de nacionalidade. Hoje, mais de 500 mil ucranianos foram deslocados à força” — toda a população de Talin, um terço dos cidadãos estónios.

“As páginas negras da história não devem repetir-se quando ucranianos e estónios deportados permaneceram por muitos anos na Sibéria ou no Extremo Oriente russo. Já existem sepulturas ucranianas e estónias mais do que suficientes, campas daqueles que morreram nas deportações comunistas.”

(FOTO Volodymyr Zelensky durante a sessão da Assembleia da República em que que discursou a partir de Kiev PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui